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Cabo Verde: A história esquecida do campo de concentração de São Nicolau

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O escritor cabo-verdiano José J. Cabral tem trabalhado, nos últimos anos, para a divulgação de uma história “esquecida durante muito tempo”: a do antigo campo de concentração de São Nicolau, em Cabo Verde. Por lá teriam passado “mais de 250” resistentes antifascistas e foi, em 1931, um dos primeiros espaços de encenação de um campo de concentração para deportados políticos portugueses, poucos anos antes do Campo de Concentração do Tarrafal da ilha de Santiago.

José J. Cabral, escritor. Mindelo, 25 de Março de 2022.
José J. Cabral, escritor. Mindelo, 25 de Março de 2022. © Carina Branco/RFI
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19:34

A história esquecida do campo de concentração de São Nicolau

Esta é uma história que “ficou lá esquecida durante muito tempo”, começa por explicar o escritor cabo-verdiano José J. Cabral que se tem dedicado a estudar e a tentar reabilitar a memória do antigo campo de concentração da ilha de São Nicolau. Uma história que gostaria de ver integrada na candidatura do antigo Campo de Concentração do Tarrafal da ilha de Santiago a Património da Humanidade. Mas já lá vamos.

 

Lembrando a tese de mestrado de Victor de Barros, “Campos de concentração em Cabo Verde: as ilhas como espaços de deportação e de prisão no Estado Novo”, José J. Cabral explica que, em 1931, a ilha de São Nicolau foi um dos primeiros espaços de encenação de um campo de concentração para deportados políticos portugueses desterrados para Cabo Verde. Mais ainda, foi aí que se fez a montagem do primeiro cenário para a fortificação de uma prisão para deportados políticos, ou seja, para a materialização do primeiro modelo de prisão especial em que a ilha deixava de ser simplesmente uma “Ilha Prisão” para se passar a ter uma verdadeira “Prisão na Ilha”.

Eu admito que seja o regime político que terá destruído os arquivos. Não há bibliografia sobre a história de São Nicolau e, por isso, ficou lá esquecida durante muito tempo até surgir uma conferência promovida pela Fundação Mário Soares e que tinha como recomendação ‘Destapar os Tarrafais’, em 2009. Quando comecei a falar disso houve muita contestação, com pessoas aqui, académicos inclusivamente, a defenderem que não houve um campo de concentração na ilha de São Nicolau, mas prova-se, afinal, que houve sim um campo de concentração”, afirma José J. Cabral.

O escritor sublinha, então, que esta “foi a primeira experiência portuguesa de encarceramento em regime fechado” porque “até esta altura, Portugal utilizava ilhas como prisões, portanto, não havia prisões físicas de parede”. “Vai-se ensaiar em São Nicolau o novo modelo prisional. De facto, existiu e precisa de ser conhecido esse campo”, sublinha.

O campo de concentração de São Nicolau foi concebido devido à necessidade de internamento dos revolucionários que tomaram parte activa na revolta da Madeira de 1931, um movimento que – como lembra Victor de Barros “também se propagou aos Açores e à então colónia da Guiné”. “Se, historicamente, uma das respostas da Ditadura foi a deportação em massa da maioria dos revoltosos envolvidos, também não é menos verdade que o regime endurece os mecanismos repressivos através do internamento dos deportados na ilha de S. Nicolau. Reprimir a revolta através da deportação constituía um dos meios de abortar novas investidas contra o regime e contra a ordem política”, pode ler-se na tese.

É o que nos reitera José J. Cabral, ao explicar que "depois da revolta da Madeira, em 4 de Abril de 1931, decide-se tentar um outro modelo para prender as pessoas”.

Primeiro, vão parar ao “Lazareto, um espaço confinado que havia na Praia, mas não tinha grande segurança”. Depois, decidem transformar o antigo Seminário-Liceu de São Nicolau, “um edifício amplo, de dois pisos, com várias dependências e que era fechado, com muros à volta de três, quatro metros” no “primeiro ensaio de confinamento, de deportação em regime fechado”.

Quando o campo esgotou a sua capacidade, construiu-se um outro campo de concentração no Tarrafal de São Nicolau com casernas pré-fabricadas alemãs para onde vão parte dos deportados que entretanto continuaram a chegar”, acrescenta.

Neste campo, teriam passado “mais de 250 pessoas”, porque “havia remanejamento, de vez em quando os presos de São Nicolau eram enviados para Angola ou Timor-Leste”, mas “fixos havia mais de 100 ou 150”.

As condições de vida dos deportados portugueses “eram terríveis”, num “regime fechado e muito severo”, com cerca de 70 guardas angolanos - “armados até aos dentes” - a vigiar o campo, no qual “morria gente de tuberculose”, a comida era "podre", “não havia saneamento, pouca água” e zero informação. Ou quase.

A entrada de informação era de tal forma censurada que essa gente presa – alguns deles gente notória: general de exército, médicos, professores universitários, advogados – tinham que ficar à espera que viesse um pedaço de papel de jornal, com que o carcereiro ou oficial tivesse limpado, para limpar o papel de fezes para ter um pouco de informação. Chamavam a isso Rádio de Merda”, continua José J. Cabral.

Com os problemas de logística, decide-se regressar “a um regime semi-aberto” para os deportados e desenvolve-se “uma tremenda interação social na ilha com namoros e mudança de hábitos, comportamentos”.

Cerca de um ano e meio depois e, por “pressão internacional de jornais L’Humanité, Le Monde e do Colonial New Bedford”, dá-se uma amnistia a 5 de Dezembro de 1932 que “liberta parcialmente deportados”. Porém, “é uma amnistia um bocado esquisita porque decreta simultaneamente residência fixa para alguns”, ou seja, “uma parte ficou ainda presa na ilha-prisão e vai ficar até 1951, mais vinte anos, até ter uma segunda amnistia”. Mas, nessa altura, “boa parte deles que estavam lá já tinham constituído família".

 

O que resta, hoje, do campo de concentração da ilha de São Nicolau?

Na altura, o campo estava dividido em dois segmentos: um era o edifício do antigo Seminário-Liceu que está “mais ou menos preservado” e o outro era em Tarrafal onde havia “casernas pré-fabricadas alemãs” que eram “de madeira sob pilastras” e de que sobram apenas as bases porque as casernas tinham sido transferidas para o Tarrafal de Santiago, inaugurado em 1936. Ou seja, do Tarrafal de São Nicolau sobram apenas “uns pequenos vestígios neste momento” e o espaço está “totalmente abandonado, sem uma placa”. José J. Cabral sublinha que até “é contraditório porque na vila do Tarrafal de São Nicolau encontram-se placas a indicarem o campo de concentração e chega lá e não há rigorosamente nada”.

O escritor espera que o antigo campo de concentração de São Nicolau integre a candidatura do Tarrafal de Santiago a Património da Humanidade, algo por que tem lutado desde 2011. Nesse ano, ele explica que, com base no trabalho de Victor de Barros, se assinou “um protocolo tripartido entre a Câmara Municipal do Tarrafal de São Nicolau, a Câmara Municipal do Tarrafal de Santiago e o Instituto do Património Cultural para trabalhar esse pacote como uma coisa só porque, na realidade, é o mesmo campo com duas fases”. “São Nicolau é o ensaio do que a vem a suceder no Tarrafal [ilha de Santiago], portanto, estamos perante o mesmo projecto e faria todo o sentido”, sustenta.

Porém, José J. Cabral diz não ter feedback por parte do governo. “Eu já escrevi ao ministro, já escrevi a toda a gente, estou à espera que eles considerem essa possibilidade porque, do meu ponto de vista, só enriquece a candidatura pela notoriedade das figuras que estiveram em São Nicolau, pelo facto de ser um ensaio, pelo facto de remeter-nos para a Primeira Guerra Mundial”, acrescenta.

 

Quem são os "heróis esquecidos"?

Este é um outro capítulo essencial à história do campo de concentração de São Nicolau: muitos dos deportados portugueses tinham lutado na Primeira Guerra Mundial, como “o general Adalberto Gastão Sousa Dias, o tenente Camões e o Silvo Pélico”.

Além de terem estado na Primeira Grande Guerra, José J. Cabral diz não ter dúvidas que eles foram, depois, “precursores do 25 de Abril” porque “começaram a revolta de 1926 no Porto, a outra revolta de 1927, a revolta da Madeira”. “Depois, houve sucessivas revoltas, mas eles foram os que começaram a lutar e terão sido eles os precursores. Eu acredito absolutamente, não duvido disso”, sublinha. São “heróis esquecidos”, resume o escritor.

Por exemplo, o tenente Camões tem “uma história de vida fantástica”. Ele “pediu ao pai para o emancipar para ir para a Primeira Guerra Mundial” e, no regresso, depois de terminar o curso de Medicina na Universidade de Coimbra, foi para o exército lutar contra o regime do interior e aquando da revolta da Madeira, em que ele era suposto “ir lá para abafar a rebelião”, juntou-se à revolta. Daí ter sido deportado para Cabo Verde.

O tenente Camões “é rigorosamente esquecido em Portugal” mas em São Nicolau “era conhecido e venerado como o doutor do povo” que “palmilhava a ilha a pé para cuidar das pessoas” e “nos anos 40, vinham os pobres, com fome, sem dinheiro para comprar medicamentos, e ele dava um bilhete e dizia: vá à farmácia, vá aviar, que eu pago no final do mês”.

Maria Teresa, filha do tenente Camões, corrobora o relato, lembrando que “contam que ele organizava filas para distribuir um bocado de comida às pessoas famintas”. Em contrapartida, o pai “não falava muito” da Primeira Guerra, nem da revolta da Madeira, nem do campo de concentração, mas “falava muito da fome, das doenças, da miséria que o povo de São Nicolau sofreu”. “E ele lutou muito” para ajudar, relembra. Mas “não era homem que andasse atrás de homenagens”, conclui.

Os irmãos Mário e Maria Teresa Camões, filhos do "doutor Camões", um dos deportados portugueses do campo de concentração de São Nicolau, em Cabo Verde.
Os irmãos Mário e Maria Teresa Camões, filhos do "doutor Camões", um dos deportados portugueses do campo de concentração de São Nicolau, em Cabo Verde. © Carina Branco/RFI

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