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Rússia: Putin faz discurso para "consumo interno"

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No tradicional desfile de 09 de Maio Vladimir Putin sublinhou que é um dever do povo russo evitar que se repita o "horror de uma guerra mundial". Na Praça Vermelha, o chefe de Estado  afirmou que as tropas russas e as milícias de Donetsk e Lugansk lutam pela pátria e ressalvou que o Exército combate na Ucrânia para se defender de uma "ameaça inaceitável".

Vladimir Putin a discursar no tradicional desfile de 09 de Maio que assinala a vitória sobre a Alemanha nazi em 1945.
Vladimir Putin a discursar no tradicional desfile de 09 de Maio que assinala a vitória sobre a Alemanha nazi em 1945. AP - Mikhail Metzel
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No tradicional desfile de 09 de Maio que assinala a vitória sobre a Alemanha nazi em 1945, Vladimir Putin sublinhou que é um dever do povo russo evitar que se repita o "horror de uma guerra mundial".

Na Praça Vermelha, em Moscovo, perante milhares de soldados o chefe de Estado russo afirmou que as tropas russas e as milícias de Donetsk e Lugansk lutam pela pátria e ressalvou que o Exército da Rússia combate na Ucrânia para defender a pátria de uma "ameaça inaceitável" do país vizinho apoiado pelo Ocidente.

O discurso de Vladimir Putin, pautado pela ausência de declaração de guerra ou de vitória, como se vinha a especular na última semana, acaba por enquadrar o ditado popular de que “a montanha pariu um rato” e é visto como um produto para consumo interno, como avançou à RFI Sandra Dias Fernandes, especialista da Rússia ligada à Universidade do Minho, em Portugal.

O discurso do presidente Putin foi, no geral, menos preocupante relativamente àquilo que se esperava. Esperava-se que ele usasse o discurso para uma espécie de fuga para a frente nesta guerra que a Rússia lançou contra a Ucrânia a 24 de Fevereiro de 2022. 

Foi um discurso relativamente curto e ao que tudo indica mais virado para dentro, para consumo interno em que a tónica foi colocada em duas dimensões: a glorificação do passado soviético da nação russa, do espírito nacional e, ao mesmo tempo, na vitimização, ou seja, a Rússia foi obrigada a lançar-se nesta guerra para, precisamente, proteger os seus ideais contra uma Ucrânia que toma o lugar da Alemanha nazi. Esta realidade paralela que já faz parte da propaganda russa, em que a Rússia está a combater os neonazis ucranianos e está também a antecipar um ataque que, de qualquer forma, viria de uma Ucrânia neonazi que se estaria a nuclearizar. 

Também uma tónica sobre a russofobia, a Rússia vítima no palco internacional e obrigada a responder a essas agressões e faltas de reconhecimento".

Esta ausência de novidade no discurso de Vladimir Putin, depois de tanta especulação sobre aquilo que ele poderia dizer, é um bocado aquela noção de que ‘a montanha pariu um rato’?

"É um pouco, é verdade, mas ainda bem. O que ficou claro é que a palavra Donbass foi usada muitas vezes, claramente uma declaração segundo a qual o Donbass é russo.

Penso que este discurso de Putin acaba por validar aquelas análises segundo as quais a ofensiva russa não está de todo é cumprir os objectivos iniciais, nem os sucessos esperados pela Rússia. Portanto, um discurso muito virado para dentro para continuar a justificar os recursos bélicos utilizados na Ucrânia e, também, uma atenção dada, que foi algo que notei particularmente, às famílias cujos soldados ou oficiais morreram. A “perda infinita para todas as famílias”. Foi anunciado pelo presidente Putin que as administrações russas iriam ajudar as famílias que perderam os seus familiares. Isto é bastante interessante porque esta guerra legalmente não é uma guerra. Há uma criminalização do termo guerra. É uma operação especial e sendo uma operação especial, ao abrigo do aparato jurídico russo, não há lugar ao repatriamento de corpos, nem de indemnizações. Isto lembra muito aquilo que foi o ‘Vietname dos russos’, o Afeganistão. Foram 10 anos de guerra, nos anos 80 e havia, de facto, um trauma com os aviões que repatriavam os corpos dos jovens soldados que morreram no Afeganistão.

Portanto, isto não existe neste momento na Rússia. Não é uma guerra, não há mortes, ou há muito poucos. No discurso, haver esse reconhecimento, penso que Vladimir Putin está também a preparar a população russa para uma guerra que se avizinha longa, porque não foi uma guerra relâmpago, nem uma guerra em que a Rússia tenha conseguido alguma vitória significativa".

Se a palavra Donbass é mencionada imensas vezes pelo presidente Russo, há duas palavras que estão ausentes deste discurso. A palavra vitória e a palavra Ucrânia. Porquê?

Há uma leitura que podemos fazer deste lado. Precisamente a dos resultados não terem sido aqueles que a Rússia esperava. É [um discurso] muito centrado para dentro, sobre o espírito nacional russo.

Realmente, Putin poderia ter apresentado a vitória que quisesse. A máquina da propaganda é de tal forma gigantesca, que Putin poderia ter apresentado Mariupol ou alguns flancos da guerra como um sucesso. Não o fez! Daqui esperamos outros desenvolvimentos. Seria expectável, por exemplo, que fosse declarado algo mais contundente relativamente ao Donbass, por que não um referendo para a anexação, para fazer parte da Rússia como foi feito na Crimeia, mas nada disto surgiu.

Surgiu a glorificação do esforço nacional passado russo e do esforço nacional actual, nesta espécie de ‘regresso ao futuro’ que é claramente um emaranhado de argumentos para fazer crer que a guerra que a Rússia está a combater em 2022 é comparável à guerra que a União Soviética combateu na Segunda Guerra Mundial.

Foi, também, muito presente o tema do sistema de igualdade no sistema internacional, ou seja, a Rússia ser tratada à altura da sua grandeza, em pé de igualdade com outras potências.

A expressão da ‘montanha que pariu um rato’, de facto, penso que foi a sensação com que todos ficámos. Mesmo no Donbass, se olharmos para os desenvolvimentos mais recentes, o exército ucraniano e os seus apoiantes estão a conseguir fazer frente à Rússia. A Rússia não têm ainda uma vitória clara no Donbass, região que já era desde 2014 pró-russa e apoiada, não oficialmente, pelas forças armadas russas. 

Portanto, até esta região, supostamente uma região verdadeiramente  pró-russa da Ucrânia, não caiu ainda definitivamente nas mãos dos russos. Continuamos com uns cenários muito em aberto, sendo que de facto Putin não aproveitou o 09 de Maio para uma fuga para a frente, pelo menos a nível do discurso."

O facto de Vladimir Putin pintar este conflito com esta maquilhagem toda, de alguma forma é para que os russos não percebam o que está verdadeiramente a acontecer na Ucrânia? 

"Neste momento, a informação que circula, do ponto de vista mediático, é a comunicação política da liderança de Putin. Portanto, este discurso está perfeitamente entrosado nisso.

Em vez de assumir que há perdas, em vez de falar do lado militar do conflito, centrou-se no espírito dos russos. Disse que o objectivo do inimigo era derrubar o ‘nosso espírito’ e que esse objectivo foi falhado. Há aqui uma inversão: a Rússia não é um estado agressor, é um estado agredido. E foi muito centrado na parte das ideias, na parte do normativo e não do todo, na questão operacional que nós vemos ser absolutamente horrenda, já com investigação de crimes de guerra. Isto foi completamente apagado, não presente [no discurso]".

O facto de a parada militar aérea não ter acontecido, ter sido cancelada supostamente devido à meteorologia. O que é que poderá querer dizer? Que os meios aéreos russos estão esgotados? Que estão todos a ser utilizados na guerra na Ucrânia e, por isso, não poderiam estar nesta parada militar?

A primeira vez em que a parada militar foi mais digna, mais moderna, foi a partir de 2008. Até essa altura, era uma espécie de exibição de quinquilharia militar. Portanto, o exército russo modernizou-se e usar a parada como o momento de mostrar o poderio, a modernização do equipamento, dos tanques dos mísseis, os soldados a desfilar é algo que foi orquestrado por Putin ao longo dos seus mandatos. 

Neste caso já se sabia que haveria menos demonstração, porque de facto o exército, as forças armadas estão mobilizadas na Ucrânia. O facto de ter sido prometido a montante que haveria mais exibição, nomeadamente, daquele famoso avião russo capaz de voar durante um ataque nuclear, vem colocar certas questões sobre verdadeiro estado das das Forças Armadas Russas, vem confirmar as análises que indicam que as forças armadas russas não têm o fogo necessário para uma ofensiva na Ucrânia que seja decisiva. 

Neste momento na Ucrânia nem os russos ganharam, nem os ucranianos perderam. Aliás, os ucranianos desejam muito uma melhoria da sua posição no terreno para poderem começar a negociar com os russos. Até lá ma,tem-se esta guerra indecisa, ainda”.

Este discurso acontece também neste dia que é o dia da Europa. De alguma forma, a Europa, enquanto a União Europeia, acabou por ser relançada com este conflito?

"Numa primeira leitura, é verdade que um dos assuntos mais mais divide os países da União Europeia que é a Rússia, de repente passou a ser um assunto que cria muita união. Isso é verdade. Nós vemos nas políticas que estão agora a tentar ser delineadas para precisamente poder fazer face à Rússia, nomeadamente a política energética, da defesa, são políticas que até então dificilmente eram comunitárias e esta guerra na Ucrânia veio trazer essa unidade. Portanto temos aqui unidade e temos, sobretudo, um maior alinhamento de estratégias comuns que era aquilo que faltava à União Europeia antes da guerra. 

Porque a anexação da Crimeia em 2014 e a desestabilização do leste da Ucrânia, no Donbass, já tinha trazido aqui uma alteração significativa, com a adopção das primeiras sanções contra a Rússia, mas ainda não tinha dado como resultado uma verdadeira estratégia comum e uma alteração de fundo de políticas que agora estão completamente a ser revisitadas e delineadas. 

Mas já estamos a ver aqui algumas dificuldades, nomeadamente na questão da dependência ao petróleo russo e do corte, até ao fim do ano, dos abastecimentos vindos da Rússia. 

Temos um antes e um depois do dia 24 de Fevereiro, mas estamos a observar até onde é que essa unidade vai em termos de políticas concretas, que sejam verdadeiramente comuns a Estados-membros que não partilham exactamente os mesmos interesses, mas partilham de um projecto que tem na sua base valores liberais".

Ou seja, esta união aparente formada a quente no início da guerra pode, de alguma forma, vir a diluir-se no tempo com esta guerra longa que se vizinha?

Pode. Nós vemos agora a dificuldade que existe na frente energética e é natural porque nem todos os Estados-membros têm a mesma dependência e depois há custos económicos muito fortes para as economias europeias que estão a sair duma pandemia.

Portanto o cimento político que existe da condenação unânime da agressão da Ucrânia tem que dar lugar agora a políticas muito concretas e a negociação dessas políticas vai evidenciar, obviamente, algumas fissuras ou maiores dificuldades na sua operacionalização”.

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