Acesso ao principal conteúdo
Convidado

"Ucranianos permanentemente em alerta"

Publicado a:

Os EUA prometeram esta terça-feira mover "o céu e a terra" para ajudar a Ucrânia a vencer a guerra contra a Rússia. A promessa surgiu durante o encontro de vários ministros da Defesa da NATO e da União Europeia na base aérea Ramstein, na Alemanha. O secretário-geral da ONU, António Guterres, visita esta terça-feira Moscovo onde se vai encontrar com o Presidente russo, Vladimir Putin, e com o chefe da diplomacia russa, Sergei Lavrov, no contexto da ofensiva russa em curso na Ucrânia.

Encontro de vários ministros da Defesa da NATO e da União Europeia na base aérea Ramstein, na Alemanha.
Encontro de vários ministros da Defesa da NATO e da União Europeia na base aérea Ramstein, na Alemanha. © REUTERS - KAI PFAFFENBACH
Publicidade

RFI: Dois meses depois do início da Invasão Russa na Ucrânia, José Pedro Frazão, em serviço especial para a RFI, estás aí há quase um mês. Como é que descreves o estado do país e dos ucranianos?

José Pedro Frazão: Os ucranianos são um povo extremamente unido nesta guerra. A mobilização é geral, os voluntários procuram o seu lugar em todas as formas desta guerra, seja fornecendo pequenos materiais para o exército, quer no caso dos homens em idade de combate, para a chamadas tropas de defesa territorial. Eles próprios tomam armas para fazer patrulhamento em zonas, ajudando os militares nesta matéria.

Os ucranianos estão convencidos de que vão vencer esta guerra contra a Ucrânia, que estão imbuídos de um forte espírito nacional e essa confiança vai arpar também de um conjunto de pedidos feitos ao longo das últimas semanas, no sentido de um reforço militar ocidental face à Ucrânia. Esse reforço tem surgido e permite à Ucrânia defender-se cada vez melhor das ofensivas russas e contra-atacar. É uma guerra e portanto a Ucrânia também contra-ataca posições russas.

Os russos estão sobretudo no sul, no sudeste e no leste da Ucrânia. As principais cidades estão a salvo da presença terrestre russa, mas têm sido alvo de bombardeamentos com mísseis, lançados a alguma distância por posições russas. A situação de alguma carência humanitária tem vindo a ser suprida pelas Nações Unidas e também por uma rede bastante efectiva do ponto de vista local com organizações não governamentais a fazerem esse trabalho.

Há várias questões que se levantam, uma delas a Ucrânia pode vencer esta guerra, uma guerra muito patriótica do lado da dos ucranianos. Qual é o ponto de ruptura a teu ver entre os dois campos? O material é importante, claro, mas a questão psicológica e a moral, como descrevias, ainda mais. 

Sim. As notícias têm que ser lidas com algum cuidado, de um lado e do outro. Quer do ponto de vista ucraniano, quer do ponto de vista russo. Há muita informação contra informação e a natural propaganda, que sempre existe nas guerras.

Do lado ucraniano, por exemplo, descreve-se que o moral das tropas russas é baixa, do lado russo também se descreve que os ucranianos se recusam a ir para zonas de combate. Seja como for, do ponto de vista estritamente militar, o poder aéreo russo faz bastante diferença. Os bombardeamentos através de mísseis lançados longa distância vão sobressaltando nas principais cidades e a população civil, nalguns casos, apenas só durante a noite, o que implica noites em branco para muitos cidadãos da Ucrânia.

A maior parte dos alvos, na primeira fase da guerra, foram sobretudo estratégicos, militares e públicos, mas há também nas últimas semanas mais edifícios residenciais de população civil a serem atingidas. Isso acaba por dar também mais força aos ucranianos neste combate.

Há uma questão muito relevante, tem a ver com a retirada de civis das zonas de combate. Há civis ucranianos que estão a ser retirados para o lado russo. Na Ucrânia diz-se que estão a ser forçados a sair para a Rússia, para autênticos campos de concentração. Não é possível confirmar de forma independente essa informação. Temos ouvido as difíceis condições dos corredores humanitários a partir de zonas do leste, com muita dificuldade para retirar pessoas. Eu falei com algumas, algumas saem destas zonas sob tiros e não é nada seguro sair nestes corredores humanitários. Estamos a falar sobretudo de mulheres, de pessoas idosas e de crianças porque os homens não não estão a sair. Nalgumas cidades, como no sul, um dos testemunhos que recolhia nos últimos dias, os homens estão a ser obrigados a listarem-se pelo lado russo e a combaterem os seus compatriotas ucranianos.

Alguns ucranianos fogem para o ocidente outros, como descrevias, forçados a ir para a Rússia. Os civis não têm para onde ir?

Os ucranianos que estão a sair da zona do leste distribuem-se um pouco por toda a Ucrânia sobretudo no centro e no oeste. Ao longo deste processo, muitos foram para cidades como Kiev, mas depois sobretudo acabaram por se localizar mais em cidades do ocidente como Lviv ou Ivano-Frankivsk. 

Como sabemos desde o início desta guerra, existe uma fracção, quetem procurado outros países que se imitam, nomeadamente, à Polónia. Há uma fracção bastante significativa, estamos a falar de quatro a cinco milhões de pessoas, que depois acabam por ou ficar na Polónia ou seguir para outros países da Europa Central.

As redes de ucranianos, por exemplo, na Polónia existem e também na Hungria, devido a migrações anteriores e portanto essas pessoas, na maior parte dos casos, começaram por ficar em casas de familiares. Nalgumas cidades começam a surgir uma espécie de aldeias de contentores para receber esses ucranianos. O mesmo acontece na Ucrânia ocidental, inicialmente todos foram muito para a cidade de Lviv, mas depois todas as autarquias acabaram por se organizar de forma a receber em vários pontos estes ucranianos deslocados dentro do próprio país, com a esperança de poderem regressar; Alguns já começam a regressar a normalidade, já começa a surgir em cidades como Kievpor, por exemplo ou também Odessa, no sul do país.

Já estiveste em Odessa. Agora estás nos arredores de Kiev. Como é que descreves o dia-a-dia aí?

Eu percorri a Ucrânia toda. Na verdade, fiz duas viagens à Ucrânia. Uma primeira onde passei mais tempo em Lviv, na Ucrânia Ocidental, e agora numa segunda fase percorri toda a zona leste da Ucrânia, em Kharkivem, em Dnipro, em Nikolaev e Odessa.

São situações muito diferentes. Enquanto em Kharkivem, como tenho descrito para a RFI, está tudo pronto para um combate terrestre com barricadas colocadas um pouco em todos os pontos estratégicos da cidade, em todos os cruzamentos. Há pneus amontoados para poderem fazer as posições de defesa. Em Odessa, há uma situação perfeitamente normal. Uma cidade mais normalizada, onde as pessoas aparentemente estão mais despreocupadas.  Sendo que no último fim-de-semana, a queda de um míssil sobre uma zona residencial assustou muito as pessoas de Odessa.

O mesmo acontece frequentemente à cidade de Lviv, no início estava aparentemente segura, mas também acaba por sofrer um impacto, psicológico com a queda de alguns mísseis, sobretudo em alvos relacionados com zonas industriais e nalgumas instalações ferroviárias de mercadorias. Nas restantes cidades como Dnipro, depois de uma grande pressão inicial, está um pouco mais estabilizada. A situação mais complicada que vivi e observei foi  em Kharkivem, a segunda cidade na Ucrânia, extremamente pressionada com bombardeamentos constantes.

A diplomacia russa fala de perigo real de uma nova guerra mundial. António Guterres, o secretário-geral das Nações Unidas, vai encontrar-se com o Putin. O que é que procura a Rússia? E o que é que procura  Vladimir Putin? Procuram assustar?

A Terceira Guerra Mundial tem que ser cruzada com um outro perigo que se fala menos hoje, que é o dia do aniversário do acidente de Chernobyl. Hoje há um conjunto de ataques com mísseis a baixa altitude na zona de Zaporizhzhia, onde há uma central nuclear que é, de resto, a maior central nuclear ucraniana. Esse perigo, de utilização de armas químicas e nucleares têm vindo a ser avançado pelo lado ocidental e também pela Ucrânia.

Até agora não há nota de que tenha acontecido, apesar das preparações que existem aqui do lado ucraniano. Do ponto de vista diplomático, há duas ou três linhas que têm que ser aqui clarificadas. A primeira tem que ver com a mediação em relação à paz. Claramente que a Turquia está na dianteira e, por isso, o secretário-geral das Nações Unidas esteve na Turquia para encontros com Erdogan. As decisões têm estado paradas ao longo das últimas três semanas, depois de reuniões que ocorreram do ponto de vista físico. Há algumas conversações virtuais. Há contactos entre ambas as partes em relação a duas áreas. Uma tem a ver com a troca de prisioneiros. Tem acontecido quatro ou cinco trocas de prisioneiros entre a Rússia e a Ucrânia e depois a negociação dos corredores humanitários. É aqui que entra o secretário-geral da ONU, a Ucrânia pede a Guterres pressão junto da Rússia para que abra corredores humanitários seguros, uma vez que a Ucrânia  não acredita que os russos providenciem segurança suficiente para estes corredores humanitários, nomeadamente, a partir de Mariupol.

Do lado russo há também uma desconfiança em relação a António  Guterres porque consideram que desde o início, o secretário-geral das Nações Unidas não é um mediador equilibrado e está do lado da Ucrânia. Por sua vez, a Ucrânia também não está totalmente satisfeita com António Guterres e digamos que a missão do secretário-geral da ONU é difícil sobretudo num contexto da ONU em que o verdadeiro poder está no Conselho de Segurança, onde a Rússia é um dos países com direito de veto.

Os Estados Unidos convocaram para hoje uma reunião com os aliados. A Alemanha recebe cerca de quarenta países os europeus que dão apoio material sobretudo ao Ucrânia para se defender da Rússia. Segundo muito analistas a Rússia está a patinar há dois meses. Podemos dizer, José Pedro, que o exército hierárquico russo é um exército do XX, que luta contra civis ucranianos do século XXI?

Existem algumas carências do exército russo. Uma delas diz respeito às comunicações. Tanto quando julgo ter percebido de algumas conversas aqui na Ucrânia e com alguns analistas militares, por exemplo, ao nível das comunicações é possível interceptar muitas comunicações do lado russo porque por parte dos ucranianos.

É preciso dizer que na Ucrânia fala-se russo de forma fluente ou seja é uma língua quase equivalente à ucraniana e portanto é muito fácil entender russo. Essas comunicações digamos mais do século XX, ainda persistem nos contingentes militares russos.

De resto, os ucranianos foram abastecidos de materiais recentes de intercepção de comunicações por  alguns ocidentais. Os aliados ocidentais não foram apenas fornecendo carros de combate, tanques ou defesa anti-aérea, mas também equipamentos sofisticados de comunicação ao mais alto nível e com formação dada. Essa é uma desvantagem, digamos assim, para o lado russo que consegue contrabalançar com o poderio de mísseis, com alcance a longa distância. Na verdade a estratégia militar russa parece ser disparar em várias direcções, em vários pontos da Ucrânia, de forma a que a Ucrânia esteja permanentemente em alerta do ponto de vista antia-éreo, não se podendo concentrar em toda a sua defesa, por exemplo no Donbass, na zona do leste da Ucrânia, onde os principais combates decorrem.

Hoje, 26 de Abril, a Ucrânia está destruída sem saber de quando é que esta guerra termina?

Sim, as opiniões dividem. Há quem acredite que a guerra vai terminar dentro de duas semanas, mas isso é uma referência ao dia 9 de Maio. O dia 9 de Maio é um dia importante para os russos porque assinala a vitória sobre a Alemanha Nazi. Putin quererá fazer um ponto de situação e apresentar uma vitória ao povo russo, que poderá ser, por exemplo, conquista de Mariupol ou noutras perspectivas, mais gravosas, poderá ser a conquista terrestre de todo o sul até Odessa.

Há um outro cenário, por exemplo, eu falei com o presidente da câmara de Nikolaev que nos dizia que achava que a guerra iria durar mais um ano. Seria uma guerra longa e portanto eles estão preparados para todas as eventualidades.

O espírito é bastante positivo do lado ucraniano. Devo dizer que é isso que se transparece das conversas quer com militares, quer com responsáveis políticos. Seja como for, há outras consequências do ponto de vista económico: as culturas agrícolas que têm que ser escoadas. Os portos estão fechados e portanto não é fácil, aliás, é praticamente impossível escoar grandes quantidades de, por exemplo, produtos agrícolas ou outras matérias da indústria ucraniana.

Por outro lado, a própria indústria ucraniana vai sendo bombardeada. Refinarias, centrais termo-elétricas, infraestruturas de eletricidade, algumas infra-estruturas ferroviárias. Estamos a falar de estruturas que vão demorar o seu tempo a ser reconstruídas. Vai demorar ainda algum tempo até a Ucrânia levantar-se e a própria ONU, através do seu programa alimentar mundial, também nos diz que prepara uma operação de longo prazo na Ucrânia a partir de agora.

NewsletterReceba a newsletter diária RFI: noticiários, reportagens, entrevistas, análises, perfis, emissões, programas.

Acompanhe toda a actualidade internacional fazendo download da aplicação RFI

Ver os demais episódios
Página não encontrada

O conteúdo ao qual pretende aceder não existe ou já não está disponível.