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Reportagem

Eiffel em Portugal: A Ponte Maria Pia no Porto e a Ponte Eiffel em Viana do Castelo

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Nesta sexta-feira, aqui em França, assinala-se um novo aniversário da inauguração da Torre Eiffel no dia 31 de Março 1889, um aniversário que em 2023 coincide com os cem anos da morte de Gustave Eiffel, o autor deste monumento que se tornou o símbolo de Paris e um dos mais conhecidos a nível mundial.

Ponte Maria Pia, no Porto, Março de 2023
Ponte Maria Pia, no Porto, Março de 2023 © Liliana Henriques / RFI
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Ao longo deste ano, por ocasião das comemorações oficiais em torno da figura de Eiffel, a RFI propõe uma programação para dar a conhecer o legado deste engenheiro e empresário de talento que para além da sua célebre torre, também construiu uma série de outros edifícios e estruturas, tais como a estação ferroviária de Budapeste, na Hungria, o observatório de Nice, no sul de França, a estrutura da estátua da Liberdade em Nova Iorque ou ainda a Ponte Dona Maria Pia sobre o rio Douro, no Porto.

Hoje, o nosso olhar foca-se precisamente sobre esta última infra-estrutura que foi determinante no percurso de Eiffel e também foi um marco importante na evolução da engenharia civil.

Depois de um concurso público, a Companhia Real dos Caminhos de Ferro adjudicou em 1875 a construção dessa ponte à companhia Eiffel fundada pouco mais de dez anos antes.

Construída no tempo record de dois anos, aquela que foi a primeira ponte de ferro do Porto foi inaugurada em 1877.

Esta construção que surge na época da revolução industrial, da arquitectura metálica e do desenvolvimento dos caminhos-de-ferro, veio responder à necessidade de estender o caminho-de-ferro de Lisboa até à cidade do Porto, quando outrora parava na outra margem do Douro, em Vila Nova de Gaia.

Para evocarmos o que esta ponte representou e falarmos também de outra infra-estrutura que veio a seguir, a Ponte Eiffel de Viana do Castelo, igualmente no norte de Portugal, conversamos com Domingos Tavares, arquitecto e professor na faculdade de arquitectura da Universidade do Porto, com Rui Faria Viana, director da biblioteca municipal de Viana do Castelo e autor do livro ‘A travessia do rio Lima em Viana do Castelo’ e conversamos também com o historiador José Lopes Cordeiro, co-autor do livro ‘Ponte Maria Pia’ publicado pela Editora da Ordem dos Engenheiros Região Norte.

Foi com este último que, no Porto onde estivemos recentemente, começamos por relembrar o contexto em que surgiu a Ponte Maria Pia.

"Portugal, costuma-se dizer que perdeu a revolução industrial. Embora ainda no final do século XVIII tivesse acompanhado o princípio desse processo de industrialização em termos europeus, depois por um conjunto de vicissitudes nomeadamente as invasões napoleónicas, depois o problema da guerra civil entre 1828 e 34 e, depois, as próprias desinteligências após 1834 entre os liberais, fizeram com que só a partir de meados do século XIX existissem as condições políticas para o país começar a pensar no desenvolvimento e em recuperar o atraso que até então tinha cavado com os restantes países europeus. Por isso, a nossa metalurgia estava atrasada, não tínhamos capacidade ainda para construir pontes. Por isso é que estas pontes ferroviárias, não apenas a Maria Pia, mas outras, foram encomendadas, através de concurso a empresas francesas, belgas, etc e foi isso que aconteceu com a Ponte Maria Pia", explica o historiador.

Uma ponte sem os pés na água

Ao abordar, por sua vez, o caderno de encargos para a construção da ponte, o arquitecto Domingos Tavares recorda que houve uma série de pré-requisitos sobre a localização e a altura da ponte, bem como a necessidade de não ter pilares assentes no leito do rio.

"Há aqui um problema inicial que nós não podemos considerar da ‘autoria’ dos autores da ponte que é a definição do nível do sítio do alinhamento da ponte. O caminho-de-ferro chega numa cota baixa à aproximação a Vila Nova de Gaia e começa a subir a encosta porque sabe que tem de fazer a travessia do Douro numa cota alta. É a única hipótese, porque se o caminho-de-ferro chegasse e se construísse numa cota baixa como é que subia depois da para a zona da estação de Campanhã onde estavam depois as ligações para o Douro e para o Minho ? Estavam todas na cota alta. Também há outra condição : a ponte não pode pousar na água. Isto é uma regra básica neste sítio por causa das correntes, mas principalmente na hora do temporal em que vêm massas de água brutais pelo rio abaixo e, como se dá aqui um estrangulamento, a água passa em grande velocidade e qualquer suporte de ponte instalado no leito do rio seria rapidamente destruído pela velocidade das águas do rio. Portanto, isto é outra condição. A extensão do arco, a altura… o que é que é preciso resolver ? O problema técnico de construir o arco, construir o tabuleiro e montar a máquina. Isto é o pressuposto do concurso. Todos concorrem e, de facto, a questão do preço é um elemento-chave porque a empresa concebeu uma solução que, do ponto de vista construtivo, domina bem e que, do ponto de vista da estratégia de material, pode operar a custos mais baixos do que os concorrentes que provavelmente não se aproximaram do problema. Mas do meu ponto de vista, uma das coisas que mais influenciou na escolha deste projecto, que durante muito tempo foi um verdadeiro mistério, é a questão estética. E esse aspecto aparece referido na memória descritiva quando num determinado momento, na descrição que se faz da ponte na documentação para o concurso, há uma referência que se pretende que a ‘ponte pouse suavemente nas margens como se fosse um pássaro’. Isto é uma imagem que é muito bonita e que entusiasma os nossos engenheiros que acham que isto é realmente uma imagem fantástica. Portanto, é um conjunto de factores que por um lado valorizam a solução do ponto de vista económico mas também a valorizam do ponto de vista estético. E o Porto fica a ganhar também um pouco com isso", considera o professor universitário.

Théophile Seyrig, o engenheiro que imaginou a ponte

Por ser uma das suas primeiras obras importantes, Gustave Eiffel supervisionou pessoalmente a construção da ponte Maria Pia, apoiando-se no engenheiro Emile Nouguier bem como em Théophile Seyrig, sócio maioritário da empresa de Eiffel e engenheiro que concebeu o projecto dessa infra-estrutura.

Pouco depois da inauguração da ponte Maria Pia, rompeu-se o contrato entre Gustave Eiffel e Theophile Seyrig que reclamava a paternidade da sua construção. Alguns anos mais tarde, em 1881, Seyrig chega à frente de Eiffel para a construção da ponte Dom Luís no Porto, muito parecida com a ponte Maria Pia.

"Há um grande mistério sobre estas questões porque deriva do facto de o Seyrig, que eu considero um génio e é o homem da Ponte Maria Pia sem dúvida nenhuma, ser quem projecta o arco que é o elemento estrutural mais importante e revolucionário, como também a seguir vai ganhar o concurso da Ponte Luís I, batendo o Eiffel e outras grandes casas metalúrgicas que existiam na Europa. Mas no arquivo que está em Paris no Quai d’Orsay , há algumas referências de facto a algumas desinteligências que Seyrig teve com Eiffel" refere o historiador José Lopes Cordeiro para quem "provavelmente, não lhe foram reconhecidos os louros do grande sucesso que foi a construção da Ponte Maria Pia porque o Eiffel, para além de engenheiro, era essencialmente um grande empresário com um grande sentido do negócio e da oportunidade e também de divulgação das realizações da sua empresa. Por isso, o Seyrig, neste contexto, aparecia num segundo plano, o que provavelmente não era justo e também porque o Seyrig, que era o accionista principal, era uma figura enigmática. Conhece-se pouco do Seyrig e conhece-se pouco da obra do Seyrig. Por isso, muitas vezes e ainda hoje, durante muito tempo, a Ponte Maria Pia é atribuída a Eiffel quando, na realidade, ela é construída pela casa Eiffel mas é projectada pelo então sócio Théophile Seyrig. Durante muito tempo, em Portugal, tudo o que era estrutura metálica era atribuída ao Eiffel, havia as coisas mais inacreditáveis, porque de facto o Eiffel é até hoje um nome conhecido mundialmente, enquanto que o Seyrig não."

Uma ponte que foi uma revolução

Com o seu arco de 160 metros, a sua estrutura elegante e aparentemente leve, a ponte Maria Pia foi uma revolução na engenharia, nomeadamente com a utilização de novos materiais, mas não só, como refere Domingos Tavares.

"Há um primeiro mecanismo que nós podemos interpretar como um avanço tecnológico em relação à Ponte Maria Pia e à Ponte Dom Luís que é a mudança da utilização do material em ferro para o material em aço. Isso significa que as indústrias ligadas à metalurgia no Porto estão capazes de responder à esta nova exigência porque, evidentemente, esta nova mudança é pensada pelos autores do projecto dentro da tal estratégia de como se trabalha o material. Um dos problemas grandes que a Ponte Maria Pia teve -e continua a ter- é o da conservação, por causa do problema das ligações. Ora, a ponte em aço é toda ela soldada e isto é um avanço tecnológico que resulta da experiência da ponte do caminho-de-ferro porque o caminho-de-ferro tem esta particularidade que é negativa para a construção destas pontes que é o ritmo da marcha do comboio por causa do motor da máquina que trabalha na base de um ritmo homogéneo. Isto provoca vibrações que são coincidentes e que se multiplicam. Por exemplo, depois da construção da outra ponte (Ponte Dom Luís), uma regra que foi fixada é que o pessoal do quartel que está junto à serra do Pilar (margem de Vila Nova de Gaia) instalado, quando sai do seu quartel e passa a ponte em direcção ao Porto, não pode passar em formação de marcha, porque a batida do pé de cada soldado numa extensão grande em simultâneo provoca um grau de vibração semelhante àquele que produzia a Ponte Maria Pia produzia quando passava o comboio. Por isso, a Ponte Maria Pia traz-nos um avanço muito interessante. Mostrou que era preciso construir de outra maneira", considera o arquitecto referindo, por outro lado, que a construção da ponte fez com que houvesse um desenvolvimento da metalurgia na cidade do Porto e abriu também o caminho para a construção pela empresa de Gustave Eiffel de uma série de outras pontes pela região norte de Portugal.

Eiffel em Viana do Castelo

Uma das principais pontes que Gustave Eiffel veio a construir logo a seguir à Ponte Maria Pia no Porto, foi aquela que ficou conhecida como a 'Ponte Eiffel' na cidade de Viana do Castelo, no extremo norte de Portugal.

Com dois tabuleiros, o inferior para a circulação ferroviária e o superior para a passagem rodoviária, esta ponte inaugurada em 1878, foi também uma inovação. Com os seus mais de 700 metros de comprimento, foi considerada das maiores daquela época, o seu modo de construção tendo sido igualmente inédito até então, como refere Rui Faria Viana, director da biblioteca municipal de Viana do Castelo e autor do livro ‘a travessia do rio Lima em Viana do Castelo’.

"A forma como esta ponte foi construída é designada de ponte empurrada. é uma tecnologia que começa a ser usada no final do século XIX e princípio do século XX sobretudo em pontes metálicas de traçado em plante recta. No fundo, é um método em que a construção é feita a partir de uma das margens e portanto a sua montagem realiza-se depois sobre uma plataforma que permite o facto de ser lançada para a margem seguinte. Esta é uma tecnologia que permite também que a obra seja muito mais segura, muito mais rápida e que o transporte dos materiais seja também muito mais rápido", explica o estudioso vincando que com o passar do tempo, esta ponte se tornou um 'ex-líbris' da cidade.

Por "fazer parte da paisagem" de Viana do Castelo, mas também porque esta ponte continua a ser utilizada, o director da biblioteca Municipal de Viana do Castelo refere que "há de facto uma atenção e houve sempre uma atenção muito mais cuidada relativamente àquelas estruturas em que houve sempre necessidade da sua utilização como foi o caso de Viana do Castelo. Agora, é evidente que noutras regiões, foram substituídas e a sua utilização deixou de ser tão efectiva e, portanto, aí é natural que muitas delas acabassem por ser abandonadas ou até substituídas".

A conservação desse legado

Quase 145 anos depois de ter sido inaugurada, a Ponte Eiffel de Viana do Castelo continua em funcionamento. O mesmo não acontece com a Ponte Maria Pia que apesar de ter sido classificada monumento nacional em 1982 e apesar de neste momento ser candidata juntamente com outras pontes a património da Humanidade, tem um destino incerto depois de ter encerrado em 1991, conforme diz o historiador José Lopes Cordeiro.

"Apesar de toda esta importância que é reconhecida nacional e internacionalmente, todo o mundo conhece a Ponte Maria Pia e quando digo ‘todo o mundo’ é mesmo ‘todo o mundo’ porque abre-se um livro publicado em qualquer parte sobre a arquitectura do ferro e o exemplo que lá vem é a Ponte Maria Pia, muitas vezes atribuída ao Eiffel, toda a gente reconhece a importância que prestou para o desenvolvimento da engenharia civil ao nível mundial… e apesar de tudo isso, a ponte é desactivada e fica abandonada até hoje. Não há e nunca houve um esforço de entendimento entre o proprietário que actualmente é a ‘Infra-estruturas de Portugal’ e as duas autarquias (Porto e Vila Nova de Gaia) para encontrar uma solução para preservar este monumento que tem uma importância enorme, toda a gente o reconhece, inclusivamente como atracção turística. é lamentável que a ponte esteja no estado em que está. Já houve vários projectos, inclusivamente, hoje em dia, a Ponte (Maria Pia), juntamente com a Ponte Dom Luís I, está englobada numa candidatura das seis pontes em arco metálicas do século XIX -só há seis pontes no mundo e o Porto tem duas- para serem classificadas pela Unesco como património da Humanidade. Neste momento não sei dizer em que estado está este projecto e era bom, de facto, que as duas pontes integrassem (esta candidatura) porque também digo uma coisa, se o Porto retirar essas pontes da candidatura, ela não vai avante, o que é um ónus muito forte para a cidade", receia o historiador.

O avultado custo da sua manutenção e a falta de iniciativas para lhe dar uma nova vida colocam o futuro da ponte Maria Pia numa incógnita, segundo o arquitecto Domingos Tavares, para quem é impossível conceber a hipótese de o Porto prescindir de uma ponte, seja ela qual for, dada a necessidade constante de mais ligações com a outra margem do rio Douro.

"Em relação ao Porto, o problema das pontes é um problema complicado, porque o Porto começou a sua história de pontes com uma tragédia. A primeira ponte que o Porto teve, não se sabe desde quando, mas de uma forma objectiva foi a ponte das Barcas, na zona da Ribeira. A ponte das Barcas foi construída em 1806 e em 1809, na segunda invasão francesa, houve um desastre em que a ponte afundou e morreram milhares de pessoas na ponte. Portanto, o que parecia ser o princípio da ligação norte-sul, Porto-Gaia, que era extraordinariamente importante por causa da organização da vida portuária, com armazéns de vinho de um lado, estaleiros de conservação e de manutenção de barcos do lado de Gaia, descarga e movimento comercial no Porto, a passagem de um lado para o outro era constante. As pessoas só podiam ir de barquinho porque não havia pontes. Portanto, o problema das pontes, é um problema de ligação poderosíssimo, importantíssimo no Porto enquanto relação com Gaia. Situação que hoje evoluiu de forma positiva. Hoje já são cinco, seis, sete pontes, já não sei quantas são. O Porto tem muitas pontes, mas vai continuar a ter. Precisa de mais pontes. Por isso, parece-me um pouco admitir que uma se pode deitar fora, seja ela qual for e particularmente a primeira e a mais importante de todas", conclui o estudioso.

Mais imagens:

Agradecimentos:

Ao historiador José Lopes Cordeiro, co-autor do livro ‘Ponte Maria Pia’, a Rui Faria Viana, director da Biblioteca Municipal de Viana do Castelo e autor do livro ‘A travessia do rio Lima em Viana do Castelo', assim como ao arquitecto e professor universitário Domingos Tavares.

Um agradecimento especial também ao fotógrafo Paulo Ricca pelo seu precioso apoio, bem como a Nelson Soares, do departamento de comunicação da Associação Comercial do Porto que nos abriu as portas do magnífico palácio da Bolsa daquela cidade.

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