Acesso ao principal conteúdo
Convidado

Cabo Verde: “Nós dançamos para não morrermos”

Publicado a:

António Tavares é coreógrafo, bailarino, investigador, músico, desenhador e agitador cultural. É também director artístico do Centro Cultural do Mindelo e do espaço Bombu Mininu, na ilha de São Vicente, em Cabo Verde. António Tavares pensa a sua dança no universo da descolonização e diz que Cabo Verde está à espera da “revolução corporal” para se libertar das amarras do tempo colonial. “Nós dançamos para não morrermos” é uma das frases que deixa sobre Cabo Verde.

António Tavares, Coreógrafo e bailarino. Mindelo, 25 de Março de 2022.
António Tavares, Coreógrafo e bailarino. Mindelo, 25 de Março de 2022. © Carina Branco/RFI
Publicidade

 

 

17:37

Artes António Tavares

António Tavares é considerado como uma das figuras-chave na história da dança contemporânea africana. Coreógrafo, bailarino, investigador, músico, desenhador, agitador cultural, ele é também director artístico do Centro Cultural do Mindelo e do espaço Bombu Mininu, na ilha de São Vicente, em Cabo Verde.

A dança é muito mais que performance artística, é filosofia, política e utopia. É que António Tavares pensa a sua dança no universo da descolonização e diz que Cabo Verde está à espera da “revolução corporal” para se libertar das grilhetas do passado.

“O nosso corpo está ainda nas grilhetas da dúvida, do medo (...) Todo o meu trabalho é como se estivesse a tatuar o meu corpo, eu vou dos pés à cabeça a perguntar."

Todo o seu trabalho tem “rastilho de memória colonial” e tudo começou quando era menino, num campo de futebol, nas vésperas da independência. “Nesse dia, quando eles dispararam contra nós, no campo de futebol, a partir daí comecei a ganhar essa consciência, adulterada para o melhor, com a chegada da independência, naturalmente com o pensamento de Cabral e essa ideia pan-africanista. Ia vendo isso, mas de forma inconsciente. Quando começo a ter a consciência dessa preocupação é quando começo realmente a estudar o que é que seriam os meus movimentos porque percebo que o nosso corpo tem mazelas que eu queria entender e percorro na descoberta”, descreve.

O coreógrafo considera que “a dança é a farmácia dos cabo-verdianos” e explica porquê: “Nós dançamos para não morrermos. Desde sempre. Portanto, ela é mesmo a farmácia. Quando chegaram os anos 80 e deixámos de dançar e passámos a dançar nas discotecas, começámos a ter doença, a engordar, a correr, a ir para ginásio... Nós não tínhamos este tipo de hábitos, as pessoas encontravam-se. Todas as danças de Cabo Verde são, grande parte delas, de efervescência, um espaço espontaneamente vulcânico e acabam por explodir. Vais com um corpo ao chegar e sais com um outro corpo porque aquela dança se faz na conjugação com os outros e vais sair dali completamente curado.”

Diz, ainda, que é necessária uma “revolta” para desmontar o pensamento colonial e que “é preciso abolir essas dúvidas e medos existenciais e a desconfiança contínua e permanente de que não somos capazes”.

António Tavares alerta que os cabo-verdianos são “mutilados pela saudade, saudade, saudade” e pelo medo permanente da perda, como se fosse uma “dança de escaravelhos” em que “todos têm picos e todos se querem picar” num “espaço existencial da dúvida” que alimenta “o medo da traição”.

“Este corpo, subserviente, é um corpo que tem valências imensas, mas, tal como o elefante amarrado à corda que desconfia da sua capacidade e não consegue fazer a sua revolta, nós não entendemos o nosso corpo, não utilizamos essa capacidade, essa força, como o elefante (...) Nós temos de ganhar essa consciência e deixar de duvidar da nossa capacidade. Quando isso acontecer, vamos ter realmente aquilo que precisamos que é a libertação total”, sugere.

O bailarino pressagia que “a revolta passa pela contra-dança” e que “Cabo Verde vai ter uma revolução social em 2035”. Na sua leitura, Cabo Verde ainda dança a contra-dança, mas deveria, antes, dançar batuque.

“A contra-dança é uma multa. Quando tomarmos a consciência que esta é uma multa ou uma minuta, que estamos aqui a repetir aquilo que nos deixaram fazer – em avant, vai à frente, em arrière, vai atrás – portanto, nós estamos sendo dirigidos por uma minuta, ora pelo Banco Mundial, ora pelo FMI ou por esses subsídios do sistema de cooperação. Nós estamos a fazer a tal contra-dança. Na realidade, nós não inventamos a nossa dança. Se o estivéssemos a fazer a partir do batuque, era a ideia de uma comuna, em que todos vão lá para deixar algo e participar e quando eu vou para o centro dançar o meu solo, todos me apoiam. Seria diferente, completamente diferente.”

António Tavares está actualmente a trabalhar na peça “K’mê Deus”, um espectáculo de 2003 que levou a vários países mas que nunca apresentou em Cabo Verde. Agora, vai revisitá-la com o filho e mostrá-la no “Il y a Dance”, 1º Encontro de Dança Contemporânea, em Junho.

O coreógrafo criou projectos como: “A Ilha”, “Clan-Destinos”, “Fou-Naná” (Centro Cultural de Belém-1997), “SOBREtudo” (Danças na Cidade’97), “Danças de Câncer” (uma co-produção Portugal/Cabo Verde, com música original de Vasco Martins 1999), “Caminho Longe” (New Jersey Performing Art Center – Nova York), “Different Voices” (Bates Dance Festival), espectáculo multimédia “Blimundo”, do cineasta caboverdiano Leão Lopes, “Spidaranha”, “Ópera Crioulo” (2002), “Recordai” (Mindelo, 2003), “K’mê Deus” (2003), ” White Noise” (Gulbenkian, 2005), “Some Voices” (Bélgica, 2005), “L’ Abbandono al Tempo” (Bélgica, 2006), Aniki Bobo (Casa da Música-Porto, 2008), Ópera “Crioulo” (CCB, Grande Auditório, 2009), Jus Soli 2011 (CCB Fora de Si).

O coreógrafo começou o seu trabalho na cidade do Mindelo, como bailarino do grupo Mindel Stars, com o qual faz a sua primeira digressão internacional em 1986, passando pela Holanda, Senegal, França e Macau. Em 1991 funda os grupos Crêtcheu e Compasso Pilon, com um trabalho de pesquisa sobre a dança, sobretudo as danças tradicionais cabo-verdianas. Bolseiro do Atelier Mar em Portugal, estudou na Escola de Artes e Ofícios do Espectáculo/Chapitô, na Escola Superior de Dança de Lisboa e no Curso de Coreografia na Fundação Calouste Gulbenkian. Foi fundador da Associação de Artistas Africanos Portugal/Tchon di Nôs e regressou em 2001 a Cabo Verde, onde fundou a Associação Fou-Naná Projectos/Centro de Pesquisa Cultural. António Tavares aconselhou Pina Bausch, uma das mais importantes bailarinas e coreógrafas do século XX, na criação da peça 'Masurca Fogo', foi mentor da bailarina e coreógrafa cabo-verdiana Marlene Monteiro Freitas, e trabalhou com vários coreógrafos portugueses como Olga Roriz, Aldara Bizarro, Francisco Camacho, Rui Nunes e José Laginha. É actualmente director Artístico do Centro Cultural do Mindelo e do espaço Bombu Mininu, na ilha de São Vicente.

(Entrevista feita no Mindelo, com um excerto de um tema de Vasco Martins, o compositor com quem também estivemos à conversa e que publicaremos em breve.) 

NewsletterReceba a newsletter diária RFI: noticiários, reportagens, entrevistas, análises, perfis, emissões, programas.

Acompanhe toda a actualidade internacional fazendo download da aplicação RFI

Ver os demais episódios
Página não encontrada

O conteúdo ao qual pretende aceder não existe ou já não está disponível.