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Reportagem

"As areias do imperador", peça sobre Moçambique colonial, em exibição na região de Paris

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Até este sábado está em cartaz a peça de teatro "As Areias do Imperador", na região de Paris. O espectáculo tem assinatura de Victor de Oliveira. O encenador e actor, nascido em Moçambique, já apresentou a obra em Lyon, centro sul da França, mas também em Aveiro, Porto e Lisboa, em Portugal. O Teatro de Bobigny, perto de Paris, propõe, pois desde esta quarta feira, uma obra baseada nos escritos de Mia Couto.

"As areias do imperador", peça de teatro de Victor de Oliveira retrata o amor entre a jovem Imani e o sargento português Germano.
"As areias do imperador", peça de teatro de Victor de Oliveira retrata o amor entre a jovem Imani e o sargento português Germano. © Filipe Ferreira
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Em causa o amor da jovem moçambicana Imani e do sargento português Germano no final do século XIX.

Uma peça que conta com um elenco moçambicano e português essencialmente, e também com uma equipa francesa .

O actor e encenador Victor de Oliveira começa por nos contar o que está na génese do projecto.

Victor de Oliveira
Elenco do espectáculo "As areias do imperador" no MC93 de Bobigny, perto de Paris, a 27 de Março de 2024.
Elenco do espectáculo "As areias do imperador" no MC93 de Bobigny, perto de Paris, a 27 de Março de 2024. © rfi/Miguel Martins

Foi um longo trabalho. Quer dizer, a partir do momento em que eu comecei a ler o romance de Mia Couto, que é um romance longo na edição portuguesa, portanto, são três tomos. Ao fim, chegam a 1500 páginas de "Mulheres de Cinzas", o primeiro, depois "A Espada e Azagaia" e depois, finalmente, "O bebedor de Horizontes".

Quando comecei a ler o primeiro tomo "Mulheres de cinzas", comecei a pensar: Isto é incrível!

E quanto mais ia lendo, mais me convencia que esse era o melhor texto para eu continuar na minha relação com Moçambique, na minha relação com uma equipa de actores e actrizes moçambicanos com quem eu tinha trabalhado em 2019 para o "Incêndios", que é um outro espectáculo.

 

"As areias do imperador" de Victor de Oliveira, actualmente em cartaz no MC93 de Bobigny.
"As areias do imperador" de Victor de Oliveira, actualmente em cartaz no MC93 de Bobigny. © TUNA/STNSJ

 

E também uma maneira de continuar o meu questionamento às minhas questões em relação à colonização, a descolonização e toda esta relação entre Norte e Sul, entre a Europa e a África. Portanto, a partir desse momento em que eu comecei a dizer que eu tenho que fazer uma adaptação e comecei a trabalhar para a adaptação. Obviamente pedi os direitos ao Mia Couto e depois comecei a tentar ver em termos de produção, se seria possível, porque eu queria trabalhar com uma equipa moçambicana. Obviamente teria que trabalhar também com uma equipa portuguesa e com os meus técnicos franceses.

 

MC93 de Bobigny, perto de Paris.
MC93 de Bobigny, perto de Paris. © rfi/Miguel Martins

 

Portanto, três países não é fácil. Com uma data de problemas, obviamente económicos, sobretudo, mas não apenas um projecto muito grande, porque há muitos actores. São 15 actores no palco, actores e actrizes, mas a equipa técnica são mais de 20 pessoas ao todo. Ou mesmo com a equipa de produção são quase 30 pessoas.

Portanto, eu antes mesmo de começar a trabalhar na adaptação, eu teria que ver de que maneira é que seria possível em termos de meios para o fazer com os produtores. E pouco a pouco fui falando, fui encontrando pessoas e os meus parceiros tornaram-se co-produtores do projecto. E aí as coisas foram avançando também para conhecer uma parte dos actores portugueses que eu não conhecia, ter a certeza que poderíamos ter a primeira parte dos ensaios em Maputo. Portanto, eu diria que demorou mais ou menos três anos.

Aliás, talvez um pouco mesmo, um pouco mais, porque no início o espectáculo deveria ter sido criado no Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa. Mas finalmente, o novo director do teatro Dona Maria, decidiu que não poderia ser nesse ano, porque eles não tinham orçamento. Então decidiu fazê-lo no ano seguinte. E no ano seguinte, que foi no ano passado, era impossível, porque o teatro começou em obras e o dona Maria II está em obras.

 

MC93 de Bobigny na estreia do espectáculo "As areias do imperador" [Les sables de l'empereur], perto de Paris, a 28 de Março de 2024.
MC93 de Bobigny na estreia do espectáculo "As areias do imperador" [Les sables de l'empereur], perto de Paris, a 28 de Março de 2024. © rfi/Miguel Martins

 

Então foi por isso que nós, na semana passada apresentámos o espectáculo em Lisboa. Mas foi na Culturgest, integrado no ciclo "Abril Abriu", que é o ciclo que o Dona Maria II criou para as comemorações, digamos assim, da Revolução de 25 de Abril [de 1974 em Portugal].

E tudo isso, como eu disse desde o princípio, foi muito tempo da ideia a partir da vontade e depois o trabalho da adaptação, o trabalho, a busca dos co-produtores, constituir toda a equipa artista e técnica. Até conseguirmos, em Setembro do ano passado, conseguirmos finalmente estrear o espectáculo no Teatro Aveirense, em Aveiro. Depois apresentámos no Teatro Nacional São João, no Porto, e depois apresentámos em Lyon, no Teatro Les Célestins. E agora vamos apresentar aqui em Bobigny, no MC93, e vamos estar aqui até sábado.

Fazia referência ao facto de os ensaios terem tido lugar precisamente em Moçambique, em Maputo. Este espectáculo tem estado a viajar, como acabou de nos fazer referência. Ele vai viajar de novo para Moçambique?

Nós esperamos que sim. Nós estamos a tentar que isso seja possível, porque, obviamente, o problema com Moçambique é que os meios não são muitos/ E se bem que uma parte da equipa é moçambicana, portanto eles já estão em casa. Mas há toda outra equipa dos portugueses e dos franceses que vive aqui em Portugal e em França. Portanto, para nós, conseguimos fazer com que 12 ou 13 pessoas possam vir da Europa para Moçambique não é fácil. Portanto, nós estamos a trabalhar com os nossos parceiros moçambicanos, portugueses e franceses para que isso seja possível. Mas quero acreditar que será possível, porque temos que o fazer lá, porque uma parte dos ensaios foi feita lá, faz parte da história de Moçambique.

Uma parte da história é a captura do último imperador que se chamava Gungunhana pelo capitão Mouzinho de Albuquerque. Gungunhana tornou-se uma figura histórica.

 

"As areias do imperador" de Victor de Oliveira, actualmente em cartaz no MC93 de Bobigny.
"As areias do imperador" de Victor de Oliveira, actualmente em cartaz no MC93 de Bobigny. © TUNA/STNSJ

 

Lendária !

Lendária em Moçambique ! Portanto, que nós possamos fazer um espectáculo em que essa figura lendária esteja em palco é muito importante. Tive ainda mais a certeza que temos que o ir fazer em Moçambique quando nós apresentamos o espetáculo em Lisboa, porque o autor do texto, Mia Couto, veio ver no dia da estreia. Ele adorou o espectáculo e falou bastante connosco. E também ele diz que é fundamental podermos apresentá-lo lá. Portanto, vamos tentar.

Tem que ver com o amor entre uma moçambicana e um soldado português do final do século XIX, não é? Como é que esta história de facto, está a ser vivida? Como é que têm sido as reacções dos espectadores? Já fez referência às viagens que o espetáculo tem feito. Como tem sido o retorno ? Falou-nos agora do Mia Couto. Para além de ele, o que é que diz o público ?

Tem sido incrível. Porque obviamente que não é... Por exemplo, quando apresentámos no Porto, em Aveiro, depois apresentamos a reacção não é a mesma dos portugueses e dos franceses.

Para os franceses, eles estão deliciados em, de repente, descobrir o mundo, que eles não conhecem. Uma história que eles não conhecem, porque os franceses conhecem muito pouco da história colonial portuguesa, muito pouco. Moçambique, muitos deles nem sequer sabem geograficamente onde se situa Moçambique !

Portanto, de repente, estar-se a ouvir uma história que é uma história sobre a colonização com moçambicanos, com actores moçambicanos que falam em changana, uma língua que eles não conhecem, nunca ouviram na vida, com actores portugueses ! E toda essa história estar a ser contada em palco para eles. É incrível ! Porque têm a impressão de viajar, de viajar no tempo e de viajar geograficamente. Têm essa impressão. Isso é muito bom. Para os portugueses e para os moçambicanos que viram o espectáculo em Aveiro, no Porto e em Lisboa é muito mais forte ! Porque de repente, é a própria história e a nossa história comum !

 

Elenco do espectáculo "As areias do imperador" no MC93 de Bobigny, perto de Paris, a 27 de Março de 2024.
Elenco do espectáculo "As areias do imperador" no MC93 de Bobigny, perto de Paris, a 27 de Março de 2024. © rfi/Miguel Martins

 

A história de colonização, que em muitos aspectos, não foi ainda realmente cicatrizada. É a história de um amor, que é um amor que por muitas vezes é difícil, porque é entre um branco e uma negra. Portanto, tudo isso faz com que seja muito mais forte ! Porque de repente as pessoas são tocadas directamente. Houve pessoas no Porto e em Lisboa, que estavam extremamente tocadas, extremamente emocionadas, porque a história de amor entre a Imani e o sargento Germano é algo que lhes dizia pessoalmente e que estava ligada a algo muito maior, portanto.

E para aqueles que não estavam talvez tão ligados em relação à história de amor e mais à história da descolonização... de repente é algo que foi muito forte. Porque muitas das deixas das personagens são destas que vão muito para além da história das personagens, vão muito para além, estão muito ligadas à história universal que é nossa.

A história comum entre os moçambicanos e os portugueses, onde os portugueses e grande parte das ex-colónias. Portanto, e essa história é muito importante e as pessoas vêem, sentem. E eu estou agora muito curioso de ver como é que vai ser aqui em Bobigny porque o público parisiense é extremamente exigente e conhece pouco justamente essa história. Estamos todos muito curiosos em ver como é que eles vão para esta estreia.

Essa estreia coincide com o Dia Mundial do Teatro, precisamente [27 de Março]. Você trabalha em teatro há muito tempo e agora aqui, como encenador. Em que medida é que já houve outros projectos em que você tenha feito também encenação ? Ou pretende, por ventura, no futuro, pegar noutros projectos para levá-los a cabo?

Os projectos acontecem. Eu sou encenador há relativamente pouco tempo. Sou um actor já há muito, muito tempo, mas encenador há relativamente pouco tempo. E até agora, os projectos que eu tenho tido vontade de fazer e que eu tenho conseguido fazer são ligados a coisas muito pessoais, extremamente íntimas, que é a minha história com o meu país de nascimento, com as minhas raízes, com questões que me acompanharam durante a minha infância, a minha adolescência e enquanto adulto.

Portanto, não é algo em que eu digo "O que é que eu vou fazer agora ? É algo que vem porque de repente encontro algo que me diz "Ah, isto eu tenho que fazer ! Disto tenho que falar !" Porque tenho vontade e porque tenho necessidade ! Por vezes, e isso é muito importante.

 

Encenador luso-moçambicano Victor de Oliveira no MC93 de Bobigny a 27 de Março de 2024.
Encenador luso-moçambicano Victor de Oliveira no MC93 de Bobigny a 27 de Março de 2024. © rfi/Miguel Martins

 

O espectáculo, por exemplo, se estivermos a falar em termos daquilo que poderá acontecer depois, mais tarde... Há um espetáculo que eu fiz antes das "Areias do Imperador", em que o tema é relativamente à volta da mesma coisa. Chama-se "Limbo", mas é um aspecto muito diferente, que é um monólogo. É um monólogo que eu escrevi, que eu interpreto e que eu enceno, que foi criado em 2021 no Teatro do Bairro Alto, em Lisboa, mas que está em turnê um bocado por todo o lado e que na próxima temporada, em Janeiro de 2025, será apresentado aqui em Paris, no Théâtre National de la Colline.

E eu estou extremamente contente e feliz por isso, porque é uma forma muito simples. É um monólogo que fala sobre, mais uma vez a colonização portuguesa, a mestiçagem e a política de assimilação portuguesa nas ex-colónias durante o período colonial do pós independência e depois do espaço e do lugar daqueles a quem chamamos afro-descendentes na Europa hoje.

Portanto, são temas à volta dos temas de que eu falo nas "Areias do imperador" e que um espectáculo como este, que está tão ligado à história de Moçambique e de Portugal, que seja apresentado aqui em França, no Teatro Nacional, para mim é muito bom, mas tem a ver com coisas que são questões que me atravessam e que me parecem importantes tratá-las em termos artísticos. Portanto, para saber o que é que eu vou depois criar, por enquanto as coisas têm que vir, elas vêm !

Sufaida Moyane, actriz moçambicana, encarna o papel de Imani. Ela começa por realçar a importância de trabalhar num projecto tão moçambicano falado tanto em português como em changana.

 

Sufaida Moyane
Actriz moçambicana Sufaida Moyane no MC93 de Bobigny a 27 de Março de 2024.
Actriz moçambicana Sufaida Moyane no MC93 de Bobigny a 27 de Março de 2024. © rfi/Miguel Martins

Para nós, para começar, como actores moçambicanos, foi muito gratificante ter feito esse trabalho, ter trabalhado com uma coisa que é nossa, nossas línguas e tal. Bom, esta é uma ideia que começou com o encenador que é o Victor de Oliveira e convidou-nos a nós, que já tínhamos trabalhado com ele num projecto anterior.

O "Incêndios" em 2019.

Exacto. Então ele levou a maior parte da equipa moçambicana para participar neste projecto também. E neste projecto foi muito mais participativo por parte de actores, porque, por exemplo, o Victor, ele não falava changana. Agora fala, ele actua. Nós tivemos que confirmar uma série de coisas da cultura dos Changanas. Tivemos que participar na adaptação para trazer algumas coisas culturais locais.

Ele é moçambicano, mas há muito tempo que ele não está em Moçambique, então não é fácil saber de várias coisas. E foi um processo muito, muito, muito bonito !  E levou muito tempo também, porque, como vê, tem muitos actores, é longo. Fomos cortando, fomos acertando, foi doendo tirar algumas coisas que eram bonitas, boas, mas nós tínhamos que afinar a uma certa narrativa, não é?

Então foi e está a ser ! Continua a ser um processo muito bom. Nós esperamos então levar esse espectáculo para Moçambique. E é muito bom para nós, como moçambicanos, a falar changana e perceber que o público está connosco a ouvir e a ver essa história.

 

"As areias do imperador" de Victor de Oliveira, actualmente em cartaz no MC93 de Bobigny.
"As areias do imperador" de Victor de Oliveira, actualmente em cartaz no MC93 de Bobigny. © Filipe Ferreira

 

Aqui em França então é pior porque eles têm de ver a legenda quase todo o espectáculo ! Em Portugal ainda tem uma boa parte de português que não precisa de tradução e em Portugal também nós encontrámos muitos moçambicanos. Isso é bom, que não precisavam de nenhuma legenda, então podiam reagir directamente ao changana e ao português, ou seja, estavam livre de olhar para aquelas telas de legendas, simplesmente estar a curtir o espectáculo.

Por isso nós achamos que devemos levar esse espetáculo para o nosso país, porque em Moçambique, apesar de nós trazermos o changana de lá, nós não fazemos espectáculo em changana, não temos este hábito de fazer as coisas nas nossas línguas, não é? Então fazemos em português.

Então aqui, assim como em Moçambique, vai ser quase que uma surpresa, uma coisa diferente. Acho que não é comum as pessoas fazerem espectáculos e usar as línguas locais. Geralmente usam-se as línguas mais internacionais em inglês, francês. E quando se sai para um país diferente, usa-se aquela língua.

Então é muito bom. Isso para nós é uma valorização. Estamos a dizer ao mundo que nós existimos, que nós falamos esta língua, que ela existe e que é linda acima de tudo !

 

Actriz moçambicana Sufaida Moyane no MC93 de Bobigny a 27 de Março de 2024.
Actriz moçambicana Sufaida Moyane no MC93 de Bobigny a 27 de Março de 2024. © rfi/Miguel Martins

 

E como é que é contracenar precisamente, então, com portugueses, com franceses também ?

É muito bom. Colhemos sempre a experiência. Eu sempre digo "Quando vou trabalhar com pessoas diferentes, vou sempre colher alguma coisa, um lugar diferente, um espaço diferente, um palco diferente, o encenador diferente, um texto diferente." Então, é sempre muito bom ! E depois existe aqui uma beleza neste espectáculo que é gente, ouvir uma certa música em termos de línguas diferentes, ouvir changana, ouvir o português, ver aquele sotaque, depois o outro, ouvir o francês e depois um francês que fala changana, um francês que fala português. Então é uma música linda. Eu acho que o público que vê pela primeira vez tudo isso sente muito mais do que eu estou a dizer. Mas mesmo eu sinto isso ! Então é uma experiência muito boa. A gente sempre colhe alguma coisa.

É mais do que uma história de amor. Há uma história de amor, também há uma história de preconceito, de traição. O que é que você viu por detrás deste enredo?

Nas "Areias do Imperador",  não é ? A trilogia toda do Mia Couto trata muitas coisas. É como se fosse, como se o Gungunhana fosse uma... não uma desculpa. 

Um pretexto ?

Sim, Mas é uma história sim, mas o Gungunhana é uma história. O Mia Couto é como se ele estivesse a contar as histórias das pessoas que estão também à volta do Gungunhana. Porque temos a Imani, que é a protagonista que conduz e que conta esta história toda.

Mas também temos muita coisa lá dentro. As lutas, as guerras, as raças, as línguas. Há uma questão lá mesmo de línguas que é colocada na trilogia, que é o facto de uns pronunciarem assim os nomes. Uns, por exemplo, os portugueses acabam transformando alguns nomes. Isso é um facto real.

 

"As areias do imperador" de Victor de Oliveira, actualmente em cartaz no MC93 de Bobigny.
"As areias do imperador" de Victor de Oliveira, actualmente em cartaz no MC93 de Bobigny. © Filipe Ferreira

 

Temos muitos nomes, muitos apelidos que estão transformados e agora estão registados desta forma porque o português não conseguia pronunciar. Então dizia assim "Olha, agora vai ser isso". E às vezes matava o significado.

Por exemplo nós temos zixaxa. Os portugueses pronunciam de forma diferente. Temos um exemplo de nome como camadesolo. Em changana, quer dizer joelho. Significa que existe alguma história por detrás desse lugar e deram o nome de alguma coisa como "joelho". Se calhar era um lugar, eu não sei a história em que as pessoas iam lá e ajoelhavam, mas o português não conseguia pronunciar isso e disse "Não, isso é Matola !" Mas Matola não tem significado nenhum.

E existem muitos outros nomes que estão a transformar. Então uma questão de línguas que está lá e que nós também tentamos trazer aqui. Alguns dizem zixaxa de forma diferente, consoante as pessoas. Por exemplo, eu corrijo o Germano. A Imani corrige o Germano. "Não é Gungunhana, é Ngungunhane". Então é uma série de coisas e pronto, existe. Acabamos escolhendo esta linha porque não podemos trazer tudo, que é esta linha da história da humanidade. Que é uma história de amor, mas que por detrás tem, isto estão as guerras. Em paralelo está a captura de Gungunhana. Então vamos contar tudo isso. Só que seguindo esta linha da Imani.

Antes de ir para Moçambique, porque o projecto, de facto, é chegar a Moçambique. Já passaram por Portugal, pela França. Tem algum nervosismo especial por estrear perante estes públicos novos? E como é que eles têm reagido?

Ah, temos sim. Sempre acho que o actor tem sempre algo, algo de nervosismo quando vai actuar. Eu em particular, quando não sinto, fico preocupada. Acho que alguma coisa não está bem, porque tem que se sentir. Sim, a gente sente. Por exemplo, ficamos muito preocupados pelo facto de trazer aqui na França e eles não falam português.

E depois, por exemplo, em Portugal, acho que existem algumas pessoas que não conhecem essa história de Gungunhana. As pessoas novas porque não lhes ensinam, porque talvez não lhes interessa. Para alguns, Gungunhana não tem importância nenhuma. Era visto como um bêbado. como não sei o quê ! Representa isso, então ficamos de alguma forma até preocupados.

"Será que o público há-de vir? Será que isto lhes interessa, não é"? Será que ao verem há a questão de raças também? Será que ao verem fotografias, cartazes de negros eles virão e lhes interessa ver esses africanos e estes moçambicanos? O que é que eles imaginam que hão-de vir cá ver? Será que eles não pensam que virão cá para... ? Será que não vai ser um espectáculo que vai acusar de racismo, ou o quê então ? E isto passa. E nós conversamos, sobretudo nós, os actores moçambicanos e negros, porque temos actores moçambicanos brancos neste espectáculo também. Então pensamos nisso. Tipo "Será que lhes interessa? Será que virão?" Então é sempre uma surpresa quando, de repente, que vemos o público lá e a reagir e a reagir bem, isso é muito bom.

Por seu lado, Miguel Nunes encarna o sargento português Germano de Melo, que se apaixona por Imani. Ele começa por contar como é que se envolveu neste projecto sob a batuta de Victor de Oliveira.

 

Miguel Nunes
Miguel Nunes, actor português, no MC93 de Bobigny a 27 de Março de 2024.
Miguel Nunes, actor português, no MC93 de Bobigny a 27 de Março de 2024. © rfi/Miguel Martins

O Victor estava a procurar um actor para desempenhar este papel e contactou-me para fazer uma audição. Pediu-me para preparar uma das cartas do Germano que ele envia ao superior dele, militar. E preparei esse pequeno texto e ele convidou-me para fazer o espectáculo. E eu fiquei muito contente e tenho estado cada vez mais entusiasmado com esta aprendizagem constante que é fazer um espectáculo durante muito tempo, com alguns intervalos, mas que esse tempo permite que o espectáculo se transforme e que o personagem também se desenvolva, cresça, se solidifique.

Imagino que seja gratificante. Sei que ensaiou em Moçambique que o espectáculo já passou por dois países distintos. Como é que isto está a tomar forma?

Sim, eu acho que, apesar de tudo, o mais gratificante é uma peça que fala sobre o nosso passado e que é nos corpos presentes dos actores e das actrizes que o vivem em palco que este texto se torna vivo e que estas relações se tornam vivas com a dureza que têm, com a violência que têm. Mas também com a possibilidade de transformar essa violência noutra coisa.

Foi muito especial voltar a fazer no Dia Mundial do Teatro [27 de Março]. Foi a minha estreia num palco fora de Portugal neste dia. E fazê-lo com estes actores, com estas palavras do Mia Couto e com esta encenação do Victor de Oliveira, num grupo muito grande e muito experiente, é assim muito gratificante.

O que é que foi mais desafiante de tudo?

O mais desafiante é sempre encontrar essa espécie de verdade, mesmo que...

Aqui não há bom, não há vilão !

 

Miguel Nunes, actor português, no MC93 de Bobigny a 27 de Março de 2024.
Miguel Nunes, actor português, no MC93 de Bobigny a 27 de Março de 2024. © rfi/Miguel Martins

 

Acho que os vilões, naturalmente... Quem iniciou esse percurso violento e agressivo fomos nós. Fomos nós, portugueses, nós, homens brancos, que despoletámos uma guerra num território que tentávamos dominar a partir dos gabinetes do Terreiro do Paço, como o próprio Santiago da Mata diz.

E também como outro personagem diz, numa fala muito, que eu acho muito pertinente "Nesta guerra, quanto mais armados estamos, menos preparados estamos de verdade". E às vezes, o que é mais difícil é a cada dia renovar esse encontro com o texto, com as palavras, com essa verdade, para que aconteçam essas tensões no palco, para que o espectáculo não desmorone, porque vive sobretudo dessas relações e dessas tensões entre os personagens.

Eu sei que o Victor [de Oliveira] gostaria também de a prazo de fazer com que o espectáculo chegasse a Moçambique. Acredita nisso? Gostaria também de lá ir agora já com o projecto terminado ?

Sem dúvida. Acho que não vamos descansar enquanto não entregarmos este espectáculo à sua origem, a Moçambique. Acho que devemos isso ao texto, à história, ao país, aos moçambicanos, aos actores moçambicanos e às actrizes. E por isso acho que vai ser assim uma recta final que não vamos poder descansar enquanto não concretizarmos esse desejo.

O espectáculo "As Areias do Imperador", está em cartaz em Bobigny, no MC93, perto de Paris, até este sábado, 30 de Março.

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