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O longo caminho para a reconciliação em Angola

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Ao fim de mais de quatro décadas, os angolanos ouviram um pedido oficial de perdão pelas “execuções sumárias” de milhares de pessoas durante os conflitos ocorridos entre 11 de Novembro de 1975 e 4 de Abril de 2002, nomeadamente o 27 de Maio. Entretanto, começou o processo de entrega de certidões de óbito e de localização de valas comuns para encontrar os restos mortais das vítimas. Muitos agradecem a iniciativa histórica, mas exigem justiça e uma investigação. 

© 27maio.com
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Nesta reportagem, começamos com uma das páginas mais sombrias da história da Angola independente, da qual apenas agora se começa a quebrar o silêncio ao mais alto nível do Estado. A repressão que aconteceu na sequência do 27 de Maio de 1977 fez com que dezenas de milhares de pessoas tenham sido presas, torturadas e fuziladas sem julgamento prévio.

De acordo com o livro “Agostinho Neto, Uma Vida sem Tréguas”, editado por Acácio Barradas, “o número de militantes do MPLA baixou de 100 mil para 32 mil membros” naquilo que foi chamado de “movimento de rectificação”.

O 27 de Maio também foi chamado de “Purga em Angola”, como ilustrado no título do livro de Dalila Cabrita Mateus e Álvaro Mateus que sublinham que “a purga não se ficou pela expulsão de militantes do Movimento. Extravasou das suas fileiras para atingir simpatizantes e, também, amigos e familiares dos purgados". Nessas páginas lê-se que “dezenas de milhares de pessoas, homens e mulheres, velhos e novos, até adolescentes, passaram por cadeias e campos de concentração. E muitos milhares foram mortos em aterradores interrogatórios ou em fuzilamentos sumários, sem sequer terem sido julgados e sem se saber ainda onde repousam os corpos.

Houve quem sobrevivesse. Como? Nem os próprios sabem. Moisés António da Silva Marçal era militar e passou três anos no temível campo da Calunda, no Moxico. Ali estavam 5.000 homens, sobreviveram 900. Uns “morreram a tiro, à fome”, outros eram “abatidos pelos militares” quando tentavam ir à lavra procurar mandioca.  “Só de ver tantos colegas a morrer, cada um esperava a sua hora, éramos mais mortos que vivos porque não sabíamos a que hora vais viver e a que hora vais morrer”, conta.

Moisés Marçal chegou ao campo da Calunda no dia 4 de Setembro de 1977. Dois dias depois, assistiu a uma reunião feita pelo chefe do campo, na presença das populações dos bairros circundantes, em que a mensagem foi a seguinte: “Estes indivíduos é que mataram o Dangereux (...) Por essa razão eles vieram aqui para morrer. O camarada Agostinho Neto mandou-os aqui não é para voltar. Estão 25% debaixo de um cão morto”.

“Para simbolizar, pegaram em três colegas nossos, três, cada um é que cavou a sua sepultura. Vai cavando, vai deitando-se na sua sepultura e lhe perguntam:’ Está à tua medida?’ (...) Dividiram dez por cada indivíduo para fuzilar. Dez armas apontadas no indivíduo. Quando o chefe deu ordem ao disparo, cada dez indivíduos apontavam num só. Mesmo assim, como se não bastasse, cada dez correram ao buraco onde o indivíduo caiu para descarregar todas as munições. Aquilo é horrível e nenhum de nós podia deitar uma lágrima. Ali começou o nosso inferno, começou o nosso inferno...”

Para sobreviver “ao inferno”, Moisés Marçal chegou a comer camaleão, “o camaleão que é altamente venenoso”. Como? “Porque nós comíamos de tudo o que nos aparecesse, de tudo mesmo. Raízes, bastava saber que esta raiz é mole e tu comes só para beber água. Aquele campo, não sei se foi um campo onde já se matava gente na era colonial, mas havia muitas ossadas dispersas e, ao princípio, era procurar aqueles ossos para meter no fogo de aquecer e tentar mastigar para beber um bocadinho de água. É horrível, é horrível...”

Hoje, os angolanos ainda não conhecem tudo o que se passou no 27 de Maio e nos anos que se seguiram. Uns refugiaram-se no silêncio, outros foram tentando denunciar e outros, ainda, começam agora a quebrar o tabu. A começar pelo Presidente do MPLA e de Angola, João Lourenço, que pediu perdão e desculpas públicas às vítimas em nome do Estado e ordenou a localização e devolução dos restos mortais às famílias.

“Vimos junto das vítimas dos conflitos e dos angolanos no geral, pedir humildemente, em nome do Estado angolano, as nossas desculpas públicas e o perdão, pelo grande mal que foram as execuções sumárias naquela altura e naquelas  circunstâncias”, afirmou, no discurso à nação, João Lourenço a 26 de Maio deste ano.

Sobreviventes e familiares das vítimas agradecem, mas querem mais. Reclamam “a verdade histórica” sobre o que se passou no 27 de Maio e a seguir. É que a versão oficial fala neste dia como uma tentativa de golpe de Estado por parte de “nitistas”, ou seja, elementos ligados ao grupo de Nito Alves. Este influente antigo comandante da 1ª Região Militar foi depois ministro da Administração Interna até ser condenado por alegado fraccionismo e ver o seu ministério extinto, sendo expulso do MPLA por contestar o rumo que Agostinho Neto estava a dar ao partido e a Angola.  A outra versão, contada por sobreviventes e estudada por vários historiadores, fala em insurreição desarmada de massas e manifestações populares de apoio a Nito Alves.

“De que lado está a verdade” é a pergunta que se faz Sizainga Raul, que tinha dois anos quando o pai, o militar Domingos Fernandos de Barros, conhecido por “Sabata”, desapareceu e a sua mãe foi presa e torturada mais de um mês logo após o 27 de Maio.

“Até hoje não se tem ideia de quantas vítimas este processo deu. O que é que esteve na origem deste massacre. Fala-se em tentativa de golpe de Estado. Será que houve essa tentativa? Como? Hoje, nós vemos choques nas informações: as informações que nos deram anteriormente e agora as informações que os próprios sobreviventes vão passando. De que lado está a verdade? Eu acho que se devia fazer uma investigação histórica isenta de questões políticas ou interesses políticos para que as gerações vindouras saibam em concreto o que é que aconteceu porque para evitar situações do género só sabendo a verdade é que podemos proteger isso”, considera Sizainga Raul que sublinha ter perdoado a quem lhe matou o pai.

Nelson do Nascimento é outro órfão do 27 de Maio. Tinha 12 anos e meio quando o pai desapareceu, em Junho de 1977. Joaquim Maria do Nascimento tinha 31 anos, era militar da DISA, a Direcção de Informação e Segurança de Angola, e foi mais uma das milhares de vítimas do pós-27 de Maio. O filho, hoje com 57 anos, passou grande parte da sua vida a tentar perceber o que aconteceu e a exigir a verdade. Primeiro porque é uma questão de “não deixar que ele desapareça pior que um cão”, depois porque “não se pode falar em reconciliação sem que a verdade venha ao de cima”.

“Foi uma coisa absolutamente dantesca. Não estamos a falar de 500 pessoas, nem 2.000 nem 5.000. Não. Estamos a falar de entre 30.000 a 80.000. Tendo em conta a gravidade do que aconteceu e a duração dessas execuções porque aquilo aconteceu ao longo de mais ou menos dois anos, de 77 a 79 - altura em que finalmente o Presidente Agostinho Neto decide dissolver os serviços que andavam ali a executar as pessoas - é necessário fazer um trabalho de resgate da verdade histórica sobre o que de facto aconteceu.  E não se pode falar em reconciliação sem que a verdade venha ao de cima. Não existe isso, reconciliação sem verdade. Não existe. Doa a quem doer.”

Nelson do Nascimento reclama também que seja feita justiça e que os responsáveis dos crimes sejam levados a tribunal, por exemplo, sob o modelo dos Julgamentos de Nuremberga. “Não se trata de vinganças pessoais, não. É a tal questão da verdade. Mesmo os algozes são humanos. Eu tenho a certeza que eles têm projectos para os filhos, netos e, para que haja uma paz duradoura em Angola, mesmo para lá  das nossas vidas, o ideal é que reparemos as coisas e não deixemos problemas dessa gravidade para gerações futuras. Portanto, é necessário limpar, é necessário preparar o futuro das novas gerações e sem tratarmos da verdade não vamos a lado nenhum. É só adiar o problema.”

Em vez de uma Comissão da Verdade, Angola optou por criar, em 2019, a Comissão para a Implementação do Plano de Reconciliação em Memória das Vítimas dos Conflitos Políticos. A Civicop abrange não apenas os que morreram no âmbito do 27 de Maio, mas as vítimas dos conflitos desde a independência, a 11 de Novembro de 1975, até ao final da guerra civil, a 4 de Abril de 2002. O ministro da Justiça e dos Direitos Humanos, Francisco Queiroz, é o coordenador da comissão e explica porque é que se decidiu não se levar os responsáveis à justiça.

“Nós temos uma forma de encarar e resolver os conflitos numa perspectiva de reconciliação e perdão. O que nós queremos não é responsabilizar o A, o B ou o C, mas queremos é virar a página desse momento trágico através da reconciliação e do perdão porque se enveredássemos pelo caminho de identificar as pessoas, em vez de resolvermos o problema, iríamos levantar um problema mais difícil de resolver e que não conduziria à reconciliação e ao perdão”, justifica.

Estará Angola preparada para se reconciliar? Os irmãos Gilberto da Silva e Josefa da Silva têm as suas dúvidas. O seu pai, António Galiano da Silva, conhecido por Galiano Kitumba, foi uma das vozes da revolta na Rádio Nacional a 27 de Maio de 1977 e a sua família foi destruída. Além do pai, morreram três tios, outros foram presos e vários familiares e amigos foram também presos e torturados.

Josefa da Silva tem, por isso, “dúvidas em relação à reconciliação nacional”, mas pessoalmente já perdoou quem matou o pai.

Para o seu irmão, perdoar cabe a cada um, mas a justiça tem um papel a cumprir em nome do Estado: “Um país só pode ser país se existir justiça. Eu acho que toda a gente que cometeu crime tem que pagar. Não vou ser eu a condenar, até pode não ser a justiça porque o tempo passou e os crimes prescreveram, mas a sociedade tem de saber o que é que se passou. Uma sociedade só pode viver bem se expurgar os seus fantasmas. Se continuarmos a viver com esses fantasmas, nós não vamos ser uma sociedade justa.

O presidente da Fundação 27 de Maio, o general Silva Mateus, recorda que teria havido entre 30.000 a 80.000 vítimas. Quanto ao trabalho da Civicop, mostra-se satisfeito. “Estamos satisfeitos porque a comissão está precisamente a tratar aquilo que são os nossos objectivos estatutários. Nos nossos objectivos temos a abertura dos arquivos da DISA, a localização e enterro das vítimas, a construção de um memorial, a emissão de certidões de óbito e o komba nacional que é o término do óbito. Todas essas questões estão a ser resolvidas.”

A um ano das presidenciais e do vigésimo aniversário da paz em Angola, que peso é que o tema da reconciliação nacional pode ter nas eleições? Para o investigador da Associação Núcleo dos Amigos da História, Andrade Nzagi, o MPLA pode vir a ganhar algum capital político.

“Este processo vai ter um certo peso uma vez que as pessoas que perderam os seus familiares no 27 de Maio e a população que perdeu familiares na guerra civil, claro que agora vão encarar o MPLA, particularmente o Presidente João Lourenço como uma pessoa do bem, uma vez que o 27 de Maio ocorreu em 1977, entrou o José Eduardo dos Santos, nunca tocou nessa questão de fornecer os boletins de óbito e chega o João Lourenço e consegue fazer isso. Então, é um certo peso político para um lado da população (...) o lado que fez as pazes com o partido no poder que aceitou que errou com o massacre do 27 de Maio”, considera o professor de história.

Se a reconciliação nacional pode ter peso nas próximas eleições gerais, qual será o posicionamento de outros partidos que participaram na guerra civil de Angola?

O general Paulo Lukamba Gato, que foi secretário-geral da UNITA após a morte do fundador Jonas Savimbi, argumenta que o primeiro líder do partido já tinha reconhecido “o passivo da UNITA” e que ele próprio pediu desculpas pelos “horrores da guerra”.

“O presidente fundador, o velho Jonas, na 16ª conferência do partido em Abril de 2001, levantou - de uma maneira clara, objectiva e bastante corajosa - os problemas que ele considerou de 'o passivo da UNITA'. No passivo da UNITA cabem todos esses casos que, ou foram mal julgados ou foram mal executados, mas que foram assumidos pelo próprio presidente fundador. Eu assumi a direcção do partido logo a seguir à morte do presidente e do vice-presidente em Abril de 2002. Uma das primeiras medidas que eu tomei foi em nome da UNITA a pedir desculpas públicas pelos horrores da guerra”, declarou Paulo Lukamba Gato.

Como o processo de reconciliação nacional abarca os conflitos políticos decorridos entre 11 de Novembro de 1975 e 4 de Abril de 2002, o presidente da FNLA, Lucas Ngonda, lamenta que se tenha deixado de lado a guerra de libertação.

“Abriram-se muitas fracturas desde 1961. Muitas pessoas desapareceram, muitas famílias –de um lado e do outro dos que lutavam – desapareceram. Os familiares sobreviventes certamente que querem saber onde foram os corpos dos seus familiares. O nosso ponto de vista é que esta reconciliação, já que a iniciativa foi do próprio Presidente da República devia ser mais abrangente para que pudéssemos enterrar o processo de uma vez por todas”, considerou Lucas Ngonda.

As armas estão caladas mas a paz é frágil. O alerta é feito pelo reverendo Daniel Ntoni-a-Nzinga, que foi presidente do Comité Inter-Eclesial para a Paz em Angola de 2000 a 2008.

A reconciliação nacional não é apenas fazer um discurso, dizer que a partir de agora estamos bem. Não. É preciso chegar a um certo entendimento comum. Por exemplo, o Presidente pediu perdão por aquilo que aconteceu mas não há explicação porque é que aconteceu. Essa é a parte que até aqui não foi bem tratada e a qualquer momento, uma fricção toma uma forma de violência e alguém pode lembrar-se desses momentos. A reconciliação não se faz apenas ao dizer “reconheço” ou “perdão”, mas tem que se fazer um certo trabalho para que as partes no conflito entendam o que fizemos mal e, a partir de agora, entendemos o que é que se deve evitar”, alerta o pastor que também participou no processo de paz pós-Apartheid na África do Sul.

Das palavras aos actos é o que espera toda uma nação que ainda não curou as feridas das guerras que viveu. Tanto mais que as contas da história do país mostram a paz com um défice de tempo em relação à guerra. Depois de 27 anos de guerra civil, sem contar com a guerra de libertação, Angola vai comemorar, no próximo ano, 20 anos de paz. Um aniversário envolto de esperança, mas que não escapa aos alertas que vão surgindo da sociedade civil.

(Pode ouvir aqui as entrevistas completas de cada um dos intervenientes desta reportagem.)

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