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Cabo Verde: “Neve Insular” é artesanato de utopia e resistência

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Rita Rainho e Vanessa Monteiro partiram de uma semente selvagem para fiar uma história de resistência cultural, memória e utopia no Centro Agro-ecologico do Madeiral, no interior da ilha de São Vicente, em Cabo Verde. As designers e investigadoras criaram o projecto Neve Insular, a partir da semente do algodão, que resgata saberes tradicionais e invoca a história da escravatura e da resistência.

Rita Rainho e Vanessa Monteiro. Ilha de São Vicente, Cabo Verde. 26 de Março de 2022.
Rita Rainho e Vanessa Monteiro. Ilha de São Vicente, Cabo Verde. 26 de Março de 2022. © Carina Branco/RFI
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As designers Rita Rainho e Vanessa Monteiro criaram um projecto de arte e artesanato que cruza os saberes ancestrais com a memória crítica do ciclo do algodão. As investigadoras partiram do algodão para fiar uma história de resistência cultural, memória e utopia no Centro Agro-ecologico do Madeiral, no interior da ilha de São Vicente, em Cabo Verde.

O algodão é uma fibra de cultivo milenar que recorda um passado em que as pessoas escravizadas transformavam o algodão em artesanato em Cabo Verde e cujos saberes foram também transportados para o Brasil durante esse tráfico de seres humanos. Algo que esteve também na origem da criação do quilombo de Conceição das Crioulas, no Brasil, quando no século XIX, seis fiadeiras negras compraram as terras em que estavam graças à venda dos produtos que faziam à mão. Esta história de luta e resistência tem sido investigada por Rita Rainho e inspira a “Neve Insular”.

O projecto começou em 2018, quando Rita e Vanessa começaram a estudar os padrões da panaria tradicional cabo-verdiana para o salão “Created em Cabo Verde” do Centro Nacional de Arte, Artesanato e Design. Quatro anos depois, a "Neve Insular" resiste e fomos conhecê-la durante uma feira de artesanato no interior da ilha de São Vicente.

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Neve insular em Cabo Verde

Este projecto surge em 2018 no âmbito da participação no salão ‘Created em Cabo Verde’. Na altura, o tema era o padrão da panaria cabo-verdiana. Um dos padrões mais singulares da panaria tradicional é o símbolo estilizado do capulho do algodão. Ficámos intrigadas sobre esta figura do algodão e começámos a rever um bocadinho aquilo que é a história tanto da ocupação das ilhas, quanto do seu envolvimento no tráfico de pessoas escravizadas entre o Atlântico”, começa por explicar Rita Rainho.

Nesse mergulho na história, em rever um pouco essa importância da panaria, percebemos que o papel do design e das artes teria de ser muito além de criar um objecto para participar nesse salão. É  assim que surgiu um projecto utópico de voltar à semente do algodão e implementar um projecto que tem três eixos: o agrícola, onde plantamos algodão numa plantação biodiversa e agro-ecológica; a dimensão educativa, onde trabalhamos com as crianças do vale e jovens da área da educação artística, professores da cidade, agricultores e agricultoras; e, depois, a dimensão artística em que temos desafiado artesãos, artesãs, designers, pesquisadoras e as próprias agricultoras a fazerem parte de um processo criativo que vai além de criar objectos mas que procura envolver todas estas dimensões”, continua a designer.

Vanessa Monteiro explica que para “agilizar o processo de transformação do algodão”, começaram por criar equipamento na ilha. Pediram a um carpinteiro para fazer um descaroçador de algodão, a partir de um modelo japonês, e a um artesão para criar os fusos em madeira de figueira. Apenas foram importadas as cardas.

 “O processo começa com a colheita no centro agro-ecológico do Madeiral, que é uma parceria com a Associação Agropecuária do Calhau e do Madeiral. Portanto, fazemos a colheita. Depois deixamos o algodão a descansar para que os bichinhos que vivem neles vão saindo. Depois disso, passamos o algodão no descaroçador que separa a fibra da semente. A seguir, passamos pelas cardas, que são como umas escovas compostas por duas partes, em que através de algumas passagens vamos tirando as impurezas e limpando a fibra. No fim dessa passagem das escovas, elas saem numa forma de tubinho de fibra que é depois passado para a fiação manual através do fuso. Uma das coisas também que nos foi sugerida no processo foram os pires em madeira para permitir que o fuso não saia do lugar. Após isto, temos também o trabalho no tear manual”, descreve Vanessa Monteiro, mostrando como resultado uma banda de algodão fiado.

A plantação de algodão em São Vicente é mais do que uma plantação em agroecologia. Segundo Rita Rainho, é “uma área de encontro, de pesquisa, de experimentação e de vivência e prática coletiva de arte e design” que acontece entre agricultores, artesãos, designers, arquitectos, professores, alunos e famílias. Sem esquecer as possibilidades de troca de ideias/artesanato do Quilombo das Crioulas com as ilhas. Ou seja, "Neve insular" é um projecto que vai mais além de “não deixar morrer a tecelagem”, como defendiam, nos anos 70, os fundadores da Cooperativa Resistência e do Centro Nacional de Artesanato.

É um laboratório que serve para seguir as bases de experimentar a agricultura biológica, fazer trocas e partilhas do ponto de vista criativo e o facto de termos tido algumas residências artísticas com alguns designers e artistas têxteis, leva-nos a entender que o processo é bastante demorado e, por isso, não temos a pressa de comercializar. Contudo, temos noção que, também pelo custo, estas peças orientam-se mais para o mercado das artes (…) Este ano, o objectivo é começar a aplicar em projectos de design de autor, numa quantidade bastante limitada. Mas a ideia é responder nestes dois sentidos: design de autor e peças para um mercado mais artístico”, conclui Vanessa Monteiro.

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