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"O que está em jogo não é a adesão da Ucrânia à NATO, é a sua integração na UE" Álvaro Vasconcelos

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Tem estado a decorrer desde o começo da semana uma nova ronda de negociações entre russos e ucranianos sob mediação turca em Istambul, o dia de ontem tendo terminado com a Rússia a prometer abrandar a sua ofensiva contra Kiev e outros pontos do país perante sinais da Ucrânia que por sua vez colocou em cima da mesa a sua neutralidade em troca de um cessar-fogo.

O Presidente turco Recep Erdogan saúda as delegações russa e ucraniana durante as conversações de Istamblu, ontem, dia 29 de Março de 2022.
O Presidente turco Recep Erdogan saúda as delegações russa e ucraniana durante as conversações de Istamblu, ontem, dia 29 de Março de 2022. © Presidência turca / AP
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Numa altura em que se está na quinta semana de ofensiva com milhares de vítimas e mais de 4 milhões de ucranianos a terem saído do país, estas evoluções não deixam contudo de ser vistas com cautela do lado de Kiev e os seus aliados ocidentais. Apesar das suas promessas, a Rússia tem continuado a bombardear a capital ucraniana e outras localidades, nomeadamente Tcherniguiv, no norte do país.

'Prudência' é também a palavra-chave de Moscovo que hoje considerou que as negociações "ainda não deram resultados promissores", muito embora tenha dado conta de "discussões substanciais" e de "propostas claras" de Kiev. "Há muito trabalho por efectuar" considerou Dmitri Peskov, porta-voz do Kremlin.

Entre os pontos a serem analisados, haverá os estatutos do Donbass e da Crimeia ou ainda as garantias de segurança a serem dadas a Kiev. Quanto à 'neutralidade' proposta pela Ucrânia, este conceito poderá igualmente estar sujeito a interpretações, como não deixa de sublinhar Álvaro Vasconcelos, antigo director do Instituto de Estudos de Segurança da União Europeia.

RFI: A Ucrânia propõe adoptar um estatuto 'neutro'. O que se entende com isso?

Álvaro Vasconcelos: O que entendem os ucranianos é que a Ucrânia não será um país-membro da NATO. No fundo, é uma constatação de facto. A hipótese de a Ucrânia ser membro da NATO verdadeiramente nunca existiu, porque quando foi decidido que a Ucrânia podia ser membro da NATO, a partir daí nada foi feito nem pela administração Obama, evidentemente que não foi feito pela administração Trump e não foi feito pela administração Biden, para concretizar esse objectivo. Portanto, a Ucrânia diz "nós não seremos membros da NATO", o que é uma constatação de facto. O segundo aspecto que a Ucrânia diz, é que não terá armas nucleares. Mas nunca esteve verdadeiramente na agenda da Ucrânia ter armas nucleares. A Ucrânia, pelos acordos de Budapeste de 1994, abandonou as suas armas nucleares e, portanto, a Ucrânia é um país que não tem o objectivo de ter armas nucleares. O terceiro aspecto é que a Ucrânia diz que poderá não ter bases estrangeiras, ou seja, não ter bases americanas. Depois fica a grande questão que é a questão-chave da 'neutralidade' da Ucrânia: é que a Ucrânia diz que será neutral de acordo com estas características que acabo de definir, mas é preciso que haja garantias de segurança. Ora, quando houve os acordos de Budapeste, quer os Estados Unidos, quer o Reino Unido, e depois a França e a China, ou seja todos os membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU com a Rússia, declararam que se a Ucrânia abandonasse as suas armas nucleares, ela estaria protegida contra uma agressão estrangeira. Ora, os estados que dão essas garantias, nenhum deles tomou uma iniciativa forte para proteger a Ucrânia da invasão. Um deles (a Rússia) invadiu a Ucrânia, rompendo completamente esse acordo. Portanto, eu acho que o grande problema da 'neutralidade' da Ucrânia vai ser o modo em que vão ser dadas as garantias de segurança que a Ucrânia vai exigir para assumir esse estatuto de neutralidade.

RFI: Até que ponto é que estes países estarão efectivamente dispostos a serem garantes da segurança da Ucrânia?

Álvaro Vasconcelos: Eles já tinham dado essas garantias nos acordos de Budapeste e não cumpriram. Portanto, eu penso que isso só terá credibilidade se o processo de integração europeu da Ucrânia se reforçar. Ou seja, se se abrirem negociações para a adesão da Ucrânia à UE e se, a prazo, isso se viesse a concretizar, aí eu acho que há uma garantia de segurança grande porque atacar um estado-membro da União Europeia é, de facto, atacar toda a União Europeia. Vamos pensar que amanhã a Suécia ou a Finlândia que são membros da União Europeia eram alvo de um ataque: é um pouco impensável que não houvesse uma reacção dos Estados-membros da União Europeia e possivelmente dos Estados Unidos contra um ataque a um Estado-membro da UE. Aliás a União Europeia vai fazer progressos no domínio da segurança e da defesa, com a Alemanha a rearmar-se e a França a propor um fundo de 200 mil milhões de Euros para a defesa europeia e, portanto, poderíamos pensar que esse poderia ser um dos grandes objectivos da segurança europeia nos próximos anos, as garantias de segurança à Ucrânia. Mas isso só terá credibilidade com uma Ucrânia que se consolidou democraticamente e que iniciou um processo de integração europeu.

RFI: A Ucrânia diz que está disponível para discutir o seu estatuto de neutralidade mas quer que um acordo final não impeça esse país de aderir à União Europeia. Até que ponto é que a Rússia não vai encontrar objecções?

Álvaro Vasconcelos: A Rússia pode fazer as objecções que quiser. A Rússia tinha como objectivo mudar o poder em Kiev e colocar um poder fantoche pro-russo e travar o processo de integração da Ucrânia na União Europeia. Devemos lembrar-nos de que tudo começou quando a Ucrânia correu com o Presidente em 2014, com a revolta de Maidan, porque não queria assinar o acordo de associação com a UE. Portanto, o que está em jogo desde o início, verdadeiramente não é a adesão da Ucrânia à NATO -que nunca teve credibilidade- é a consolidação democrática da Ucrânia e a sua integração na União Europeia mas parece-me que é muito mais difícil Putin, na situação actual de dificuldade militar que as tropas russas encontraram, impedir a adesão à UE do que impedir uma adesão à NATO.

RFI: A Ucrânia também quer que fique de fora desse acordo o estatuto da Crimeia e do Donbass. Até que ponto é que a Rússia também aí não vai querer um acordo global que inclua precisamente o estatuto da Crimeia e do Donbass?

Álvaro Vasconcelos: Certamente que esse acordo, para se realizar, a não ser que haja uma capitulação da Rússia -o que não me parece que vá acontecer- vai ter que incluir algo sobre a Crimeia e algo, eu não diria sobre o Donbass -diria que há uma ambiguidade que é perigosa- porque a região do Donbass é muito mais vasta do que as duas repúblicas separatistas. Se é possível ao governo ucraniano aceitar um processo como tinha aceitado com os acordos de Minsk em relação às duas repúblicas separatistas, não é possível que eles aceitem que toda a região do Donbass fique sob controlo russo, porque isso era verdadeiramente dividir a Ucrânia em duas partes, embora não em partes iguais. Isso seria inaceitável e o governo ucraniano que o aceitasse, cairia, não teria o apoio que tem hoje da população ucraniana. Portanto, eu diria que isso vai fazer parte das negociações e que o estatuto da Crimeia é mais complicado do que o estatuto das repúblicas separatistas. Nas repúblicas separatistas, possivelmente haverá um acordo para uma autonomia tão profunda que, no fundo, significa que elas deixam de ser parte da Ucrânia, isso é possível que aconteça. Em relação à Crimeia, encontrar um estatuto para a Crimeia que corresponda aos interesses das duas partes, ou seja que a Ucrânia não diga "perdemos a Crimeia para sempre" e a Rússia aceite que o estatuto que é encontrado não fere os seus interesses fundamentais, é a parte talvez mais difícil. Mas acho que ambos farão parte de um acordo certamente.

RFI: O chefe da diplomacia russa está neste momento na China, oficialmente para participar numa reunião sobre o Afeganistão. Desde já, nas suas primeiras declarações Sergueï Lavrov disse que está a ser criada uma "nova ordem internacional" que -julga- será "mais justa". O que se pode augurar com estas palavras e também com esta visita que provavelmente não será só sobre o Afeganistão?

Álvaro Vasconcelos: Com estas palavras, o que os russos estão a dizer é aquilo que os une aos chineses. Ou seja, tomar em consideração que os chineses julgam que a ordem internacional não corresponde à distribuição de poder que se deu nas últimas décadas, que a China não tem o lugar que deveria ter na ordem internacional e que é uma ordem ainda no essencial -dizem eles- hegemonizada pelo ocidente e que isso já não corresponde à relação de forças actual. O que de facto é verdade. O mundo de hoje já não é o mundo do fim da segunda guerra mundial. Se pensarmos que países com a dimensão da Índia, do Japão, do Brasil não são membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU, quer dizer, este órgão corresponde aos vencedores da Segunda Guerra Mundial e há uma ordem internacional que é contestada por um conjunto de países. Mas junta-se o facto de quer a Rússia, quer a China, serem regimes autocráticos. Portanto, também estão a dizer que a predominância das democracias e dos ideais democráticos e aquilo que no fundo está na base da Carta das Nações Unidas, que é a Declaração Universal dos Direitos do Homem, não são tão universais como isso. Isso é evidentemente algo que o mundo democrático não pode aceitar. O mundo democrático deve aceitar, no meu entender, uma reforma das Nações Unidas que permita que novas potências tenham um papel novo e mais importante. Não podem aceitar a proposta autocrática que a Declaração Universal dos Direitos do Homem não é universal e que eles não a têm que respeitar. No fundo, do ponto de vista internacional, é isso que os russos estão a dizer: "é isto que nos une à China".

RFI: A China tem tido até agora uma atitude de bastante recuo em relação à Ucrânia, mas tem destilado aqui e ali declarações que dão a entender que percebe perfeitamente a decisão de a Rússia invadir a Ucrânia. O que é que isso pode augurar para o futuro?

Álvaro Vasconcelos: Claramente está interessada em enfraquecer o campo ocidental, tanto mais que o Presidente Biden declarou a China "inimigo" e um "inimigo" que deve ser combatido estrategicamente e, portanto, a China tem interesse em enfraquecer os Estados Unidos e os seus aliados europeus. Mas por outro lado, a China está muito preocupada com o impacto sobre a economia que tem a crise na Ucrânia e a China tem um interesse na estabilidade do sistema económico internacional. A China precisa do comércio com a Europa e com os Estados Unidos, precisa das trocas tecnológicas, precisa de relações estáveis com os seus dois principais parceiros económicos que são a União Europeia e os Estados Unidos. A Rússia é fraquíssima do ponto de vista económico. Representa apenas cerca de 2% do Produto Interno mundial. Portanto, o que é preciso é olhar para China naquilo que são os seus interesses vitais e, por isso as relações comerciais e os investimentos entre a China e a União Europeia podem ser um factor importante para aproximar a China da Europa na questão da Ucrânia.

RFI: Relativamente à posição das Nações Unidas, tem-se colocado em questão o seu desempenho e nomeadamente do seu secretário-geral António Guterres que é acusado por algumas vozes de não ter sido suficientemente activo nesta crise. Qual é a avaliação que se pode fazer da actuação da ONU e qual é a sua margem de manobra?

Álvaro Vasconcelos: A primeira coisa que é clara, é que a ONU ficou paralisada. Ficou paralisada por causa do veto da Rússia no Conselho de Segurança, mas ficou mais paralisada do que deveria ter ficado. Porque a Assembleia-Geral das Nações Unidas por duas vezes condenou por uma esmagadora maioria, só com cinco votos contra, a invasão da Ucrânia pela Rússia. Portanto, eu diria que as Nações Unidas tinham aqui, baseado nas decisões da Assembleia-Geral, um campo de acção que deveria ter sido aproveitado. Por exemplo, porque é que a discussão de corredores humanitários e de garantir a segurança dos corredores humanitários é feita por Estados europeus e não foi uma iniciativa das Nações Unidas? As Nações Unidas, a partir das suas organizações humanitárias que são extremamente importantes, podem exigir -o secretário-geral pode exigir- acção das Nações Unidas e pode tomar iniciativas. Está previsto e já aconteceu no passado. Portanto, há aqui de facto um silêncio, uma falta de iniciativa das Nações Unidas que corresponde de facto à paralisia do Conselho de Segurança, mas eu acho que não está a ser devidamente aproveitado o facto de a Assembleia-Geral de uma forma esmagadora condenar essa invasão.

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