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Crise agrícola na UE: "Os agricultores têm de ter ajudas financeiras e tempo para as transições"

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Em dia de cimeira extraordinária da União Europeia sobre o apoio à Ucrânia, muito embora a questão da agricultura não esteja oficialmente na ementa dos dirigentes europeus, ela não deixa de se impor dada a dimensão da onda de protestos que está a varrer o continente.

As tensões foram vivas junto da sede da Comissão Europeia em Bruxelas, neste dia 1 de Fevereiro de 2024.
As tensões foram vivas junto da sede da Comissão Europeia em Bruxelas, neste dia 1 de Fevereiro de 2024. © AFP
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Depois dos agricultores alemães, polacos, italianos, gregos, franceses e espanhóis, hoje é também a vez de os portugueses bloquearem estradas. Entre as suas reivindicações, mais celeridade na disponibilização das ajudas europeias e também uma reavaliação, depois de lhes ter sido anunciada a diminuição do seu valor há alguns dias atrás.

Aqui em França, país que é o primeiro beneficiário das subvenções agrícolas com mais de 9 mil milhões de euros por ano, os agricultores continuam a sua paralisação pelo quarto dia consecutivo, considerando insuficientes as propostas feitas ontem pela Comissão Europeia no sentido de aplicar excepções, durante este ano, à obrigação de manter terras aráveis em pousio e no sentido também de aplicar algumas limitações às importações de Ucrânia.

A França, cujo Chefe de Estado está reunido hoje com a Presidente da Comissão Europeia para evocar a crise agrícola, também finca o pé para não assinar o acordo de livre comércio que está a ser negociado há anos com o Mercosul por considerar designadamente que isto prejudica os seus criadores de gado.

Em entrevista concedida à RFI, a eurodeputada socialista Isabel Carvalhais, que integra a Comissão da Agricultura e do Desenvolvimento Rural no Parlamento Europeu, evocou os desafios enfrentados pelos agricultores, num contexto de crescente preocupação com o meio ambiente e a saúde humana e, por outro lado, o imperativo da rentabilidade.

RFI: De um modo geral, como analisa este movimento de protesto dos agricultores europeus?

Isabel Carvalhais: Quando nós começamos esta legislatura em 2019, havia aqui um compromisso sério por parte da Comissão Europeia e que o Parlamento obviamente acompanhou, aliás foi uma das condições para apoiar esta Presidente (Ursula Von der Leyen), havia aqui um compromisso junto até do próprio Conselho Europeu, logo a seguir às eleições europeias no sentido de termos uma forte agenda ambiental porque hão de se recordar daquilo que eram as manifestações um pouco por toda a Europa, dos jovens que às sextas-feiras faziam greve às aulas com os seus protestos ambientais e começou a surgir de facto uma consciência efectiva daquilo que é a degradação ambiental, a perda de biodiversidade, o que são as alterações climáticas e começou-se a ter uma consciência que nunca se tinha visto antes. Agora, pelo meio, houve uma pandemia e houve uma guerra que está a continuar. Isto veio trazer uma enorme instabilidade para os mercados. Estou a pensar nomeadamente nos agricultores franceses produtores de cereais. A França que é a grande produtora de cereais no contexto dos 27 e que, entretanto, tem de se relacionar, tem de conviver, com esta necessidade de recebermos também cereais da Ucrânia e também da Moldávia, porque faz parte no fundo, também, daquilo que são as ajudas aos agricultores destes países. Portanto, isto é a tempestade perfeita. Há uma conjugação de múltiplos factores: por um lado, temos a necessidade imperiosa de continuar a ajudar a Ucrânia, a ajudar financeiramente e a ajudar também através das importações dos seus produtos agrícolas sem estarem sujeitas a determinadas taxas alfandegárias, mas depois isto acaba por ter um reflexo naquilo que é o próprio mercado europeu. Se depois pensarmos noutras questões mais concretas, como por exemplo no caso de Portugal, no caso da Grécia e no caso de Espanha, uma das grandes preocupações prende-se com a seca, com a gestão hídrica que temos que fazer. Isto é uma das grandes preocupações porque, de ano para ano, nós vemos uma diminuição da capacidade dos nossos agricultores utilizarem água -sem água, não há agricultura- e isto por enquanto tem tido uma resposta através dos subsídios de crise agrícola a nível europeu, mas isto vai ser um problema recorrente. Portanto, isto implica soluções estruturais e os agricultores também não estão a antever quais vão ser essas soluções estruturais. Depois, também acho que houve uma grande falta de comunicação e também não tem havido uma celeridade na chegada das ajudas aos agricultores. Refiro-me em concreto à arquitectura verde da nova Política Agrícola Comum (PAC). A nova Política Agrícola Comum tem uma dimensão de condicionalidade ambiental que tem na sua base um objectivo bom de protecção do ambiente, de protecção da própria biodiversidade agrícola, de protecção da saúde dos próprios agricultores. De uma maneira geral, nenhum agricultor está contra isto, mas era importante que isto fosse melhor comunicado aos agricultores e era muito importante que as ajudas necessárias para os eco-regimes, necessárias também para o cumprimento destas condicionalidades ambientais, fossem mais céleres. E esta cultura burocrática não é só portuguesa, é um problema estrutural que nós temos e que começa aqui em Bruxelas. Nós temos sensibilizado a própria Comissão várias vezes em relatórios e um dos apelos que fazemos é para que haja uma cultura de desburocratização. É evidente que quando isto chega aos países, os próprios estados que muitas vezes lutam com a falta de recursos humanos nos Ministérios da Agricultura, com falta de recursos humanos para aconselhamento técnico e que têm medo alvo de auditorias e terem eventualmente de fazerem restituição de dinheiro de Bruxelas, tudo isso acaba por se densificar numa cultura administrativa também extremamente pesada que não é só em Portugal. Porque se eu falar com os italianos -falo muitas vezes em particular com os italianos- eles queixam-se da mesma coisa. Mas curiosamente de países como a Suécia, que nós por vezes vemos como um exemplo, também têm queixas semelhantes às nossas. Portanto isto tem que ser transformado. O que é eu também vejo em tudo isto? Isso também me preocupa. É que estes protestos são legítimos, mas também há aqui uma dose de instrumentalização política por várias forças, muito em particular pela extrema-direita. Os agricultores têm de se proteger, não podem deixar-se instrumentalizar.

RFI: Julga precisamente que em período de eleições europeias isto pode ter algum impacto?

Isabel Carvalhais: Sempre que há um período de eleições, é natural surgirem protestos e manifestações, é legítimo e faz parte da democracia porque é uma forma dos grupos de pressão chamarem mais a atenção para o seu caderno de encargos. E não nos podemos esquecer que nós em Portugal vamos ter eleições legislativas, mas no contexto europeu nós vamos ter eleições europeias que serão entre 6 e 9 de Junho. Portanto, é evidente que havendo tal descontentamento, também normal que haja uma organização dos próprios agricultores, podíamos assistir a outros sectores também no sentido de trazerem para cima da mesa as suas reivindicações. Mas nunca como agora o mundo rural e a agricultura estiveram tão no centro do debate político e tem estado pelas boas razões, por tudo o que tem de ser feito em prol da sobrevivência do mundo rural, da dignificação das comunidades rurais, tem sido um debate positivo. Este tipo de protestos são importantes também, mas eu espero que eles não retirem este foco positivo, que estes protestos não acabem por levar a opinião pública a ver o agricultor como aquele que está a bloquear as estradas e que acaba por dificultar a vida dos outros. Espero mesmo que isto não aconteça porque não é isso que se pretende. Nós estamos aqui todos empenhados na melhoria da vida dos nossos agricultores porque são a base da nossa sociedade.

RFI: Relativamente à Política Agrícola Comum, tem-se a sensação de que é uma "geringonça" com a qual ninguém está satisfeito e que as tentativas de reforma, também com o "Green Deal" que foi anunciado há uns tempos atrás pela Comissão Europeia, sofrem recuos nomeadamente no que tange, por exemplo, ao uso de pesticidas. Que entendimento se pode obter entre o campo da rentabilidade e, por outro lado, a defesa da biodiversidade?

Isabel Carvalhais: Eu acho importante esclarecer aqui um aspecto: é que desde a guerra na Ucrânia, nós temos assistido no Parlamento Europeu a uma campanha de toda a direita associada às extrema-direita no sentido de exigir a suspensão do Pacto Ecológico Europeu do "Green Deal", considerando que este não é o tempo da redução dos pesticidas, este não é o empo da redução dos fertilizantes, este não é o tempo de equacionar as questões ambientais, este é o tempo de aumentar a produção porque inclusivamente haveria problemas de distribuição alimentar. Ora, a Europa é dos territórios a nível mundial que não tem problema de distribuição. Quando muito, tem problema de acessibilidade quando as famílias não têm rendimentos suficientes para terem uma alimentação equilibrada. Mas não tem problema de quantidade. Isso aliás era um discurso que se usava nos anos 50 e 60, a necessidade de aumento da produção. Isso é uma leitura enviesada mas que tem sido utilizada para dizer 'suspenda-se o pacto ecológico europeu porque nós, neste momento, temos é de fazer face a estas circunstâncias que a guerra nos coloca'. Ora, o que falta aqui é uma visão equilibrada. Os agricultores têm de ter sobretudo é condições. Têm de ter ajudas financeiras, ajudas técnicas, aconselhamento e tempo para fazer as transições. Têm de ter também a possibilidade de, nessas transições para formas mais sustentáveis de agricultura, de poderem dispor de produtos alternativos aos químicos actuais. Isto não pode ser precipitado, não pode ser de um dia para o outro! Os extremos dos discursos políticos levam no fundo a esta ausência de equilíbrio e esta ausência de equilíbrio, quem a paga são os agricultores. A Política Agrícola Comum está numa fase em que podemos transformá-la porque este é a fase do debate e as reflexões nunca funcionam bem quando funcionam sob grande pressão.

RFI: Receia que os interesses muito diversificados e talvez opostos entre os agricultores, consoante o país em que se encontram, acabem por desembocar num compromisso com a Europa que favoreça, uma vez mais, os grandes grupos?

Isabel Carvalhais: Uma coisa é certa. De facto, os agricultores têm aqui questões em comum em todos os países. Mas depois, cada um tem as suas realidades. Mesmo dentro de Portugal, aquilo que mobilizará uns e outros agricultores não são necessariamente os mesmos problemas, as mesmas preocupações. Portanto, quando olho para os protestos dos agricultores franceses, não os identifico totalmente com aquilo que são as preocupações por exemplo dos agricultores portugueses. Agora, os grandes grupos, as grandes confederações, em boa verdade, as grandes confederações a nível europeu representam muitos outros organismos e pequenos agricultores. Eu entendo quando falamos das grandes confederações, a ideia é também pensarmos no grande negócio agrícola. Mas há muito pequeno agricultor e uma agricultura de dimensão mais familiar que no fundo também sente e tem os seus interesses representados e defendidos nessas confederações. Agora, aquilo que tem sido a grande crítica feita ao longo destes 60 anos da PAC é que se discute muito mas, no fim, ela fica a funcionar de tal maneira que mais facilmente os grandes agricultores conseguem aceder aos financiamentos, aos pagamentos directos, do que os pequenos agricultores, seja pelas burocracias, pelas dificuldades e por outras razões. Isto é uma perversidade. Nós, enquanto grupo dos socialistas e dos democratas, fizemos uma grande luta para que o 'capping' fosse obrigatório e tivesse um limite de 60 mil euros para depois haver uma maior redistribuição para os pequenos agricultores. O que é certo é que o 'capping' ficou como opcional porque toda a direita protestou porque, por detrás, efectivamente estão todos os grandes produtores agrícolas a nível europeu que não têm interesse em que haja mudança dessas regras. É muito difícil aqui lutar contra um 'status quo'. Às vezes conseguimos, outras não conseguimos. Conseguimos por exemplo que nesta PAC esteja presente uma figura que é a figura da condicionalidade social que significa que um agricultor proprietário que tenha trabalhadores rurais, por exemplo imigrantes, e há muitos imigrantes agora nas explorações agrícolas portuguesas, não possa ter acesso a fundos comunitários se não cumprir religiosamente com tudo o que são os direitos laborais e sociais desses trabalhadores. Dir-me-ão que já é suposto que todo o agricultor, todo o proprietário assim faça. Mas se assim fosse, nós não assistiríamos a tantas situações de exploração laboral em múltiplos países da União Europeia, incluindo Portugal. E é muito importante que estas pessoas também tenham assegurados os seus direitos enquanto trabalhadores. Isso é algo positivo que eu espero que seja aprofundado na próxima revisão da PAC e que não desapareça, como muitos queriam que desaparecesse.

RFI: Relativamente aos preços praticados pelos intermediários, tem-se apontado muito o dedo sobre as margens desses intermediários que não vão para os agricultores.

Isabel Carvalhais: Acho que é difícil dizer-se o contrário, parece-me que é preciso haver muito mais justiça ao longo de toda a cadeia de distribuição alimentar. Eu entendo também o papel das distribuidoras e a forma como apresentam de uma maneira muito racional todos os seus argumentos, mas a verdade é que os produtores recebem o que recebem e o consumidor paga o que paga. Pelo meio, há qualquer coisa que se passa e que cada um quer explicar à sua maneira mas que tem que ser revista. Enquanto não houver uma redistribuição mais justa ao longo de toda a cadeia alimentar, nós vamos continuar a assistir a estas situações em que o consumidor já acha que paga muito, infelizmente, e o produtor não chega a receber, não chega a ganhar para cobrir os custos dos factores de produção. é que não nos esqueçamos que com esta situação da guerra na Ucrânia, tivemos um enorme corte daquilo que era o acesso aos fertilizantes químicos da Ucrânia e da Rússia, o que também mostra necessidade de repensar a dependência que temos relativamente aos fertilizantes químicos e repensar em formas de agricultura mais sustentáveis, mas o que verificamos é que isso fez aumentar exponencialmente o preço desse factor de produção. O mesmo com a ração dos animais. Portanto, os agricultores nestes últimos dois anos têm visto aumentar o preço dos factores de produção, sejam os fertilizantes, sejam as rações para os animais. As rações têm sido cada vez mais necessárias porque há seca e a seca faz diminuir a qualidade dos pastos e há um ciclo vicioso que ainda seria pior se não houvesse ajudas da PAC, mas que tem que ser combatido e que tem que funcionar muito melhor e com respostas muito concretas e rápidas por parte dos Estados-membros e por parte da união Europeia. Aliás, a Comissão Europeia propôs algumas medidas como por exemplo a possibilidade dos agricultores europeus continuarem a usar as terras de pousio por mais um ano, isentando-os de terem que deixar essas terras em pousio para procurarem ter aqui uma compensação da produção que têm perdido.

RFI: Há também outro receio relativamente, por exemplo, aos produtos que poderiam chegar da zona do Mercosul e o acordo com o Mercosul é o primeiro sacrificado a nível das reivindicações dos agricultores. O proteccionismo será a solução?

Isabel Carvalhais: O proteccionismo nunca é a solução. A Europa não pode pretender ser a maior exportadora agrícola mundial e, ao mesmo tempo, não querer importar. Eu sempre achei que é preferível que haja acordos obviamente bem negociados com determinadas regiões, como a Nova Zelândia, como a região do Mercosul, que inclui o Brasil que é extremamente importante para Portugal, porque é preferível ter esses países dentro de acordos bilaterais ou acordo múltiplos porque, no fundo, conseguimos que fiquem atidos ao cumprimento de determinadas regras laborais, ambientais, até mesmo no que se refere aos Direitos Humanos do que tê-los de fora. Se não tivermos esses acordos, eles vão continuar a exportar. Exportam para outras partes do mundo, exportam para a China, exportam para os Estados Unidos. A Europa também tem de ter a noção de que não é o centro do mundo. Portanto, é preferível ter relações comerciais e acordos em que temos pelo menos algum controlo sobre aquilo que é feito noutras partes do mundo, do que simplesmente não os termos. No meio disto tudo, o que temos de aumentar? Tem que se aumentar muito mais a fasquia relativamente à qualidade dos produtos que entram na Europa e a monitorização desses mesmos produtos. Se não cumprem com aquilo que no fundo é acordado, é estabelecido nos próprios acordos, não podem ser aceites. Nós ainda recentemente tivemos uma votação no Parlamento Europeu precisamente no que se referia ao uso de um pesticida que é muito gravoso para a saúde humana utilizado nos arrozais. Arroz produzido na China ou noutra parte qualquer que tenha a utilização daquele pesticida que não pode ser utilizado pelos agricultores europeus, é evidente que não pode entrar na Europa. Desse ponto de vista eu entendo. Temos é de ter mais monitorização no sentido, por exemplo, de termos um 'tracking' daquilo que são os produtos para que não tenhamos importações que decorram de desflorestação, de desmatação, que têm na sua base exploração de mão-de-obra infantil, escravização mesmo das pessoas, isso não é compatível com os valores da União Europeia. Temos de percceber exactamente até onde é que podemos ir na linguagem que é utilizada. Não esqueçamos que no caso da França, a França sempre foi a grande opositora do Mercosul porque, de facto, faz concorrência aos seus agricultores, desde logo os produtores de cereais. O Mercosul também tem as suas vantagens. Mas, neste momento, o que inclusivamente preocupa muito mais os agricultores franceses até são as importações da Ucrânia e da Moldávia. Não podemos dizer da boca para fora que queremos ser solidários com quem está a sofrer, mas depois quando nos toca a nós, 'olha afinal não queremos ser solidários, já não queremos receber os cereais da Ucrânia'. Isso não pode ser assim. Tem que haver aqui mecanismos de compensação e julgo que é isso que a Comissão Europeia está a procurar fazer. Daí também as reuniões de emergência e todos estes anúncios que têm saído nas últimas 24 horas relativamente àquilo que a Comissão Europeia pretende fazer.

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