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Germano Almeida: São Vicente é uma “ilha de liberdade”

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O escritor Germano Almeida retrata, em várias obras, a essência do povo do Mindelo, em São Vicente. Por que é que “Do Monte Cara Vê-se o Mundo”? Os mindelenses são pessoas que “nasceram para o teatro”, que têm o Carnaval “no sangue”, que absorveram ritmos oriundos de todas as latitudes e que vivem numa “espécie de ilha da liberdade”, responde o escritor, numa conversa em que recebeu a RFI em sua casa, no alto da cidade.

Germano Almeida em sua casa, no Mindelo. 24 de Março de 2022.
Germano Almeida em sua casa, no Mindelo. 24 de Março de 2022. © Carina Branco/RFI
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14:44

Germano Almeida e a sua "ilha da liberdade"

A entrevista tem como mote a vida cultural de São Vicente e a frase que aparece em todos os guias turísticos relativa a “Mindelo, capital da cultura”. Será mesmo assim? Germano Almeida, autor de uma profusão de obras que retratam o seu país e as suas gentes, nomeadamente desta ilha que ele adoptou e o adoptou, é claro: “Mindelo já foi a capital da cultura de Cabo Verde.”

A resposta aponta, por isso, para o passado e para “os tempos áureos do Porto Grande”. O escritor acrescenta: “Incontestavelmente, até à independência, Mindelo era a capital da cultura de Cabo Verde porque tudo o que surgisse a nível cultural em Cabo Verde surgia em Mindelo e mesmo agora, para o teatro, as pessoas do Mindelo têm uma qualidade quase natural para a representação.”

Então, o que se passa hoje? “Neste momento, o Mindelo não pode ser considerada a capital cultural cabo-verdiana porque infelizmente é a ilha que tem sofrido mais com as crises após a independência”. A covid-19 nem sequer serve de desculpa. “Nem sequer vamos falar da crise da pandemia porque a crise da pandemia não aumentou significativamente as carências que o Mindelo já vinha sofrendo”, sublinha.

Ainda que tenha nascido naquela que chamou, em livro e em saudade, “A Ilha Fantástica”, a Boa Vista, Germano Almeida foi jovem para São Vicente e essa passou a ser a sua “segunda casa”. São Vicente e a cidade do Mindelo passaram também a ser personagens e cenários constantes das suas obras, com as suas gentes, as suas alegrias, os seus dramas, em retratos pintados com muita sátira e boas doses de ternura.

“As coisas de São Vicente ainda hoje me maravilham”, confessa Germano Almeida, com o olhar pleno de histórias contadas e por contar. É aqui que bebe muita da sua inspiração e, de facto, a ilha é um fervilhar de vida, de música, de pintura, de teatro, de dança, de desenrasque, de talentos, de aridez e de oásis. Não é à toa que escolheu para título de uma das suas obras “Do Monte Cara vê-se o Mundo”. Que mundo é este? “É um mundo particular no mundo cabo-verdiano”. O famoso Monte Cara protege e desvenda a cidade do Mindelo, recorda-lhe os tempos áureos do passado. “O Porto Grande foi o despertar de São Vicente”, resume o escritor, que diariamente faz os seus passeios junto à praia da Lajinha e se questiona com o impacto dos empreendimentos turísticos no Mindelo.

“Finalmente decidiu-se que São Vicente vai ser uma ilha turística. Se andar por aqui vai ver que isto praticamente está transformado num estaleiro de hotéis. Daqui a algum tempo, se tudo estiver a funcionar e se não houver mais pandemias, a gente já nem poderá sair para a rua. Tem que pedir licença! Da marginal até à Lajinha, está tudo coberto de hotéis”, descreve com o seu habitual olhar crítico e irónico.

Ainda assim, a ilha e o seu porto continuam a ser símbolo de liberdade. A história prova-o e as histórias contam-no. “São Vicente foi a última ilha a ser povoada e foi povoada com gente de todas as outras ilhas”, explica Germano Almeida, acrescentando que “São Vicente apareceu como uma espécie de ilha de liberdade.”

Porquê? “Porque o seu modo de vida era o porto. Entra um barco agora, está-se com ele, convive-se, duas horas depois ele sai. Aparece outro, portanto, não se cria uma ligação, é tudo gente que está de passagem. Isto permite ao natural daqui uma espécie de ideia de liberdade porque agora está com os gregos, mais logo está com os ingleses… Então, não se prende a nenhum deles.”

Há, ainda, a música, o Carnaval, o teatro e tanto mais. “É um povo de uma alegria espontânea. Isto está no sangue desta gente.”

Germano Almeida foi Prémio Camões em 2018, é o escritor mais lido e mais traduzido de Cabo Verde, mas continua a viver da advocacia e a brincar com a situação. Aos “77 ou 76 anos” – a brincar também fica perdido nas contas – diz que vai pedir uma pensão ao Estado – será que brinca ou fala a sério - para deixar de “andar às voltas com a advocacia”. E quem quiser viver de livros em Cabo Verde que acorde. “O escritor que quer viver de livros está feito”, resume. É, no entanto, pelos livros que Germano Almeida é conhecido no mundo, mesmo que o seu país não compre livros. Aqui emprestam-se e “lê-se muito”, advoga.

Vivemos muito de empréstimos de livros porque ainda até agora o livro não é considerado como um objecto com valor em si, com valor comercial. Se gasta dinheiro a comprar um livro, depois de o ler, já cumpriu o seu papel. Então empresta a outro, depois empresta a outro e empresta a outro. Digamos, as pessoas acham que em Cabo Verde lê-se pouco. Eu digo, lê-se muito. Agora, não se compra livros. O escritor que quer viver de livros está feito”, afirma.

Germano Almeida nasceu na ilha da Boa Vista, em 1945, é autor de obras como “O Testamento do Sr. Napumoceno da Silva Araújo” (1989), “O Meu Poeta” (1990), “O Dia das Calças Roladas” (1992), “Os Dois Irmãos” (1995), “O Mar na Lajinha” (2004), “A Morte do Ouvidor” (2010), “Do Monte Cara Vê-se o Mundo” (2014), “Regresso ao Paraíso” (2015), “O Fiel Defunto” (2018), “O Último Mugido” (2020), entre tantas outras. Tem livros publicados em vários países, como França, Itália, Alemanha, Brasil, Espanha, Suécia, Noruega, Dinamarca, Holanda, Espanha, Estados Unidos, entre outros.

(Uma conversa sobre a ilha de São Vicente e as suas artes, pela voz de Germano Almeida, para ouvir neste programa e com um excerto de “Raquel” do músico mindelense Bau (que publicaremos, em breve, em entrevista).

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