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"Memórias em Tempo de Amnésia", o mais recente livro de Álvaro Vasconcelos - Parte 2

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Álvaro Vasconcelos, antigo director do Instituto de Estudos de Segurança da União Europeia, cujas análises sobre Relações Internacionais são frequentemente ouvidas nas antenas da RFI acaba neste mês de Dezembro de publicar o seu mais recente livro, "Memórias em Tempo de Amnésia", um relato na primeira pessoa sobre o seu percurso de vida que nos primeiros anos passou por Moçambique e pela África do Sul.

Detalhe da capa do novo livro que Álvaro Vasconcelos, antigo director do Instituto de Estudos de Segurança da União Europeia, acaba de publicar: "Memórias em Tempo de Amnésia".
Detalhe da capa do novo livro que Álvaro Vasconcelos, antigo director do Instituto de Estudos de Segurança da União Europeia, acaba de publicar: "Memórias em Tempo de Amnésia". © Edições Afrontamento
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Dividido em dois volumes cujo primeiro é intitulado "Uma campa em África", este livro conta a vivência do autor na cidade da Beira onde chegou aos 9 anos em 1953 e onde residiu durante 12 anos, antes de ir estudar em Joanesburgo durante os anos 60. A violência da época colonial, os debates políticos e culturais que então alimentavam a sua geração estão no centro desta obra, para além da sua experiência pessoal, o autor fala muito dos livros que o marcaram.

Na entrevista concedida por Álvaro Vasconcelos que dividimos em 2 episódios e cujo primeiro ouviram ontem, o estudioso aborda agora a presença muito forte da literatura na sua vida, nomeadamente na Beira, onde relata ter sentido menos a censura do que em Portugal, o que lhe permitiu conhecer os principais escritores europeus para, em seguida mergulhar na contra-cultura americana que conheceu quando foi estudar a Joanesburgo nos anos 60.

RFI: "Memórias em Tempo de Amnésia" fala dos seus primeiros anos, em Portugal, em Moçambique e na África do Sul, mas fala também muito dos livros que o acompanharam naquela época.

Álvaro Vasconcelos: É verdade que a literatura foi algo extremamente importante na minha vida. Foi pela literatura, sobretudo a literatura Europeia -e não só, também a literatura moçambicana- que eu fui descobrindo aquilo que eu chamei Humanismo radical, ou seja, o dever de se ter posição de se assumir um compromisso com a sociedade. O livro que mais me marcou na minha juventude foi a "Guerra e Paz" de Tolstoi. No fundo, comecei a identificar-me com o Pedro da "Guerra e Paz". Lia este livro todos os anos e o Pedro, para mim, era um herói, mas um herói que lutava pelos ideais da Revolução Francesa. É verdade que pensou que Napoleão representava esses ideais e depois compreendeu que as guerras napoleónicas eram guerras imperiais que nada tinham a ver com os ideais da Revolução Francesa. Mas a descoberta dos ideais da Revolução Francesa através de Victor Hugo, de Tolstoi em particular, tiveram uma grande influência para mim. Depois, comecei a ler a literatura que o meu pai lia, da segunda guerra mundial, de Erich Maria Remarque, Stefan Zweig, escritores alemães, austríacos, que falavam das circunstâncias da subida do Fascismo e do Nazismo. Isso evidentemente foi muito importante na minha formação. Depois, toda a literatura francesa ligada ao movimento existencialista. Nós na Beira, começamos a pensar que éramos existencialistas porque líamos Sartre, Camus, Roger Vailland, Simone de Beauvoir, mas fundamentalmente Sartre. Devo dizer que foi fundamentalmente Sartre que teve um grande impacto em nós. Ao dizer que "todo o homem nasce livre e é capaz de fazer a sua escolha, tem a liberdade de escolher", Sartre teve em nós uma grande influência. Passávamos horas nos cafés, no "Capri" (na Beira), a discutir sobre Roger Vailland, "A cabra cega", sobre o Sartre, "A náusea", "as mãos sujas", o Camus evidentemente, para nós era muito importante, toda a problemática da angústia. Tudo isto fez parte da nossa formação que era acompanhada -para grande sorte que tínhamos na Beira- de ter um cineclube que nos dava a conhecer o grande cinema europeu do pós-guerra, o neo-realismo italiano, a "Nouvelle Vague" francesa, o cinema soviético e evidentemente também os escritores americanos. Estou a lembrar-me, por exemplo, da importância de Steinbeck, das "Vinhas da ira". Ao nos dar uma perspectiva das questões sociais que estavam menos presentes nesta literatura que acabo de referir, que era uma literatura mais sobre a liberdade e sobre o perigo do nazismo, do fascismo, do racismo, Steinbeck conta-nos uma história da crise dos anos 30, da extraordinária desigualdade social, fala daqueles que não tinham voz. Tenho-me lembrado disso, quando Annie Ernaux recebeu o Prémio Nobel de Literatura que, no fundo, há aqui -e ela própria o diz- uma relação entre a sua literatura e esta literatura americana que eu lia quando estava na Beira.

RFI: Na África do Sul, contacta mais com a contracultura americana que influencia muito o meio universitário de Joanesburgo.

Álvaro Vasconcelos: Sem dúvida. Quando eu cheguei a África do Sul, era em 1966 e vivia-se o auge da contracultura americana, o movimento Hippie nos Estados Unidos, Bob Dylan, Joan Baez, da marcha sobre o Capitólio, os movimentos contra a guerra do Vietname e uma reflexão sobre os jovens, a juventude que dizia "não" e o pôr em causa a sociedade de consumo, Andy Warhol, o Pop Art, tudo isto estava muito presente na África do Sul. Eu mergulhei nessa contracultura americana e encontrei nela de facto uma resposta para muitas das minhas questões. No fundo, fui aprendendo a olhar o mundo num primeiro momento através da contracultura americana, das canções do Bob Dylan, da poesia da contracultura americana e tudo isto era absolutamente extraordinário no ambiente em que vivíamos na África do Sul. Por exemplo, a poesia do Allen Ginsberg -eu refiro isso no livro- "O peso do mundo é o amor, o peso que carregamos é o amor", jovens, como somos todos um pouco românticos, que nos sentíamos sós num mundo em que não revíamos, o mundo da guerra do Vietname, e as canções do Bob Dylan, as suas canções contra a bomba atómica, tudo isto batia completamente certo com aquilo que nós víamos. Depois, na África do Sul, líamos "Os condenados da Terra" de Frantz Fanon e eu que estava mergulhado naquele movimento da contracultura americana e no movimento Hippie pacifista, ao ler este livro e ver a razão pela qual as pessoas se revoltavam, tinham direito de se revoltar e tinham inclusivamente o direito de resistirem de armas na mão se fosse necessário às tropas coloniais, evidentemente ganhei uma consciência diferente. Fui-me aproximando daquilo que é o tema do segundo volume deste livro, que são os meus anos de exílio na Bélgica e em França em que me fui aproximando do marxismo, nessa mistura entre o marxismo e a contracultura americana que foram as ideias libertárias dos anos 70 na Europa.

RFI: No epílogo deste livro, conta uma visita virtual que fez recentemente na Beira. Como foi este regresso virtual à cidade da Beira? Nunca tinha lá regressado?

Álvaro Vasconcelos: Eu não tinha regressado à Beira. De certa forma, não me sentia bem. Achava que a Beira era uma cidade-fantasma. Já ninguém do meu tempo vivia lá. Só me fazia lembrar as coisas mais cruéis que vivi ou às quais assisti na minha juventude. Portanto, regressar à Beira, era como regressar a uma cidade-fantasma. Metia-me medo, provocava-me angústia. Portanto não fui à Beira quando fui a Moçambique depois da guerra civil (em 1992). Organizei uma série de seminários em Maputo sobre as transições democráticas que aliás também organizei na África do Sul, no fim do apartheid. Não fui à Beira, mas agora tinha pensado que como agora tinha finalmente decidido escrever sobre o período que tinha vivido na Beira, que devia ir lá. Mas como veio o covid, não pude ir à Beira. Então, imaginei uma visita guiada pelo Marcelino Francisco que é um famoso youtuber da Beira, uma viagem virtual em que eu visitasse a cidade. De facto, é extraordinário. Com o youtuber Marcelino Francisco, fui de facto à cidade da Beira. Evidentemente que não tinha os cheiros, não havia o calor que sentia quando vivia na Beira, tinha que imaginar, mas eu falava com as pessoas, entrava nas livrarias, entrava nos cafés, entrava nos clubes que tinha frequentado. Portanto, foi uma experiência muito interessante.

RFI: Pensa que um dia vai regressar "em carne e osso" à cidade da Beira?

Álvaro Vasconcelos: Penso regressar à Beira. Existe lá uma livraria que é a Fundza, que é a única livraria da cidade e que é a propriedade de um escritor, livreiro e editor. ele quer organizar lá uma apresentação do livro naquele espaço e eu estou a imaginar ir lá, voltar à Beira depois destes anos todos. Da Beira restam só da nossa passagem como de muitas famílias portuguesas, o túmulo da minha avó que foi morrer à Beira. Acho que isto também é uma característica do colonialismo. Deixou para trás túmulos. Túmulos de colonos, túmulos de soldados que morreram na guerra colonial e túmulos de africanos que foram mortos na guerra colonial. A herança do colonialismo, em grande parte, são túmulos. Por isso é que eu chamei o primeiro volume do meu livro "Uma campa em África", porque é a campa da minha avó, Amélia Clara Vasconcelos, que foi morrer à Beira porque já estava muito doente e foi ter connosco, morreu lá.

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