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Adiamento das eleições na Líbia: "tem que haver uma redefinição do que se pretende"

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A Comissão do Parlamento líbio encarregada das eleições presidenciais anunciou hoje o adiamento deste escrutínio que estava previsto para esta sexta-feira 24 de Dezembro, havendo a proposta de eventualmente organizar o pleito em finais de Janeiro de 2022.

Votação em Benghazi, no leste da Líbia no dia 25 de Junho de 2014.
Votação em Benghazi, no leste da Líbia no dia 25 de Junho de 2014. REUTERS/Esam Omran Al-Fetori
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As presidenciais que deviam marcar um regresso progressivo à normalidade depois dos mais de dez anos de caos subsequentes à queda e morte do líder líbio Muammar Kadhafi em 2011, acabaram por ser canceladas devido a tensões entre os diversos candidatos e à ausência de condições de segurança.

Para além de se ter contabilizado um número importante de candidatos -um total de 60- entraram na corrida o líder rebelde Khalifa Haftar que controla o leste do país e é acusado de crimes de guerra, o filho do coronel Kadhafi, Saïf al-Islam, que por sua vez é suspeito de crimes contra a Humanidade, assim como Abdelhamid Dbeibah, Primeiro-ministro interino que apesar de se ter comprometido a não brigar as presidenciais, acabou por igualmente se lançar. Uma situação que coloca interrogações sobre os critérios que terão prevalecido na validação das candidaturas.

Outro possível obstáculo à realização destas eleições terá sido a presença no terreno de tropas estrangeiras, nomeadamente as forças turcas que apoiam o campo das instituições reconhecidas da Líbia, ou do outro lado, os mercenários do grupo 'Wagner' próximo de Vladimir Putin que apoiam o marechal Haftar. Para os participantes da cimeira internacional organizada em Paris sobre a situação na Líbia no passado mês de Novembro, não existem dúvidas de que enquanto combatentes estrangeiros estiverem no país, não existirão condições para haver paz.

Dividido desde 2014 entre o oeste controlado por uma autoridade reconhecida pela comunidade internacional e o leste controlado pelos rebeldes chefiados por Khalifa Haftar, a economia deste país que assenta essencialmente na exploração dos hidrocarbonetos tem sofrido as consequências da guerra, da instabilidade política e da pandemia.

Ao analisar estes dados, João Henriques, investigador da Universidade Autónoma de Lisboa e vice-presidente do Observatório do Mundo Islâmico começa por referir-se ao contexto em que foram canceladas as eleições.

"O que esteve na base desta decisão é que estavam previstas alterações legislativas que não tinham sido devidamente clarificadas. Este processo acabou por se tornar impossível porque não havia condições. Diria que estávamos numa fase algo nebulosa relativamente àquilo que poderia significar em termos de alterações legislativas. Depois o processo tornou-se pouco claro quando numa dada altura, um dos filhos do Coronel Kadhafi, Saïf al-Islam, se posicionou como candidato e depois de ter sido rejeitada a sua candidatura, inesperadamente ele foi reintegrado por ordem do tribunal. Isso criou um fortíssimo mal-estar", considera o estudioso.

Referindo-se às longas discussões ocorridas no intuito de viabilizar o processo eleitoral, João Henriques recorda que "todos os candidatos foram escrutinados por parte da comunidade internacional e isso tornou a gestão difícil para que depois houvesse uma lista final. Ela foi conseguida mas, mesmo assim, isto tem a ver também com alguma confrontação política entre muitos dos candidatos. Inicialmente não houve critérios mas depois, a partir desse escrutínio da comunidade internacional, o número (de candidatos) foi drasticamente reduzido. Mas ainda assim subsistem dúvidas, porque há figuras que se posicionaram para estas presidenciais que tinham processos relacionados com actos criminosos que foram sendo excluídos, mas ainda é uma lista muito extensa".

Relativamente à presença de tropas estrangeiras no país, o universitário lembra que "as Nações Unidas já apelaram para que essas forças fossem afastadas do território. Houve vários apelos. Estamos a falar das forças militares turcas e por outro lado também de forças que estão claramente a mando do Kremlin, como é o caso do grupo Wagner. Este grupo não actua só na Líbia mas também mais a sul no continente africano e vão estar durante mais algum tempo. O Kremlin, no caso destas forças mercenárias, sempre rejeitou que estejam a soldo da administração russa. Quanto ao presidente turco, ele disse que sim, vai tirar as suas tropas mas só quando estiverem reunidas as condições de segurança para a região. Ele aparece nesta altura como uma espécie de 'Paladim da Paz'. Mas a comunidade internacional vai ter que forçar uma vez mais a retirada destas forças porque, enquanto elas se mantiverem no terreno, não vai haver paz".

Sobre o interesse das potencias externas em ter um acesso às importantes reservas de hidrocarbonetos da Líbia, o estudioso considera que "naturalmente é a primeira questão, embora alguns analistas entendam que não é assim, mas pela leitura que é feita e pelo potencial energético que a Líbia tem, é a principal razão", João Henriques referindo, por outro lado, que os países intervenientes no terreno têm igualmente motivos securitários.

Questionado sobre o interesse da França em envolver-se nesta crise, o especialista do norte de África considera que Paris "ambiciona regressar ao grande Médio Oriente" e que "a razão é também geoeconómica" sendo que, na sua óptica, a posição da França é considerada ambígua porque existem "divisões dentro do parlamento francês mas também porque se aproxima rapidamente um processo eleitoral e as partes estão a posicionar-se. O Presidente Emmanuel Macron ainda não chegou dentro do seu próprio governo a um consenso."

Quanto ao futuro a médio prazo da Líbia depois do adiamento das eleições, o investigador considera que "claramente, tem que haver uma redefinição do que se pretende em termos legislativos para o futuro da Líbia. Tem que haver uma espécie de caderno de encargos, porque depois terá que haver diálogo entre as partes, terá que haver um patrocínio, terá que haver um conjunto de países que se posicionem para juntar as partes e entrar num processo longo de conversações, para que se aproxime tanto quanto possível de um consenso aceitável e que reine uma atmosfera pacífica para que sejam de novo agendadas as eleições".

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