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Vasco Martins: “A música é oxigénio”

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O compositor Vasco Martins introduziu a música sinfónica e electrónica em Cabo Verde e é uma figura singular no panorama musical do país. Compositor, músico, escritor, Vasco Martins foi também co-fundador do Festival da Baía das Gatas. Para ele, "a música é oxigénio" e foi de música, de inspiração, de alquimia e de opções de vida que falou com a RFI.

Vasco Martins, Ilha de São Vicente. Cabo Verde, 30 de Março de 2022.
Vasco Martins, Ilha de São Vicente. Cabo Verde, 30 de Março de 2022. © Carina Branco/RFI
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Diz que lhe chamam o eremita, por viver longe das multidões, no meio de um vale rodeado de montanhas, a caminho do Calhau, na ilha de São Vicente. Porém, ele tem a porta aberta para a ilha, para o som e para o silêncio, em busca da alquimia que lhe permite respirar e criar. Pioneiro da música sinfónica e electrónica em Cabo Verde, Vasco Martins é uma figura singular e visionária no panorama musical do país. Fomos conhecê-lo a sua casa, onde nos tocou uma das suas músicas.

Várias das suas composições foram interpretadas por orquestras internacionais e músicos de topo, como a pianista Olga Pratts, os guitarristas clássicos canadiano Andrew Mah e americano Scott Morris, a Orquestra da Gulbenkian, a North Czech Philharmonic Orchestra. Vasco Martins editou mais de 30 discos, foi co-fundador do Festival da Baía das Gatas e do grupo Kolá.

No vasto panorama musical de Cabo Verde, um país que é conhecido no mundo essencialmente devido à sua música, Vasco Martins é o único compositor de música sinfónica, ainda que também se tenha distinguido na música electrónica e que tenha composto músicas tradicionais cabo-verdianas, por exemplo, no disco “Coraçon Leve”, celebrado pela cantora Hermínia, e também nos álbuns “Vivências ao Sol” e “Dôs” com o músico Voginha. Fez, por outro lado, as orquestrações para dois violoncelos para o disco “Pessoa em Pessoas”, cantado pela lusofrancesa Bévinda, com poemas de Fernando Pessoa.

“A música para mim é o dia-a-dia, é oxigénio. Até agora fiz trinta e poucos discos. Cada álbum é uma etapa da minha vida”, descreve.

O compositor não gosta de etiquetas até porque, com ele, fazem ainda menos sentido. “Sempre fui honesto comigo. Se a inspiração é ligada à morna, componho morna. Se a inspiração é ligada à música sinfónica, componho música sinfónica. Se é ligada à música electrónica, componho música electrónica”, resume. “É simples”, diz, e, de facto, para ele tudo parece simples e natural.

Vasco Martins  acaba de lançar o disco “Epicenter” e como, “em geral”, leva “pelo menos um ano a preparar um álbum e há muita densidade”, agora está numa fase supostamente de “vazio” para “o descanso espiritual, mas também físico”, só que já começou a nascer a ideia de um novo álbum para 2023, está a escrever um novo livro sobre a morna e também a escrever poemas.

Toca apenas “quando vem a inspiração” e nunca “pelo hábito de tocar”, mas quando recebe visitas toca “sempre um ou dois temas, às vezes até mais”. A sua ilha, São Vicente, “influencia de uma maneira ou de outra a criação” e ouve “alquimia musical” no vento, no mar, na passagem das nuvens, “uma partitura natural” que alimenta as suas composições.

A sua ilha é uma prisão, uma caravela ou uma jangada de pedra? O músico-poeta fala no “insulamento” porque a sua fronteira “é uma fronteira azul, é o mar”: “Há estes dois sentimentos: há o sentimento do casulo, que é a ilha, e depois há a espécie de sentimento de isolamento em relação ao mundo, como a nossa fronteira é o mar, é o grande oceano Atlântico. Então, por vezes, há esse sentimento de isolamento que não é bom. Uma coisa é ser solitário, outra é ser isolado.”

Nascido em Queluz, em Portugal, Vasco Martins foi para Cabo Verde com nove anos e a música esteve sempre presente. Desde logo, a família paterna respirava música: o tio era apaixonado por óperas italianas e tocava guitarra portuguesa; as tias davam aulas de piano; o pai tocava violão e os seus compositores favoritos eram Beethoven e Wagner que ressoavam em casa. Também ouvia mornas, tangos, música popular, rock.

Aos 19 anos, dois acontecimentos mudam a sua vida e a sua carreira e levam-no a estudar música sinfónica num país onde não havia - nem há - orquestras sinfónicas. Tem a sua “primeira e única experiência com o LSD” e foi algo que “mudou tudo”. Nessa altura, já tocava mas nunca tinha pensado em fazer uma carreira na música sinfónica e electrónica. “Naquela viagem, de 24 horas, ouvia sons. Eu já tocava no grupo Kolá, abandonei o grupo e escrevi no livro de actas ‘Abandono o grupo porque vou escrever sinfonias’.” E assim foi, depois da surpresa total dos outros elementos da banda.

A segunda coisa reveladora aconteceu durante o filme “2001 - Odisseia no Espaço” de Stanley Kubrick, então projectado no cine-teatro Eden Park, quando ouve a parte final, “uma viagem de 18 minutos”, o famoso Requiem, do compositor húngaro György Ligeti. Ambas as coisas foram “um apelo profundo à música sinfónica e à música electrónica”, mas nunca deixou de compor outras estéticas, como a morna, por exemplo.

Nessa altura, começa a estudar música de forma autodidacta, depois de já ter “percorrido a classe professoral da música mas precisava de mais”. Em 1978, vai para Portugal gravar o primeiro LP, piano solo, “Vibrações”, e levou uma carta de recomendação para o maestro português Fernando Lopes Graça, escrita pelo fotógrafo português João Oliveira Freire, que tinha feito um trabalho de recolha de música na ilha de São Nicolau.

“Para mim era um mestre e ainda é. Repare, eu tinha vinte anos ou vinte e poucos anos e a bater na porta de um homem daquela configuração... Ele leu a carta, disse-me para sentar ao piano, perguntou-me se eu sabia tocar piano, para eu tocar uma peça minha. Eu sentei-me ao piano e toquei uma peça. E quando acabei de tocar, houve um silêncio, e eu tímido, em frente ao grande mestre. Ele disse-me, e nunca esquecerei essas palavras, ‘Venha quando puder’.”

De facto, assim que pôde, Vasco Martins voltou a bater novamente à porta do mestre, então com 75 anos, e durante um ano foi aprender composição sinfónica com ele, tocando à noite em bares e restaurantes para ajudar as despesas na estada em Lisboa, ainda que Fernando Lopes Graça nunca lhe tivesse cobrado qualquer lição. “Um grande pedagogo, um extraordinário pianista e um grande compositor também. Aprendi muito com ele”, resume.

Entretanto, o estudante ruma a França onde vai ter aulas de composição “com outro mestre”, Henry Claude Fontapié e edita o disco “Quinto Mundo”, com o qual participa na Tribuna Internacional da UNESCO de 1985. Como sabia que o aluno queria regressar a Cabo Verde, Fontapié aconselhou-o a estudar paralelamente etno-musicologia para garantir um ganha-pão no regresso, avisando-o que não arranjaria trabalho só como compositor.

Quando regressa a Cabo Verde, graças aos seus diplomas, foi convidado para um trabalho de recolha, investigação e tratamento da música de Cabo Verde, o que lhe permitiu a devida estabilidade para compor paralelamente a sua obra que viria a ter projecção, nomeadamente em França.

Em 1984, Vasco Martins foi ainda um dos fundadores do Festival Baía das Gatas, tantas vezes chamado de “Woodstock africano”. O objectivo ficou logo “cumprido” na primeira edição quando ele e os companheiros tiveram a noção de ter feito história e que “era uma coisa para ficar”. “O objectivo era tirar as pessoas da cidade, ter um palco virado para o mar e para o mundo ver, ter um palco com várias estéticas musicais ao longo de dois ou três dias”, recorda.

Este ano, uma das suas obras inéditas vai poder ser vista na fachada do novo edifício do Centro Nacional das Artes, do Artesanato e do Design, no Mindelo. Um trabalho musical, conceptual e visual que será revelado aquando da inauguração do museu. 

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