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"Neste momento, do lado europeu a preocupação é maior do que do lado russo" Álvaro Vasconcelos

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Moscovo e Kiev acabam nesta sexta-feira de assinar separadamente um acordo permitindo desbloquear os cerca de 25 milhões de toneladas de cereais da Ucrânia retidos pelos militares russos.

Representantes da Ucrânia e da Rússia dão um aperto de mão durante a cerimónia de assinatura do acordo sobre os cereais ucranianos em Istambul, na presença do Presidente turco Recep Tayyip Erdogan e do secretário-geral da ONU, António Guterres, neste dia 22 de Julho de 2022.
Representantes da Ucrânia e da Rússia dão um aperto de mão durante a cerimónia de assinatura do acordo sobre os cereais ucranianos em Istambul, na presença do Presidente turco Recep Tayyip Erdogan e do secretário-geral da ONU, António Guterres, neste dia 22 de Julho de 2022. AP - Khalil Hamra
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Este acordo rubricado em Istambul, foi alcançado sob o impulso da diplomacia turca. Ele prevê que durante o prazo de 4 meses renováveis, os barcos carregados com cereais ucranianos possam circular por corredores marítimos livres de qualquer presença militar, de e para a Turquia cujo papel consistirá em garantir que os navios não acabem por transportar armamento para a Ucrânia.

Em contrapartida, os russos obtêm um memorando assinado juntamente com a ONU garantindo que as sanções ocidentais não se apliquem aos cereais e adubos russos de forma directa ou indirecta.

A assinatura deste acordo desbloqueia a situação desses dois países que representam juntos 30% das exportações de cereais a nível mundial e pode vir a aliviar também a pressão exercida sobre os países -nomeadamente africanos- mais dependentes destas fontes de fornecimento.

A assinatura do acordo sobre os cereais ucranianos sucedeu pouco depois de o gasoduto NordStream 1, que encaminha o gás russo para a Europa, tornar na quinta-feira a funcionar a 30% da sua capacidade, após 10 dias de encerramento "para manutenção", não conseguindo afastar o espectro de um eventual cenário de contenção energética num contexto em que a Rússia pode a qualquer momento voltar a fechar a torneira.

Somado a esta situação já por si complexa, esta semana também o Primeiro-ministro italiano Mario Draghi demitiu-se das suas funções, abrindo-se a porta a uma possível vitória do campo da extrema-direita nas legislativas antecipadas de Setembro, em que a ‘Liga’ de Salvini e os ‘Fratelli d’Italia’, são dados favoritos, com implicações para o futuro funcionamento da Europa.

São estes aspectos todos que analisamos com Álvaro Vasconcelos, antigo director do Instituto de Estudos de Segurança da União Europeia.

RFI : Como encara o acordo sobre os cereais da Ucrânia num contexto em que, ainda nos últimos dias, o chefe da diplomacia russa disse que o seu país não pretende apenas controlar o leste da Ucrânia?

Álvaro Vasconcelos : O objectivo final russo nós não sabemos qual é. Sabemos que no início do conflito, o objectivo era conquistar toda a Ucrânia. Não conseguiu, retirou-se, colocou-se um objectivo mais limitado que foi dominar o Donbass. Também ainda não domina todo. O Mar de Azov já está controlado pelos russos, o Mar Negro ainda não está completamente controlado. Portanto, estamos num momento do conflito em que os russos não atingiram os seus objectivos. Os ucranianos, nós sabemos muito bem quais são que é terminar com a ocupação do território ucraniano pela força invasora. No fundo, os ocidentais também sabemos quais são, que é conseguir que uma guerra de conquista não possa ser bem-sucedida, porque temos de nos lembrar que isto é, na Europa, a primeira guerra de conquista de território pela força a que nós assistimos desde o fim da segunda guerra mundial. Portanto, impedir isso é absolutamente imperativo. E portanto neste momento da guerra, esta é uma boa notícia porque há negociação e porque a exportação dos cereais é extremamente importante mas não sabemos tudo, nem sabemos se de facto isso se vai concretizar.

RFI : Isto não diz só respeito à Ucrânia e à Rússia. Esse acordo era esperado em vários países que são dependentes das exportações de cereais da Ucrânia e da Rússia. Há países africanos nomeadamente, a Argélia e o Egipto onde isto era esperado. Julga que isto pode modificar o contexto difícil que tem sido vivenciado por esses países?

Álvaro Vasconcelos : Esses países, certamente se for cumprido plenamente o acordo e se a Ucrânia e a Rússia começarem a exportar os seus cereais numa escala que já não será exactamente a mesma que a anterior à guerra, mas que será próxima, será um enorme alívio para esses países. Eles tiveram um papel muito importante para que se chegue a este acordo porque fizeram pressão sobre a Rússia e sobre a Europa e os Estados Unidos, porque esses países precisam destes cereais e foram dizendo ‘vocês estão a matar-nos’. E além disso há outra pressão que nós conhecemos e até o debate francês actual é todo à volta disso, bem como na Europa em geral, que é a pressão devido ao aumento dos preços e à inflação. Esta guerra tem essas implicações tremendas. Também há uma pressão interna das opiniões públicas para que se chegue a algum acordo com a Rússia que diminua este aumento dos preços não só dos cereais mas também dos combustíveis. Aliás, uma das grandes questões hoje a proposta da Comissão da UE para a redução de 15% nos consumos de gás dos Estados da União Europeia e a oposição de Portugal e da Espanha é que bloqueia essa proposta da Comissão. Portanto, esta guerra joga-se em muitas frentes, não só na frente militar, mas também na frente económica e na frente política e na sustentação da guerra pelas opiniões públicas. A queda do governo Draghi na Itália é outro facto complicador da unidade europeia em relação ao apoio absolutamente indispensável à Ucrânia.

RFI : Ainda relativamente a este acordo sobre os cereais, a Turquia é que mediou este processo. O que é que a Turquia tem a ganhar com isto?

Álvaro Vasconcelos : A Turquia tem muito a ganhar. Temos de nos lembrar que a Turquia estava bastante isolada da Nato e da União Europeia porque é um longo processo de alargamento que nunca mais cumpriu. Evidentemente hoje é impraticável porque a Turquia se transformou numa autocracia e, na própria NATO, as relações que a Turquia, do ponto de vista militar, tinha começado a criar com a Rússia, tinham colocado a Turquia numa situação difícil. E portanto, a guerra coloca a Turquia no centro. Nós vimos como é que a Turquia, por exemplo utilizou o seu veto na NATO para negociar uma posição mais confortável à volta da adesão da Finlândia e da Suécia à NATO. A Turquia, dada a sua posição geográfica, dadas as boas relações que tem com a Rússia e o Ocidente, apesar das dificuldades, tem um papel muito importante do ponto de vista diplomático e não tem deixado de tirar partido disso para sair do isolamento e voltar a ser a potência com influência que era.

RFI : Relativamente ao debate que evocou há pouco sobre o poder de compra que muito a ver com as flutuações que tem havido quanto ao fornecimento de combustível, esta quinta-feira a Rússia reactivou o gasoduto NordStream 1. Como é que se pode interpretar isso? No fundo, a Rússia fecha a torneira quando lhe apetece para fazer pressão sobre a União Europeia?

Álvaro Vasconcelos: Sem dúvida que a Rússia usa o instrumento energético como aliás os europeus têm tentado usar com as sanções e com a decisão que já tomaram de terminar a sua dependência petrolífera da Rússia. Mas se nós pensarmos que a Alemanha importa 55% do gás que consome da Rússia, podemos ver o nível de dependência que existe. A ameaça da Rússia de cortar o gás é evidentemente uma pressão enorme e é um dos instrumentos de guerra da Rússia. O que é paradoxal aqui é que a nossa convicção é que o Ocidente iria criar problemas graves à Rússia ameaçando diminuir a dependência energética da Rússia – o que deve fazer a longo prazo, sem dúvida- mas isso é um instrumento que é usado por ambos. E neste momento, do lado europeu, a preocupação é maior do que do lado russo em relação à questão da energia. Porque encontrar alternativas ao gás russo, como se tem tentado, no Qatar, nos Estados Unidos e nos países Árabes, não é fácil. Diminui um bocadinho a dependência da Rússia, mas não tem sido nada suficiente.

RFI : No fundo, ao buscar o apoio de outras regiões do globo, nomeadamente os países do golfo pérsico, não será criar uma dependência com outros parceiros pouco recomendáveis, tudo para não estar com a Rússia?

Álvaro Vasconcelos : Evidentemente que aí há situações que, noutros domínios, são extremamente negativos. Por exemplo, o esforço que Biden fez, aliás sem grande sucesso, para convencer a Arábia Saudita e os países produtores do golfo a aumentarem a produção petrolífera não teve sucesso e, ao mesmo tempo, Biden foi forçado a aceitar aquilo que tinha dito que nunca aceitaria que era voltar a colocar aquele país numa situação confortável em relação aos Estados Unidos depois da Arábia Saudita ter cometido os crimes que nós sabemos que cometeu. Numa situação de guerra, as partes envolvidas procuram saídas para os seus problemas baseadas muitas vezes apenas na ‘realpolitik’. Por exemplo, algo que seria extremamente favorável à resolução do problema energético era acabar com as sanções em relação ao Irão e que o Irão pudesse começar a exportar petróleo de forma livre. Seria uma mudança significativa e diminuiria consideravelmente quer a dependência ao petróleo russo, mas também diminuiria muito o preço do petróleo e, portanto, contribuiria para diminuir a inflação e o aumento do custo de vida. Mas até agora não foi possível chegar a um acordo com o Irão. Há sectores americanos que se opõem, há Israel que se opões frontalmente, há a Arábia Saudita que se opõe e os próprios iranianos também estão a jogar com isso e querem ter mais concessões em relação ao seu programa nuclear.

RFI : E é neste contexto que esta semana, o chefe do governo da Itália apresentou a sua demissão. Mario Draghi que era um dos arquitectos de alguma estabilidade económica em período de crise quando foi presidente do Banco Central Europeu, demitiu-se e abre-se agora um período de incerteza tanto para a Itália como para a Europa. Em que medida?

Álvaro Vasconcelos: Eu acho que é uma situação gravíssima e que é um alerta sério sobre os problemas políticos gravíssimos que enfrentam as democracias, neste caso as democracias europeias, porque o que é muito significativo com a demissão de Mario Draghi é que é provável que haja uma vitória nas eleições da coligação das duas extremas-direitas, da ‘Liga’ do Salvini e dos ‘Fratelli d’Italia’ com o partido do Berlusconi. Ora, se esta coligação ganhar nas eleições, o Primeiro-ministro de Itália, ou será o Salvini ou será os ‘Fratelli d’Italia’ que são um partido de extrema-direita ainda mais radical do que o Salvini. E como estiveram na oposição ao governo de unidade nacional em que participou o Salvini, ganharam popularidade. Chega a extrema-direita ao poder, o que é mais provável, com um Primeiro-ministro da extrema-direita, são consequências várias para a União Europeia. A Itália passa a ser um país liderado por eurocépticos, se calhar numa situação política semelhante à da Polónia e da Hungria, mas em relação à Rússia numa posição muito diferente da Polónia. A extrema-direita da Itália é muito próxima do Putin. Portanto, se chegarem ao poder em Itália, evidentemente que isto terá repercussões gravíssimas para a União Europeia e para o apoio à defesa da Ucrânia contra a Rússia.

RFI : Como vê os próximos tempos à luz de tudo o que acabamos de enumerar?

Álvaro Vasconcelos : Tenho uma preocupação enorme. Vejo a política cada vez mais brutal. Aliás, tenho acompanhado um pouco os debates na Assembleia Nacional Francesa e vejo de facto discursos de uma brutalidade política enorme. Ou seja, a brutalidade na política, o populismo levado ao seu extremo -que é consequência no fundo da popularidade dos partidos populistas- o pôr em causa os grandes consensos republicanos e democráticos em que assentou a construção europeia no pós-segunda guerra mundial é também, evidentemente, a consequência da situação económica e social. Nós vivemos a crise do covid, veio a guerra da Ucrânia, vivemos também toda a problemática do aquecimento global, temos uma conjugação de factores extremamente negativos de pressão sobre sistemas democráticos que está a criar enormes fragilidades, está a colocar uma parte da cidadania contra o próprio regime democrático. Ou conseguimos reconstruir um consenso entre as grandes correntes políticas -mas significa também um consenso na opinião pública- encontrando respostas para os problemas sociais -mas sabemos que não vamos poder encontrar resposta para todos os problemas porque a situação é extremamente difícil- ou teremos uma situação em que a democracia ir-se-á apagando progressivamente em grande parte do mundo. E não falei de algo que é extremamente grave e provável que é chegarmos ao mês de Novembro nos Estados Unidos e os Republicanos ganharem de novo o controlo da Câmara dos Representantes e do Senado, e o Presidente Biden ter muito pouca possibilidade de acção. Eu não quero agora estar a ser o profeta da desgraça. Estou é a alertar para uma situação extremamente difícil. Se existem saídas, nós sabemos quais são : é uma política mais próxima dos cidadãos, uma maior preocupação com os seus problemas sociais. Trata-se de um longo processo em que a União Europeia evidentemente pode ter um papel extremamente importante.

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