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Ucrânia: "Mais de 40% da população depende de ajuda humanitária" - OCHA

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Há 18 milhões de pessoas na Ucrânia a precisar de ajuda humanitária, um número que representa 40% da população do país. Uma situação difícil que pode vir a piorar com a chegada do Inverno e das temperaturas negativas. Saviano Abreu, porta-voz do OCHA na Ucrânia, sublinha que a situção pode vir a piorar com a chegada do Inverno. 

Há 18 milhões de pessoas na Ucrânia a precisar de ajuda humanitária.
Há 18 milhões de pessoas na Ucrânia a precisar de ajuda humanitária. AFP - GENYA SAVILOV
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Há 18 milhões de pessoas na Ucrânia a precisar de ajuda humanitária, um número que representa 40% da população do país. Uma situação difícil que pode vir a piorar com a chegada do Inverno e das temperaturas negativas.

A este propósito a RFI entrevistou Saviano Abreu, porta-voz do OCHA (Escritório das Nações Unidas para Coordenação de Assuntos Humanitários) na Ucrânia, que começou por nos fazer um ponto da situação humanitária no país. 

Quase a chegar aos 200 dias do início da guerra, aqui na Ucrânia, a situação está piorando a cada dia. Infelizmente, eu acho que a situação humanitária na Ucrânia não está mais nos meios de comunicação como estava antes, mas a situação está tão ruim ou pior do que quando isso era notícia todos os dias.

As pessoas precisam de ajuda, principalmente agora que o Inverno está chegando, para conseguirem estar protegidas durante o Inverno duro, que aqui na Ucrânia pode chegar a -20°.

Imagina o que é viver numa casa - tem muitas pessoas nessa situação - sem portas e sem janelas ou meio destruídas, sem gás para aquecer e sem electricidade. É a situação, infelizmente, de milhões de ucranianos que estão nas áreas mais afectadas pela guerra. 

A situação do Inverno preocupa-nos muito, é urgente que possamos ajudar essas famílias, mas também as outras necessidades humanitárias que estão aqui desde o início da guerra, que é a falta de acesso à água em muitas áreas do país, falta de acesso à electricidade, a gás, a comida, a protecção… É o que estamos tentando fazer e acelerar o nosso suporte a essas pessoas que estão precisando de ajuda antes de o Inverno chegar.

No total, hoje aqui na Ucrânia, quase 18 milhões de pessoas precisam de ajuda humanitária, é um número enorme, mais de 40% de toda a população do país, depende da ajuda humanitária para sobreviver."

Como é que conseguem essa logística para chegar a 18 milhões de pessoas e responder a estas necessidades que são tão díspares? Fala em água, alimentação, mas também com a questão do inverno. Como é que podem colmatar a falta de abastecimento de energia?

É uma operação bastante complicada porque estamos operando numa área em guerra, em que qualquer acção em segurança é muito difícil. Nós conseguimos e temos acesso às pessoas que precisam dessa ajuda em boa parte do país, nas áreas que estão controladas pelo governo ucraniano. Nessas áreas nós conseguimos chegar, nós conseguimos dar o apoio humanitário. 

Agora, como você me perguntou, sobre como ajudar as pessoas que não têm acesso à electricidade e ao gás? Estamos começando um processo de reparação urgente de casas, de abrigos, adaptando locais onde as pessoas deslocadas estão vivendo de maneira conjunta, para estarem preparadas para o Inverno. 

Distribuição de kits para o Inverno, de combustível sólido para que possam aquecer a casa se não tiverem acesso ao gás. Tem várias maneiras, várias formas que podemos ajudar. 

Também oferecemos dinheiro, ajuda directa em dinheiro, para que as pessoas possam fazer as escolhas delas e comprar o que elas necessitam para passar esse período.

Mas uma coisa importante que eu acho que não podemos deixar de comentar é o nosso acesso, o acesso humanitário às áreas que estão sob o controlo da Federação Russa ou dos grupos afiliados. Nessas áreas nós não podemos entrar. 

Desde o início da guerra, na verdade, nós não conseguimos cruzar as frentes de batalha para entregar os suprimentos nas áreas que não estão controladas pelo governo da Ucrânia. O nosso acesso está sendo negado desde o início da guerra e é uma situação urgente, eu diria desesperadora. As pessoas estão desse outro lado da frente de batalha ou nas áreas bem perto da frente de batalha e, por questões de segurança, muitas vezes não conseguimos ir a essas áreas, para que possam receber ajuda humanitária que elas necessitam depois de passarem esses quase 200 dias de uma guerra feroz que está deixando um nível de destruição aqui no país que é inimaginável."

Se a situação humanitária na região controlada pela Ucrânia é preocupante. Não menos preocupante é a situação humanitária na zona controlada pelas forças russas. Todavia, vocês não têm acesso a essas pessoas.

Nós temos presença humanitária em algumas dessas áreas, em Donetsk, por exemplo, onde já estávamos operando antes do dia 24 de Fevereiro, antes do início da guerra, durante os quase oito anos de conflito. 

Ainda temos presença nessas áreas, mas é uma presença muito limitada pelos problemas de não conseguirmos levar os suprimentos, os materiais de ajuda que precisamos para operar nessas regiões. Temos restrições de movimento. Temos vários problemas que estamos enfrentando nessas áreas, colocados pelas entidades que controlam os territórios, que impedem o nosso processo.

Para ter uma ideia, nem sequer um processo de avaliação no terreno, de qual é a situação humanitária nessas regiões, nós podemos fazer. Então, é difícil, inclusive, de especificar, de dar números exactos de quantas pessoas, de qual ajuda humanitária precisamos entregar? 

Nós sabemos que a situação é dura, que as pessoas precisam dessa ajuda, porque temos “olhos” e fontes aí que nos dizem isso, mas é difícil de determinar o nível que precisamos operar, porque não temos o acesso para fazer o nosso trabalho.

Este universo de 18 milhões de pessoas, 40% da população ucraniana, de que me fala é a população que se encontra na zona controlada pelo governo ucraniano?

Não, nós tínhamos uma estimação, incluindo das zonas que estão controladas. Nós sabemos os números de população que estavam nessas áreas. Essas estimações, se não me falha a memória, mais ou menos uns 5 milhões de pessoas, muito aproximado, devem estar nessas áreas e são pessoas que precisam de ajuda humanitária. 

Mas como eu disse, são estimações que fizemos há alguns meses, são perto da realidade, mas não é uma realidade que nós podemos ir verificar e falar com segurança de que essa situação. É uma estimação que precisávamos poder entrar e conseguir verificar isso e verificar qual é a necessidade do nosso trabalho lá.

Outro exemplo que é muito gráfico do que está acontecendo, nós conseguimos durante esses quase 200 dias de guerra prestar ajuda humanitária ou dinheiro para, comida, água, serviços médicos, que é outra necessidade brutal aqui no país - vários centros médicos foram destruídos ou o pessoal médico sanitário teve que deixar as áreas. o acesso aos serviços de saúde estão muito restritos em algumas áreas. 

Conseguimos chegar a, mais ou menos, 13 milhões de pessoas durante esses esses 200 dias de guerra. Desse, só um milhão estão em áreas que não estão controladas pelo governo da Ucrânia. 

Acho que isso é muito gráfico para dar uma ideia da falta de acesso, dos problemas que estamos enfrentando para chegar nas outras áreas onde as pessoas precisam da ajuda humanitária, precisam do nosso suporte, inclusive de protecção se eles quiserem sair dessas áreas que estão enfrentando problemas. Essas pessoas não estão recebendo a ajuda pelo menos da nossa parte, da parte das organizações humanitárias que elas deveriam receber.

Estas pessoas são de que faixa etária? São maioritariamente mais velhas que não puderam sair do país?

Nas áreas que estão perto da frente de batalha, do lado controlado pelo governo ucraniano, sabemos que a maioria são pessoas mais idosas, pessoas com dificuldades de locomoção, grupos mais vulneráveis que não conseguiram sair porque o movimento não é fácil. Tem que pegar transporte ou caminhar. Então não é uma coisa tão simples para uma pessoa muito velha, com problemas de movimento, sair, fugir dessas áreas que estão perto da frente de batalha.

Do outro lado, os grupos são muito mais mistos.

Heterogéneos?

Exacto. Porque os problemas lá para sair não são só a dificuldade de movimento, por exemplo, de uma pessoa mais velha, mas também as restrições que as pessoas estão enfrentando para poder sair dessas áreas. 

Nos últimos dias, por exemplo, em Zaporizhzhia Oblast, entre o leste e o sul do país - Oblast é o como a gente chama os estados ou as regiões aqui da Ucrânia - uma parte está controlada pelo governo da Ucrânia e outra pelo governo da Rússia, os nosso colegas que estão lá falaram de, mais ou menos, 4.000 pessoas, em carros particulares, que estão perto do checkpoint, dos pontos de controlo, tentando passar para o lado ucraniano. Estão lá, ficaram lá dias, dias e dias e algumas pessoas inclusive morrem nas filas tentando cruzar para o lado de cá. 

Então, é um grupo heterogéneo, tem pessoas de todas as idades, de todos os tipos tentando fugir e infelizmente enfrentam problemas enormes que não deveriam. É um direito humano poder, pelo menos, se proteger e fugir de uma área que está experimentando bombardeios diários. São problemas que estão enfrentando e não estão conseguindo sair.

Essas pessoas de que fala, do lado ucraniano, as mais idosas que estão na frente de guerra, que são mais vulneráveis à guerra por dificuldades também de locomoção, também são elas mais vulneráveis ao Inverno que se aproxima. O que posso fazer antever aqui que o cenário vai ficar ainda mais negro, mais difícil, mais triste?

Exactamente, eu acho que eu não teria explicado melhor do que o que você acaba de dizer. Me deixa triste mencionar o que está acontecendo. São pessoas idosas que têm que passar horas intermináveis em abrigos subterrâneos ou no interior das casas se protegendo, porque essas áreas estão sendo bombardeadas constantemente. 

Há três dias fomos perto dessas áreas para distribuir ajuda humanitária. Conseguimos levar seis camiões de ajuda humanitária, que vão ajudar, mais ou menos, 5.000 pessoas perto das frentes de batalha em Donetsk Oblast.

Estamos fazendo isso regularmente, mas ainda não é o suficiente. O suficiente para essas pessoas, era poderem estar na casa delas de maneira normal, ter acesso a gás para aquecer a casa, poder cozinhar e isso não está acontecendo. 

Eu conheci há poucas semanas um casal que está em Odessa. Eles foram deslocados, fugiram da guerra com os filhos. Os pais da mulher estão em Donetsk Oblast, numa dessas cidades que está sendo bombardeada constantemente. E essa senhora, essa mulher, me contava a situação dos pais: têm mais de 80 anos, não se movem com facilidade, não saíram de casa e também não querem sair. 

Eu acho que isso, cada um de nós, pode entender, é a casa deles, onde eles viveram a vida toda, eles não querem sair dali, mesmo tendo bombardeamentos diários. Essa Senhora em Odessa, sabendo que eles não têm acesso a gás para cozinhar, por exemplo, ela busca maneiras muito criativas para conseguir enviar por correio suprimentos para os pais dela. 

A única maneira que os pais conseguem ter acesso a alimentos lá é recebendo essa ajuda que a própria família está enviando por correio. Envelopes de sopa, inclusive combustível para cozinhar de uma maneira que ela me explicou, muito criativa, para conseguir que o correio aceite combustível e você vê nos olhos dessa mulher o desespero dela de saber que os pais estão lá e não poder fazer mais do que só enviar coisas para o correio diariamente, para que eles possam se alimentar e que possam cozinhar e que possam fazer alguma coisa. 

A casa deles recentemente foi atingida por um bombardeio e a parte superior da casa pegou fogo. Esses dois velhinhos carregaram baldes de água, tentando apagar isso, porque o corpo de bombeiros não está na região, não pode ajudar. A história dessa família que me marcou muito, dá um panorama exacto do que as pessoas mais idosas, mais vulneráveis, estão sofrendo Donetsk e em outras partes do país também."

De alguma forma, esta brutalidade desta guerra exigiu uma resposta diferente por parte da ajuda humanitária?

A gente opera em vários países do mundo, infelizmente não é o único conflito, a única guerra em que estamos operando. Mas cada país tem as suas particularidades e as suas diferenças humanitárias. 

O que foi diferente para a gente aqui na Ucrânia, foi a escala, o tamanho da resposta humanitária que nós precisamos de montar de um dia para o outro. Não é uma guerra que cresceu de maneira gradual e que atingiu um número de pessoas que foi aumentando de maneira gradual, que é o que a gente viu em outras partes do mundo. 

Aqui desde o dia 24 [de Fevereiro], o primeiro dia da invasão, o nível de destruição que a guerra causou, exigiu uma resposta humanitária que foi de estarmos presente em duas regiões do país, Donetsk e Lugansk, com um processo de ajudar, mais ou menos, 3 milhões de pessoas que estavam nessas áreas, com uma resposta muito específica das necessidades humanitárias dessas de pessoas, para poucas semanas depois precisamos de estar presente nas 24 regiões do país, ajudando ou tentando pelo menos ajudar 18 milhões de pessoas que precisam de ajuda humanitária.

Então, o nível de crescimento do número de pessoas que precisa da ajuda humanitária é incomparável, da maneira que foi tão rápido, com outras regiões do mundo. Então foi um processo que tivemos que trabalhar sem parar dia e noite para conseguir montar essa estrutura, chegar a todas as regiões do país com ajuda que precisamos.

Isso sem contar com as pessoas que estão fora da Ucrânia que também precisam de ajuda humanitária, que são aquelas que fugiram e se converteram em refugiados e refugiadas em outras partes do mundo, aqui na Europa e também em outras regiões."

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