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“Molière passou a ser cabo-verdiano”

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Cabo Verde crioulizou Molière. O símbolo maior do teatro e da língua francesa chegou ao Mindelo a falar crioulo e a agir como cabo-verdiano. E não envelheceu apesar de, em 2022, se comemorarem os 400 anos do seu nascimento. É o que acontece quando se é imortal e universal. Os “pais” do "Molière cabo-verdiano" são o encenador João Branco e o Grupo de Teatro do Centro Cultural Português do Mindelo que peneiraram as obras “Médico à Força” e “Escola de Mulheres” com a “crioulização cénica”.

João Branco, Encenador e autor de “Crioulização cénica - Em Busca de uma Identidade para o Teatro Cabo-Verdiano”
João Branco, Encenador e autor de “Crioulização cénica - Em Busca de uma Identidade para o Teatro Cabo-Verdiano” © Carina Branco/RFI
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“Molière é nosso” e “Molière passou a ser cabo-verdiano” foram algumas das reacções do público cabo-verdiano quando o encenador João Branco “crioulizou” Molière nos anos 2000, 2013 e 2019. As peças "Médico à Força" e "Escola de Mulheres" foram traduzidas para o crioulo, adaptadas à realidade local e musicadas com ritmos de Cabo Verde. O francês, conhecido como a língua de Molière, deu origem a um “crioulo molierano” e algumas das falas do século XVII foram cantadas em mornas.

Numa altura em que se celebram os 400 anos do nascimento do dramaturgo francês, fomos à descoberta do “Molière cabo-verdiano”. O “príncipe da ironia” sentiu-se em casa no Mindelo porque encaixou na perfeição com o espírito dos residentes e adoptou os ritmos e os costumes locais. Por isso, no Dia Mundial do Teatro, 27 de Março, damos-lhe a conhecer esta experiência teatral inédita "made in Cabo Verde".

18:34

Convidado João Branco

Há 25 anos que João Branco, encenador do Grupo de Teatro do Centro Cultural Português do Mindelo, em São Vicente, leva a palco “crioulizações cénicas”, para além de todos os espectáculos inspirados de autores cabo-verdianos e outros oriundos de um repertório mais vasto de dramaturgos contemporâneos. Depois de a sua companhia se ter “apropriado” de obras de referência de William Shakespeare, Garcia Lorca e Molière, João Branco escreveu como tese de doutoramento “Crioulização cénica - Em Busca de uma Identidade para o Teatro Cabo-Verdiano”. Mas o que é a “crioulização cénica” e como é que surgiu o “Molière cabo-verdiano”?

Da mesma forma que chamamos crioulização, de um ponto de vista antropológico a mestiçagem mais qualquer coisa, a crioulização cénica também pode ser definida como uma adaptação mais qualquer coisa”, começa por explicar João Branco.

“Nós criámos uma metodologia de trabalho de apropriação de textos da dramaturgia universal para torná-los objectos artísticos identificáveis e, culturalmente, que sejam de Cabo Verde, de um ponto de vista daquilo que são as suas principais características e a sua matriz identitária. Esse processo de crioulização cénica, aplicado às artes cénicas, foi criado por nós, sim”, admite o encenador quando questionado se a sua companhia foi a primeira a fazer a tal “crioulização cénica”.

A primeira peça de teatro a passar por esse processo foi “A Casa de Bernarda Alba”, de Garcia Lorca (que, na versão crioula estreada em 1997, se chamou “A Casa de nha Bernarda”). Em 1998, foi a vez de “Romeu e Julieta”, de William Shakespeare e, em 2000, “Médico à Força”, de Molière. Seguiram-se muitas outras, com destaque para “Escola de Mulheres”, também de Molière, em 2013 e 2019, “As Três Irmãs”, de Tchékhov, “A Sapateira Prodigiosa” e “Bodas de Sangue” também de Garcia Lorca, e “Tempêstad” de Shakespeare.

“Se o autor é universal, ele é também de Cabo Verde”, lança o encenador, sublinhando que há, evidentemente, a preocupação de “manter o espírito do autor e do que ele representa no contexto dramatúrgico universal”.

“Se nós dizemos que Shakespeare, ou Molière ou Garcia Lorca são autores que fazem parte destas prateleiras da dramaturgia do mundo, nós também temos uma quota parte dessa posse e dessa possibilidade de explorar esses universos literários e de trazê-los para o teatro. E é isso que fizemos”, resume.

A “crioulização cénica” de Molière foi muito aplaudida pelo público e “Molière passou a ser cabo-verdiano”. “Quando nós fizemos Escola de Mulheres - que foi montada pela primeira vez em 2013 e depois remontada em 2019, por altura da 25ª edição do Festival Mindelact - houve pessoas que diziam “Molière é nosso. Agora, Molière é nosso. Molière também é cabo-verdiano, pelo menos este aqui que nós estamos a mostrar”, recorda.

E se a recepção do público foi tão “espectacular” é porque “a ironia do Molière encaixa na perfeição naquilo que é a ironia do mindelense”. “Essa implacabilidade na autocrítica encaixa de uma forma também ela implacável na forma como o Mindelo se olha a si próprio e se ri dos seus próprios defeitos.”

“O Molière tem sobretudo a ver com o carácter irónico dos seus textos. Molière é uma espécie de príncipe da ironia na dramaturgia mundial e o mindelense é um povo extremamente irónico, principalmente quando fala de si próprio e quando se ri de si próprio, quando se vê ao espelho. O Molière escrevia usando basicamente essas armas literárias, fazendo apologia aos muitos defeitos do povo francês. Ele era implacável na sua escrita, na forma como colocava a nu aquilo que nós chamamos os podres da sociedade”, descreve o encenador.

Depois, foi a própria tradução do francês para crioulo e a adaptação das obras à realidade cabo-verdiana, especialmente mindelense, assim como a presença de ritmos de Cabo Verde, que crioulizaram ainda mais Molière.

“Escola de Mulheres tem, ao contrário do Médico à Força, um cunho extremamente urbano e directamente relacionado com aquilo que são as características do Mindelo. Todo o espectáculo e toda a construção e opções de encenação estão direccionadas para aquilo que são as características sociais e o tecido social da cidade do Mindelo nas suas diversas vertentes.”

A “Escola de Mulheres” foi encenada como uma “comédia mindelense a preto e branco”, que se inspirava de Molière mas homenageava Mindelo, o seu cosmopolitismo e a sua musicalidade. O pianista Khali Angel tocava desde que o público entrava até ao final do espectáculo, num piscar de olhos ao universo do cinema mudo. Havia mornas e coladeiras de compositores locais, ritmos a condizer com os diferentes sotaques e culturas das personagens, desde jazz, samba e até “chanson française”.

“Essa paleta musical tem a ver com a própria musicalidade do crioulo” e com “o amor pela música em si enquanto forma de expressão artística”, acrescenta João Branco.

“O facto de Escola de Mulheres ter todos esses géneros musicais tem a ver com esse carácter cosmopolita da cidade do Mindelo e nesse espectáculo nós quisemos sobretudo brincar com isso, não só através dos sotaques, mas também através das opções musicais. O nosso protagonista muitas vezes fala de uma determinada coisa e no fim da fala, ele fala cantando uma morna. Ao longo do espectáculo, ele canta sete, oito ou nove mornas muito conhecidas de Cabo Verde mas cujas letras vêm das suas falas do texto do Molière. Não são as letras das mornas, são as letras das falas dele que nós adaptámos à musicalidade da morna original. Então, é quase como um musical: ele está a falar e de repente já está a cantar”, descreve.

É que o texto permaneceu “90 por cento” igual, sublinha o encenador: “Uma coisa que acontece nas crioulizações cénicas é que nós mudamos praticamente tudo o que está relacionado com o contexto original do texto e, no entanto, do texto nós não mudamos quase nada. Portanto, do texto original, nós podemos dizer que cerca de 90 por cento do texto original está no espectáculo. Depois, o facto de termos os actores cabo-verdianos com a nossa crioulidade, com a nossa musicalidade, com a banda sonora que utilizamos, com o contexto social e cultural que é utilizado nestas crioulizações, é quanto baste.”

Com João Branco, a linguagem francesa do século XVII adquiriu uma natureza melódica e musical característica das ilhas de Cabo Verde no começo do século XX. A língua francesa, conhecida como a língua de Molière, deu origem a um “crioulo molierano”, assim como a companhia já tinha criado “um crioulo shakespeariano ou um crioulo de Garcia Lorca”. “O crioulo moleriano tem, no nosso caso, essa característica de trazer sobretudo um contexto extremamente irónico para os diálogos, para as situações, para a comunicação oral que o teatro tanto preconiza”, continua.

Além de as peças serem traduzidas para crioulo, o desafio foi bem mais longe. Para mostrar o ambiente cosmopolita dos tempos áureos do Porto Grande da segunda metade do século XIX até ao início do século XX, João Branco criou com os actores diferentes sotaques para cada personagem: Arnolfo fala uma espécie de “portunhol crioulo”, Inês tem sotaque oriental, Crisaldo tem sotaque anglófono, Horácio tem um crioulo afrancesado, numa mistura entre o falar de um crioulo emigrado em Paris e a de um parisiense desterrado nas ilhas, enquanto os criados simbolizavam nacionalidades brasileira e italiana.

No “Médico à Força”, levado a palco no ano 2000, o texto também era quase todo em crioulo, salvo quando Esganarelo inventa o seu texto e fala numa “espécie de latim esquisito”. Do ponto de vista cénico, era “uma coreografia teatral” e “todo o espectáculo é quase como se fosse uma dança”.

Curiosamente, esta crioulização pioneira de Molière nunca foi apresentada em França que, provavelmente, desconhece a existência desta experiência teatral inédita em África com um dos seus maiores dramaturgos. Quanto ao regresso de Molière aos palcos cabo-verdianos, “para já não”, mas “de certeza absoluta que Molière vai voltar”, conclui o encenador.

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