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"Memórias em Tempo de Amnésia", o mais recente livro de Álvaro Vasconcelos - Parte 1

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Álvaro Vasconcelos, antigo director do Instituto de Estudos de Segurança da União Europeia, cujas análises sobre Relações Internacionais são frequentemente ouvidas nas antenas da RFI acaba neste mês de Dezembro de publicar o seu mais recente livro, "Memórias em Tempo de Amnésia", um relato na primeira pessoa sobre o seu percurso de vida que nos primeiros anos passou por Moçambique e pela África do Sul.

Álvaro Vasconcelos, antigo director do Instituto de Estudos de Segurança da União Europeia, acaba neste mês de Dezembro de publicar o seu mais recente livro, "Memórias em Tempo de Amnésia".
Álvaro Vasconcelos, antigo director do Instituto de Estudos de Segurança da União Europeia, acaba neste mês de Dezembro de publicar o seu mais recente livro, "Memórias em Tempo de Amnésia". © Edições Afrontamento
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Dividido em dois volumes cujo primeiro é intitulado "Uma campa em África", este livro conta a vivência do autor na cidade da Beira onde chegou aos 9 anos em 1953 e onde residiu durante 12 anos, antes de ir estudar em Joanesburgo durante os anos 60.

A violência da época colonial, os debates políticos e culturais que então alimentavam a sua geração estão no centro desta obra cujo objectivo é desconstruir narrativas como, por exemplo, o lusotropicalismo que continua ainda hoje a sustentar discursos políticos de negação do que foi o colonialismo português.

Na entrevista concedida por Álvaro Vasconcelos que dividimos em 2 episódios, o estudioso começa por evocar o que o animou na escrita deste livro.

RFI: O que o levou a escrever este livro?

Álvaro Vasconcelos: Eu escrevi com a seguinte preocupação: vivemos uns tempos -sobre os quais aliás temos conversado- em que há a tentação de "alindar" o passado, esquecer todas as distopias, todos os crimes, toda a violência, toda a desigualdade do passado. Isto é uma realidade em Portugal em relação às colónias, em relação ao que foi o colonialismo, em relação ao que foi a ditadura salazarista. Quando eu vi a extrema-direita crescer um pouco pelo mundo inteiro, com essa narrativa que é uma "retrotopia", mas que é uma narrativa que no fundo sempre existiu em Portugal, de negar os crimes do colonialismo, eu pensei "eu que vivi essa geração, eu que vivi em África, eu que vi os crimes que foram cometidos, tenho um dever de memória". Eu chamo este livro "Memórias em Tempo de Amnésia", referindo-me a esta tentativa de esquecer o passado e de o embelezar, de novamente fazer do colonialismo português uma "obra civilizatória".

RFI: No começo deste livro, fala de um episódio ao qual assistiu em Moçambique e que foi um pouco o mote para esta obra. Poderia contar-nos?

Álvaro Vasconcelos: Foi um dia com muito sol. Dias de sol é o que havia mais na cidade da Beira onde eu vivia. Vinha do liceu, a caminho de casa e vejo um jovem negro rodeado por um grupo de homens brancos que o pontapeavam e chamavam-lhe todos os palavrões que sabiam acompanhados pela palavra "preto". Eu fiquei extremamente perturbado, senti-me impotente e de certa forma cobarde por não poder ir socorrer este jovem negro cujo único "crime" era ter respondido a um insulto. Cheguei a casa perturbadíssimo e disse ao meu pai, "ó pai, aconteceu isto, eu estava nervosíssimo". O meu pai diz "estás assim tão aflito, tão nervoso, porque tiveste um sentimento de impotência". Eu comecei a pensar sobre isso. Ou seja impotência, porquê? Porque aquele indivíduo que estava a ser brutalmente agredido e que tinha mais ou menos a minha idade, estava a ser agredido porque não tinha direitos. E quem não tem direitos, é vítima de todas as violências.

RFI: Isto aconteceu numa altura em que estava a viver em Moçambique. Estamos a falar dos anos 50. Como recorda essa época?

Álvaro Vasconcelos: Recordo sem nostalgia, sem pensar que foram os melhores anos da minha vida. Recordo como tendo vivido numa cidade que eram duas: uma cidade 'branca' onde eu vivia, havia acesso à cultura, havia acesso à vida fácil, e uma cidade 'negra' em que os negros viviam num sistema de trabalho forçado que se prolongou até praticamente à minha saída da Beira. Podemos dizer que o trabalho forçado era uma herança directa da escravatura. Aliás, o Bispo da Beira de então, Dom Sebastião Soares Resende, quando chegou à Beira nos anos 40 ele disse "na Beira há escravatura". Nos anos 50, voltou a dizer "na Beira há escravatura e muito dura". Ou seja, aquela qualidade de vida que os brancos tinham na sua "bolha" , tinha de ser sustentada nas costas de pessoas que eram obrigadas a trabalhar por um salário absolutamente miserável, que comiam farinha e peixe seco -quando muito- e que faziam iguarias para as pessoas das casas. Além disso, no exterior da Beira, fora da cidade, na indústria açucareira ou algodoeira, tudo aquilo era baseado em trabalho escravo, trabalho forçado. Havia aquilo que se chamava os "recrutadores" que eram homens que tinham como objectivo -com a ajuda da administração portuguesa- de "recrutar" pessoas para trabalhar. Muitas vezes eram apanhadas à força e levadas para os sítios onde iriam ser obrigados a trabalhar. Portanto era trabalho forçado, quase trabalho escravo.

RFI: Como é que se vive essa ambivalência de ser equiparado ao grupo dos opressores e ao mesmo tempo sentir essa opressão?

Álvaro Vasconcelos: É complexo. Acho que em parte vive-se porque se vive numa "bolha". Nós, os jovens brancos da Beira, que íamos descobrindo os valores da liberdade, que líamos a grande literatura da pós-segunda guerra mundial, que nos apaixonamos pelo existencialismo, Sartre, Camus, Simone de Beauvoir, despertávamos para o Humanismo. Víamos o grande cinema que se podia ver na Beira -porque na Beira havia mais liberdade de acesso à cultura do que no resto do império português- víamos o "Couraçado Potemkin" do Eisenstein, víamos o neo-realismo italiano, víamos muitos filmes que eram proibidos em Portugal e nós, nessa "bolha", íamos construindo uma cultura Humanista, mas de certa forma, não tirávamos todas as consequências políticas e humanas daquela cultura. O nosso objectivo passou a ser acabar com a ditadura em Portugal. E ao acabar com a ditadura em Portugal, pensávamos que se acabaria com o colonialismo. Portanto, é uma situação de uma grande ambiguidade que evidentemente cria angústia porque vivíamos uma situação de racismo extremo, de 'apartheid'. Depois vivi na África do Sul. O 'apartheid' na Beira não era fundamentalmente diferente daquele que se vivia na África do Sul porque, num banco de jardim em que nos sentássemos na Beira, nenhum negro se sentaria ao nosso lado. Na África do Sul, também não se sentava porque estava escrito no banco que ele não se podia sentar. Essa era a diferença fundamental. Penso hoje que se vivia com grande angústia nesses tempos em que éramos, de facto, agentes do colonialismo. Beneficiávamos dele. Todo o colono de certa forma é agente do colonialismo porque repercute a vontade do colonizador pelo menos no seu meio social. Mas nós vivíamos numa "bolha". Era isso que fazia com que pudéssemos sobreviver naquelas circunstâncias.

RFI: Estava a falar da leitura que fez da sua vivência em Moçambique quando passou a viver na África do Sul. A certa altura do livro, diz que o facto de ser confrontado ao racismo totalmente assumido do 'apartheid' na África do Sul fez com que visse mais claramente o que se passava em Moçambique naquela época.

Álvaro Vasconcelos: Sem dúvida, porque na África do Sul, o 'apartheid' era assumido como lei, era uma barbaridade absoluta como era em Moçambique, mas ali completamente assumido como lei, sem qualquer tentativa de esconder que se vivia num regime racista, herdeiro no fundo das teorias racistas que levaram ao poder Hitler na Alemanha e que dominaram a Europa no anos 30, que levaram à segunda guerra mundial e ao Holocausto... e portanto, na África do Sul, estas teorias eram aplicadas e eram defendidas. Evidentemente, com o acesso enorme que tínhamos na universidade a toda a informação, a toda a literatura, às grandes revistas internacionais, o ambiente de discussão sobre o 'apartheid' e sobre o racismo era muitíssimo mais aberto, mais profundo do que era em Moçambique, porque em Moçambique estas questões falavam-se, mas nós falávamos mais em Moçambique do que era a ditadura portuguesa, do que era a desigualdade e das questões mais sociais. Não tínhamos uma discussão profunda sobre o racismo. De certa forma, vivíamos naquele ambiente e assumir que vivíamos num ambiente de segregação racial brutal era pôr em causa a nós próprios, às nossas famílias, aos nossos pais. Isto era extremamente doloroso e difícil, apesar de nós em Moçambique, eu e os meus amigos, adoramos a poesia da Noémia de Sousa que dizia "deixem passar o meu povo", líamos a poesia de José Craveirinha que falava "eu sou carvão, carvão da usina do branco". Fizemos um filme de que falo no livro sobre os negros que eram obrigados a ir à esquadra levar palmatoadas por partirem um prato em casa. Essa violência extrema a que nós assistimos em Moçambique, nós condenávamos, mas não discutíamos a questão do racismo e a questão do racismo era central na África do Sul. Era a questão que era discutida por todo o lado, na universidade evidentemente. Era o que era contestado, era a lei do 'apartheid', não era só a violência, a desigualdade, tanto mais que na África do Sul, os brancos tinham determinados direitos e determinadas liberdades democráticas e os negros não tinham esses direitos. Portanto, essa discussão do racismo na África do Sul, de facto, tornou muito mais claro o racismo em Moçambique.

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