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Artes

Lina e Raül Refree levaram a Paris outra forma de "sentir" o fado

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Lina Rodrigues e Raül Refree desconstruíram os mitos em torno da forma de tocar e "sentir" o fado. O músico espanhol substituiu as guitarras pelos teclados e um sopro de "liberdade" solene tomou a fadista portuguesa. A dupla despojou-se do peso da tradição e levou a Paris uma nova forma de “sentir” um concerto de fado.

Lina Rodrigues e Raül Refree. Centquatre, Paris, 28 de Maio de 2022.
Lina Rodrigues e Raül Refree. Centquatre, Paris, 28 de Maio de 2022. © Carina Branco/RFI
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17:50

Entrevista Lina e Raül Refree no Centquatre em Paris

Um fado reinventado e liberto de códigos. As guitarras são substituídas pelo piano, sintetizadores vintage e outros instrumentos de teclas e a voz irradia de um universo novo mas familiar, minimal e imersivo.

Lina_Raül Refree é um projeto que em 2018 juntou a fadista portuguesa Lina Rodrigues ao produtor e músico espanhol Raül Refree. Ela, fadista residente no Clube de Fado, em Lisboa; ele, um dos grandes renovadores do flamenco pelo trabalho desenvolvido com Rosalía, mas também com Rocío Márquez ou Niño de Elche. Lina e Raül revisitaram temas quase sacralizados de Amália Rodrigues e o "Medo", a "Gaivota" ou o "Barco Negro" ganharam uma dimensão radicalmente contemporânea.

Falámos com eles em 2020, nos estúdios da RFI, e desde então, por exemplo, o seu disco foi eleito o melhor de 2020 por produtores de estações de rádio da Europa, através do World Music Charts Europe e em 2021 recebeu o Prémio Carlos do Carmo de Melhor Álbum.

A dupla passou novamente por Paris, a 28 de Maio, para actuar no Centro Cultural Centquatre, numa noite dedicada a propostas contemporâneas do fado, com destaque para Fado Bicha, no âmbito da Temporada Cruzada França-Portugal. Será que o fado está cansado da tradição? De onde vem esse sopro de liberdade? As respostas com Lina e Raul Refree.

RFI: O que se passa com o fado? Há um novo fado? Novos fados?

Lina: Eu acho que qualquer música precisa de inovação, de novos sons e sensações, mas também é preciso manter a tradição e acho que todas elas se complementam.

Raül Refree: Eu não acho que haja uma maneira melhor ou pior. Para mim, a melhor maneira é o que se sente quando se toca. Até podia escolher outros acordes se me pusesse agora a tocar com a Lina ou com outra pessoa. A maneira é o que sentes, não há nada de estipulado, nenhum som. Eu não faço as coisas para romper ou não romper. Faço as coisas como sinto. Quando fizemos este disco não pensávamos romper ou evoluir até porque a evolução é subjectiva, para uns é evolução, para outros é o contrário. Há que fazer as coisas porque o sentes e se sentes podes comunicar.

Lina e Raül, o disco de estreia foi em 2020. Lembro-me de passar numa loja de discos antiga em Paris e ver o vosso vinil na vitrina. Quando é que vamos ter novo disco vosso nas vitrinas?

Lina: Bom, a verdade é que eu tenho muita vontade de continuar esta viagem com o Raül, não temos ainda uma data prevista para fazer um novo disco, mas, pela minha parte, eu gostaria muito que isso acontecesse, mas tudo a seu tempo e vamos também trabalhando noutras coisas. Penso que isso será uma possibilidade no futuro.

E o Raül também quer continuar na viagem com a Lina?

Raül Refree: Subscrevo a resposta da Lina. Tivemos muitos concertos, estivemos na estrada muito tempo…

Mesmo com o confinamento e a pandemia?

Raül Refree: Tivemos muita sorte porque os locais onde tocámos, como teatros com gente sentada, não fecharam portas durante a pandemia e pudemos tocar por toda a Europa. Foi uma sorte porque muitos amigos artistas tiveram de parar meses e nós não parámos de tocar até hoje, aqui no Centquatre.

O projecto que vos volta a trazer a Paris é um trabalho de uma grande intimidade, cumplicidade, que bebe do Fado mas vai muito além. Como descrevem essa paisagem sonora que vocês criaram em torno do fado?

Lina: Eu poderia descrever com um dos concertos em Paris, aquele que mais me marcou, que foi na Fundação Cartier, em que as pessoas estavam deitadas no chão, algumas, a ouvir o nosso concerto, e creio que passa por essa sensibilidade e essa liberdade de a pessoa poder sentir aquilo que está preso dentro dela mesma e ser um momento de reflexão. Nós sentimos muitas vezes durante o concerto que as pessoas passam por um período de reflexão, inspiram e muitas das vezes acabam por ir para casa e passados dois ou três dias continuam a pensar e a reflectir. Eu acho que é mais a mensagem que nós passamos e não a forma como o fazemos. Claro que também é importante a forma.

Os concertos têm um conceito, são muito cuidados ao nível cenográfico, são experiências imersivas e diferentes dos outros concertos… Quase não há pausas, por exemplo. Porquê?

Lina: Nós quisemos dar um conceito diferente. No fundo, acho que queremos fazer não diferente, mas aquilo que nós sentimos que podemos fazer em palco, e nem interessa se é em palco ou não, o que interessa é que se nós sentimos aquilo que estamos a fazer eu acho que é aquilo que o torna verdadeiro e isso é o mais importante.

O que salta ao ouvido, além da voz e do respeito pelos silêncios e tempos, é também a omnipresença do piano e dos teclados. Mas, ao contrário do habitual no fado, não há guitarras, a não ser na última música.

Lina: Do disco.

Do disco. É a canção Amália Voz de Todos Nós, do António Variações. Porquê estas escolhas?

Raül Refree: As decisões não as tomo à partida, elas acontecem. É uma questão do que sentes a cada instante. A guitarra é um instrumento que toquei em muitos discos a dois, agora é a primeira vez que faço um disco a dois em que toco piano e teclados, ainda que seja o meu primeiro instrumento desde menino. Quando começámos a tocar juntos, a Lina e eu tivemos a sensação que com a guitarra não funcionava da mesma maneira que com o piano. Foi uma decisão tomada a partir do que sentimos e não uma decisão a priori. Não gosto de decidir a priori, tem de ser no campo de batalha.

A Lina fez questão de sublinhar “no disco”. No palco é diferente, não é?

Lina: Sim, eu penso que é a única canção do disco que nós não tocamos. Viavelmente, acho que poderia ser possível, mas dentro do alinhamento que fizemos e toda a mensagem que nós quisemos passar a nível musical e a nível cenográfico, foi uma das músicas que foi pensada talvez para fazer posteriormente em “encore”, mas acabámos por não fazer “encore” e foi algo que ficou no disco, não temos que tocar em palco tudo o que está no disco.

Raül Refree: A canção foi o “encore” do disco. Na verdade, não a vejo como parte do disco, é como uma faixa bónus, uma prenda, que quisemos gravar porque achámos que era uma maneira de explicar o disco, mostrar que não estávamos a tentar fazer fado ou a criar um conceito para romper algo. Simplesmente queríamos fazer música e tocar Amália ou tocar António Variações era para nós um pouco o mesmo.

Precisamente, António Variações acabou por ser um “outsider” na música portuguesa ao tentar desbravar novos caminhos … é um pouco também o que vocês fazem?

Lina: Exactamente. Neste disco tivemos a coragem e a ousadia de transformar algo com o qual eu estou mais ligada tradicionalmente - o fado tradicional, com guitarra portuguesa e viola de fado - e aquilo que eu sinto é que tenho mais liberdade a cantar com o Raül e isso é algo que eu sempre disse e sempre senti e continuo a dizê-lo. Continuo a sentir-me livre a cantar com o Raül em palco.

O Raul no primeiro disco de Rosalía levou o flamenco ao limite da tradição. Aqui, aventurou-se num género quase sacralizado – aliás é património imaterial da humanidade – e que muitos insistem em descrever como representando o povo português. O Raul não teve medo?

Raül Refree: Não é uma questão de medo, eu não acredito em limites, a não ser nos limites da ética, mas não acredito em limites musicais. Eu não vejo esses limites de que me falas. O que significam limites do fado ou limites do flamenco? É música e eu, por deformação profissional ou pessoal, vejo tudo como parte do mesmo, é uma questão emocional, uma questão epidérmica, não sou capaz de ver esses limites. Não é que tenha medo, é que não os vejo, toco simplesmente o que sei tocar e o que me apetece tocar em cada momento. Esta noite, quando actuarmos, não vou ver o passado ou o futuro, vejo o que estamos a fazer nesse momento, se tiver de tocar uma nota, toco-a, se tiver de tocar oito para acompanhar melhor a Lina, tocarei oito. É o instante que o dita.

E a Lina, que vem do fado tradicional, também não teve medo de se abrir a uma aventura arrojada assim?

Lina: Não, não, não. Nada mesmo. Eu gosto de desafios, gosto de coisas novas, diferentes, mas também com qualidade. É algo que tenho tido bastante cuidado em relação a isso e é algo que me faz evoluir e crescer cada dia mais porque nós não sabemos já tudo e queremos sempre aprender mais e saber mais, ouvir mais, cantar melhor, mas isso só pode acontecer quando recebemos outras culturas. Não podemos ficar quietos e parados a ouvir só o que é nosso, temos que ouvir aquilo que é dos outros também para podermos desfrutar todos em conjunto.

Eu insisti na palavra Medo porque é o primeiro tema do disco. Como é que escolheram canções de um repertório tão vasto e porquê Amália Rodrigues?

Lina: Amália é a minha maior referência, foi com ela que eu aprendi os meus primeiros fados, foi com ela que eu percebi que gostava de poesia, que também ensinou o meu pai a cantar ouvindo os discos da própria Amália. Portanto, acaba por ser algo geracional que eu penso que qualquer fadista, qualquer pessoa que canta fado, tem como principal influência a Amália Rodrigues e quem eu conheço melhor é de facto todo o repertório da Amália Rodrigues, esse eu conheço bem, e foi a nossa escolha.

Raül Refree: Eu não tenho a mesma ligação com Amália Rodrigues como a Lina, mas também não a tenho com nada referente ao meu país, nem creio muito nos países, em bandeiras ou até no peso cultural. Afinal, a cultura é o que cada um sente e eu senti que podia tocar essas canções, gostava da forma como a Lina as cantava, senti uma ligação e toquei. Todo este discurso do peso e limites parece-me muito antigo.

Lina: Aliás, nós estamos aqui com um propósito que é uma viagem entre Portugal e França. Portanto, acaba por ser algo que nos demonstra que não queremos barreiras e que queremos a fusão de todos os países.

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