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Guerra na Ucrânia: "Putin vê actualmente a sua liderança pessoal mais pressionada e ameaçada"

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O conflito na Ucrânia transpõe hoje um novo patamar com Vladimir Putin a proclamar, em nome do "direito à autodeterminação dos povos", a anexação de Donetsk, Lugansk, Zaporijia e Kherson, 4 regiões situadas no leste e sul da Ucrânia, ao cabo de referendos qualificados de "fantochada" por Kiev e pelos seus aliados ocidentais.

O presidente russo formalizou, nesta sexta-feira, 30 de Setembro, durante uma grande cerimónia organizada pelo Kremlin, a anexação pela Rússia das quatro regiões do leste e sul da Ucrânia.
O presidente russo formalizou, nesta sexta-feira, 30 de Setembro, durante uma grande cerimónia organizada pelo Kremlin, a anexação pela Rússia das quatro regiões do leste e sul da Ucrânia. AP - Gavriil Grigorov
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A coincidir com esta proclamação, reúne-se hoje o Conselho de Segurança da ONU para discutir sobre uma resolução condenando os "referendos" organizados nas províncias ocupadas pela Rússia, o voto deste texto não deixando contudo margem para ilusões, dado que a Rússia tem sempre usado o seu direito de veto nesta matéria.

Perante esta forte probabilidade, os Estados Unidos não excluem a hipótese de se organizar uma reunião da Assembleia Geral da ONU com o objectivo de "enviar uma mensagem sem ambiguidade a Moscovo".

Em linha de mira está nomeadamente a China que, até agora, se tem declarado oficialmente "neutra", muito embora tenha em paralelo enaltecido a "amizade sem limites" com a Rússia.

Uma relação privilegiada que não impediu Pequim de apelar esta semana ao "respeito da integridade territorial de todos os países" e a "um cessar-fogo pelo diálogo", depois de a Rússia agitar novamente a ameaça da utilização da arma nuclear.

Relativamente a este momento do conflito, Sandra Fernandes, professora especialista da Rússia ligada à Universidade do Minho, observa sobretudo que as anexações de territórios ucranianos por Putin acontecem num momento em que ele está a conhecer dificuldades na frente militar mas igualmente na frente política interna.

RFI: O que traduz a proclamação das anexações de Donetsk, Lugansk, Zaporijia e Kherson por Putin, a seu ver?

Sandra Fernandes: Era algo que já estava a ser anunciado, foi posto em prática e neste momento de viragem do conflito, penso que é sobretudo uma tentativa de manobra sobretudo interna, porque neste momento Putin está a perder uma guerra face aos seus objectivos iniciais. Isto está-lhe a trazer problemas relativamente aos seus apoios, a nível da sua liderança, nomeadamente junto dos ultranacionalistas que partilham de uma visão muito extrema sobre aquilo que deve ser o destino da Ucrânia. Portanto, com estas anexações, podemos ao mesmo tempo perceber que é uma espécie de tentativa de "salvar a face" e de dar alguma aparência de avanços na conquista da Ucrânia e, por outro lado, talvez lhe permita reduzir os seus objectivos estratégicos nomeadamente, por exemplo, na região de Donetsk. Este passo, penso eu, vai-lhe permitir redireccionar no sentido de uma escala menor um conflito que ele está neste momento a perder.

RFI: No momento em que ele está a concretizar, pelo menos no papel, a anexação desses territórios, Putin também agita a ameaça nuclear. É para levar a sério?

Sandra Fernandes: A ameaça nuclear é algo que considerávamos completamente impossível e agora deixou de ser impossível. Ou seja, nas circunstâncias actuais em que um líder com as características de Putin, com uma liderança muito pressionada e ameaçada devido ao desaire desta guerra para a Rússia, traz-nos a questão da imprevisibilidade de um líder com uma visão do mundo e um perfil psicológico algo deformada, uma visão do mundo obsessiva face àquilo que é o valor da Ucrânia para o interesse nacional russo e, portanto, embora continue a ser improvável, não é de todo impossível.

RFI: Hoje, o Conselho de Segurança da ONU vai debruçar-se sobre a questão da Ucrânia e nomeadamente essas anexações. Até que ponto é que isto vai ter algum impacto?

Sandra Fernandes: O Conselho de Segurança das Nações Unidas é um órgão que está paralisado, uma vez que depende da unanimidade dos votos dos cinco membros permanentes (França, Estados Unidos, Reino Unido, China e Rússia). Portanto, será com certeza um momento em que as potências que estão do lado da Ucrânia vão condenar novamente a Rússia, mas isso não terá efeitos práticos nenhuns. Será interessante perceber como é que a China vai discursar face a esta questão. A China está aqui num jogo de equilíbrio entre o Ocidente e a Rússia.

RFI: Não está excluída a hipótese de haver uma reunião do plenário e, efectivamente, cada um ter que se posicionar relativamente a este conflito. Há uns meses já houve um voto desta natureza. Julga que o voto pode mudar relativamente à Rússia, nomeadamente o voto da China e da Índia que até agora se mostravam "neutras"?

Sandra Fernandes: Pode haver aqui alguns ajustamentos pelo menos na retórica. Aí, eu penso que será interessante perceber que tipo de ajustamentos, que leitura é que estes países fazem do momento actual. Teremos que aguardar pela manifestação desses ajustamentos.

RFI: Isto também sucede numa altura em que se registaram explosões nos gasodutos Nordstream 1 e 2. Há suspeita de sabotagem. A Rússia diz que são os Estados Unidos. A Europa diz que é a Rússia. Quem é que tem mais a ganhar com esta possível sabotagem?

Sandra Fernandes: Julgo que a sabotagem poderá ter algum objectivo dentro da guerra híbrida que a Rússia conduz contra o Ocidente já antes desta guerra porque é no sentido de criar um impacto, uma percepção nas opiniões públicas. Mas penso que o essencial a reter sobre os dois gasodutos Nordstream é que eles estão condenados a prazo. Esta guerra traz uma reorientação drástica quanto aquilo que é a visão europeia sobre o seu mercado energético e sobre as suas relações energéticas, uma vez que se procura cortar a relação com a Rússia nesta senda. Portanto, penso que neste momento, estes acontecimentos criam mais ruído ou distracção face àquilo que é o essencial nesta guerra.

RFI: E Precisamente, o que é necessário reter neste momento do conflito?

Sandra Fernandes: O que é preciso reter é que Putin falhou os seus objectivos iniciais. Claramente a sua capacidade bélica e a sua acção no terreno têm sido caóticas. Há claros problemas de comando e de coordenação nas Forças Armadas russas e não há uma opinião pública realmente favorável à guerra. Putin vê actualmente a sua liderança pessoal mais pressionada e mais ameaçada.

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