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Artes

Fado Bicha: O fado saiu do armário

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Fado Bicha é um projecto musical e activista criado por Lila Fadista, na voz e letras, e João Caçador, nos instrumentos e arranjos. A dupla ocupou um género musical tradicionalmente rígido para desenvolver um Fado iconoclasta que rebenta com códigos e importa temas que não tinham ainda expressão no Fado, nomeadamente lutas que fazem parte das vidas das pessoas LGBTI em Portugal. A dupla vai tocar este sábado na Noite dos Fados, no Centquatre, em Paris, e passou pela RFI.

João Caçador e Lila Tiago, Fado Bicha. Paris, 27 de Maio de 2022.
João Caçador e Lila Tiago, Fado Bicha. Paris, 27 de Maio de 2022. © Carina Branco/RFI
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Fado Bicha é um projecto subversivo que tira do armário um género considerado, por muitos, como sagrado : o fado. O disco de estreia sai nas plataformas digitais a 3 de Junho e chama-se “Ocupação” porque Fado Bicha ocupou um lugar que não existia com um repertório de intervenção urgente que dá voz a causas e corpos invisibilizados.

É obviamente um disco político e que procura também politizar quem o ouvir, despertar desconforto e despertar reflexão”, conta João Caçador. É também um álbum que “tem muito de dor e de luto”, acrescenta Lila Tiago, com lutas que ganham nova voz depois de tantos anos no silêncio.

O disco conjuga o lado dramático do fado tradicional com novos ambientes sonoros e líricos. Há piano, guitarra eléctrica, baterias electrónicas, instrumentos de sopro, mas nenhum tema tem guitarra portuguesa até porque “era muito difícil - e continua a ser - encontrar alguém que queira tocar guitarra portuguesa” com Fado Bicha. Porquê? Porque “a guitarra portuguesa simboliza muito esse lado conservador do fado”. E Fado Bicha rompeu com as normas e devolveu ao fado a materialidade de uma “arte viva”. “Quisemos tornar esse património imaterial em património vivo e orgânico”, explicam.

Uma releitura do fado em que criticam a masculinidade tóxica, cantam as dores das identidades “queer” num mundo de rejeição, denunciam o racismo e o patriarcado e criam hinos de empoderamento e liberdade. Um disco que dizem ser pensado como “um manual de sobrevivência LGBTI em Portugal em 2022, em forma de música e discurso".

Fado Bicha é um dos projectos convidados para actuar na "Nuit 104 des Fados" no Centquatre em Paris, este sábado, 28 de Maio, no âmbito da Temporada Cruzada Portugal-França, ao lado de Mariza, Lina & Raül Refree, António Zambujo, Riot e Émile Omar.

RFI: Porque é que descrevem o disco como “um manual de sobrevivência LGBTI em Portugal em 2022”?

Lila Tiago: O álbum foi feito durante muito tempo porque começámos a gravar em 2019 com o nosso produtor Luís Clara Gomes (Moullinex) e foi sendo atrasado por várias razões, principalmente pela pandemia, mas acabou por abarcar um largo período do nosso trabalho e da nossa vida. Além disso, já começámos o projecto em 2017, portanto, já foi há cinco anos e este é o nosso primeiro álbum. Então ele reflecte este caminho que nós fizemos até agora e o álbum tem muito de dor e de luto, tem algumas músicas que referenciam, por exemplo, pessoas da nossa ancestralidade, da nossa família queer portuguesa da qual temos tão poucas referências e registos. E também tem muito de sugestões, de alegria e de luta. Queremos que tenha um pouco de passado e de futuro, representa-nos a nós, às nossas lutas e às nossas vidas pessoais, também aquilo que nos inquieta. Por isso, sentimos que é um pouco um manual de sobrevivência, por um lado de referência e de representatividade e, por outro, de luta e de futuro.

Vocês também dizem que “o disco é o resultado uma jornada pessoal, artística e política”. Este é um disco manifesto, activista, “artivista”?

João Caçador: É isso mesmo. O Fado Bicha começou por ser um exercício muito pessoal, interno, de nós as duas e, obviamente, enquanto corpos políticos que ocupam o espaço e que não querem fazer mais cedências tanto na vida pessoal como na vida artística, é obviamente um disco político e que procura também politizar quem o ouvir, despertar desconforto e despertar reflexão e, por isso, tentámos fazer um disco que trouxesse muitas propostas políticas, activistas, juntando a parte da arte com os nossos corpos, o que é inevitável.

Por isso é que o disco se chama “OCUPAÇÃO”? Qual a simbologia deste título?

Lila Tiago: Nós encontrámos, a certa altura numa entrevista, uma metáfora que nos serve muito bem e que é: nós puxámos uma cadeira que não estava lá para nos sentarmos à mesa. Esta mesa obviamente tem muitas acepções, não é só a mesa do fado em particular, mas é uma mesa de visibilidade e de existência plena. As pessoas LGBTI no mundo inteiro, mas falando especificamente de Portugal, estiveram à margem dessa vida plena e continuam a estar à margem dessa vida plena de muitas maneiras. Este disco obviamente não vai resolver isso, mas é um exercício simbólico artístico de ocupação nesse sentido, de recusar uma existência menos do que uma existência plena para nós.

É também um disco, de certa forma, subversivo, que trouxe um sopro de liberdade ao fado, mas espanta que uma tal libertação só aconteça agora – se é que acontece - quando tivemos, por exemplo, um António Variações que tentou fazer isso há tantos anos… O que se passou? Portugal não estava preparado? Agora está? 

João Caçador: Este ano faz 40 anos da descriminalização da homossexualidade em Portugal, onde até 1982 a homossexualidade era crime e até aos anos 90 era uma doença. Nós sentimos que falta muito um debate e uma reflexão pública e conjunta e falta muita visibilidade LGBT em Portugal. As pessoas continuam a ter que viver as suas vidas dentro do armário, eu diria. Se calhar saímos do armário, mas depois entrámos todos juntos noutro armário com as famílias, com os amigos. Nós queremos dar um pontapé nessa porta que está há muito tempo fechada e com este disco ocupar esse património que também é nosso e as vidas que são as nossas e da nossa comunidade.

Vamos então a esse “pontapé”. Já vamos ao lado musical, que é muito contemporâneo, mas primeiro as letras. De que falam as músicas no disco?

Lila Tiago: O nosso disco é muito diverso e tem músicas que apontam para muitos sentidos, tanto musicalmente quanto liricamente também. Isso trouxe-nos alguma preocupação no sentido de pensarmos “Será que o disco fica coeso? Será que fica muito disperso?” mas acabámos por sentir - e estamos muito orgulhosas dele – acabámos por sentir que ele tem uma coesão lírica e conceptual muito forte, apesar de musicalmente apontar para muito sítios diversos.

Por exemplo, falam no “povo pequenino, tão humilde, tão escarninho”, homenageiam “Lila fadista, bicha activista”, cantam “o meu nome é Alice e sou uma mulher trans”…

Lila Tiago: Sim, é um pouco aquilo que eu disse no início. O disco tem muitas referências. Por exemplo, ao Valentim de Barros, logo na primeira música, que foi um bailarino português que possivelmente é a vítima mais visível, e ainda assim muito pouco visível, da homofobia de Estado e da homofobia da ciência médica. Ele foi internado na ala psiquiátrica do Miguel Bombarda, foi submetido a uma leucotomia à revelia do seu médico psiquiatra e acabou por viver a vida inteira num hospital psiquiátrico tendo um único diagnóstico a vida toda que foi pederastia passiva, ou seja, homossexualidade.

Depois, temos músicas que referenciam não só pessoas da nossa ancestralidade, como a Gisberta Salce no “Medusa-me”, e também pessoas vivas, que estão à nossa volta, que compõem a nossa comunidade como a Alice Azevedo no “Fado Alice”, uma actriz e activista trans e nossa amiga muito próxima.

Depois, tem músicas que reflectem a nossa visão de Portugal e as nossas preocupações num Portugal actual com uma força neofascista como terceiro partido político, por exemplo, e a nossa relação com o 25 de Abril. Nós somos filhas do 25 de Abril, nascemos já mais de uma década depois do 25 de Abril e, de alguma forma, olhamos para esse património e pensamos “que liberdade é esta que nós cantamos tão fortemente como fazendo parte do ADN de todas as pessoas que crescem neste país”? Mas, de facto, que liberdade é esta? A quem é que serve essa liberdade? Como é que essa liberdade é construída? Como é que ela é pensada, quando nós temos tanta dificuldade em aceitar que pessoas racializadas em Portugal nos escancarem o racismo que sofrem e seja tão difícil para tanta gente – e não digo só pessoas comuns, é só abrir os jornais e perceber nos comentadores brancos a dificuldade que têm em aceitar as narrativas de pessoas racializadas das suas próprias experiências. Que ideia é esta de liberdade?

São vocês que escrevem as letras?

Lila Tiago e João Caçador: Sim, a grande maioria, sim.

Sentiram então essa urgência de serem porta-vozes de mensagens de certa forma chutadas para canto e silenciadas?

Lila Tiago: Claro, claro. Nós adoramos fado, adoramos fado tradicional desde a adolescência. Nós cantamos fado porque é uma expressão absolutamente natural para nós e é exactamente aquilo que nós queremos cantar. Mas não nos interessava reproduzir as mesmas narrativas de há cem anos, dos amores e desamores. Interessava-nos sim, mas do nosso ponto de vista e dos nossos corpos, das nossas experiências.

Em termos musicais, “OCUPAÇÃO” tanto evoca o lado confessional e dramático do fado tradicional, como o reinventa com outros ambientes sonoros e líricos. Há piano, há guitarra eléctrica, há baterias electrónicas, há instrumentos de sopro (clarinete e trompete), mas nenhum tema tem guitarra portuguesa. Porquê?

João Caçador: Inicialmente era muito difícil - e continua a ser - encontrar alguém que queira tocar guitarra portuguesa connosco porque a guitarra portuguesa também simboliza muito esse lado conservador do fado, muito simbólico e o peso do fado. Temos uma guitarrista que costuma tocar connosco às vezes, que é a Fernanda Maciel, que é uma guitarrista portuguesa brasileira, uma mulher brasileira na guitarra portuguesa.

O que é pouco comum, desde logo, uma mulher na guitarra portuguesa…

João Caçador: O que é muito pouco comum. E a instrumentação que nós usamos é muito diferente porque nós vemos o fado como uma matéria viva, como uma arte viva, e quisemos trazê-lo para o nosso tempo, enquanto músicas que vivem o seu próprio tempo e, dessa forma, tornar esse património imaterial em património vivo e orgânico em que nós podemos trazê-lo para as nossas vidas. No fundo, é voltar às origens do fado que contava a vida do dia-a-dia de uma forma muito autêntica e nós contamos as nossas próprias histórias.

Lila Tiago: E de acordo com as nossas possibilidades. Se não temos ninguém que toque guitarra portuguesa connosco, então não vai haver guitarra portuguesa.

Mas, de certa forma, isso também traz um lado mais pop ao fado e até um lado mais vanguardista, ou não? Esse facto de não terem guitarra portuguesa mas terem outros instrumentos e uma batida mais electrónica?

Lila Tiago: Eu não penso muito nessa questão da vanguarda e modernidade até porque eu acho que ela, às vezes, é usada contra nós no sentido de colocar as nossas identidades como invenções modernas, quando as pessoas queer e as pessoas dissidentes e as pessoas subversivas existem desde sempre - no fundo é a tradição que não as serve porque as elimina ou historicamente as eliminou.

Eu  penso mais em fazer com aquilo que temos à nossa volta, com as pessoas que se querem juntar a nós, que têm as suas forças para trazer ao nosso projecto. Fizemos este projecto com o Moullinex, ele é que nos conheceu primeiro, ouviu-nos num concerto muito por acaso e acabou por querer muito trabalhar connosco. Então, foi um processo muito bonito porque nós trazíamos as nossas composições e as letras e trazíamos as nossas influências e ele trazia as propostas dele. Era cada uma a puxar para o seu lado e a tentar encontrar um caminho comum e a entender o fado no meio disto.

É como o João disse: há muito a ideia do fado autêntico como sendo com a guitarra portuguesa e a viola de fado e que o fado é assim desde há 250 anos. E isso não é verdade. O fado já passou por múltiplas mutações, qualquer objecto artístico, qualquer campo artístico se vai sempre mutando e reinventando à luz das gerações que seguem umas atrás das outras. E é isso que nós estamos a fazer.

Vocês juntaram-se em 2017 e tomaram o Fado como ferramenta de trabalho e inspiração. Juntaram-lhe o adjectivo Bicha. Porquê? 

João Caçador: Foi até a Lila que quando começou o Fado Bicha usou essa palavra. Porque nós entendemos como uma palavra - que já existe, essa forma de visibilidade no Brasil que nós não inventámos nada - mas a ideia é de apropriarmos um insulto que foi dirigido contra nós durante muito tempo a agora usá-lo como arma de visibilidade e de identidade também para nós.

A Lila fala muitas vezes que a palavra Bicha tem um simbolismo muito próprio porque - além de significar uma pessoa efeminada ou com aquilo que poderemos ver ou definir como uma coisa mais feminina da parte de um homem – tem uma carga de, para além da homossexualidade, de aproximar alguém masculino que abdica da sua masculinidade e se aproxima do lugar da mulher. Então, aquilo que subjaz à palavra bicha e homofobia é muito a misoginia de que um ser que se aproxima de um lugar feminino tem de ser punido socialmente por isso.

É muito interessante para nós ter essas várias camadas nessa palavra e juntar o profano com o sagrado do fado, e uma identidade nacional com uma identidade que é vista como suja e que vem sujar e manchar o fado. Para nós, esse desafio artístico e pessoal também é muito interessante.

Precisamente, vocês tocaram num campo algo sagrado, o fado. Como é que tem sido a recepção em Portugal e lá fora?

Lila Tiago: A recepção tem sido incrível desde o início. Desde o início do projecto, a recepção tem sido maravilhosa. Eu acho que muitas pessoas se sentem excitadas pelo exercício que nós levamos a cabo, se revêem no que nós fazemos, nas nossas pautas, naquilo que trazemos a nível do discurso, adoram todas as experimentações que fazemos a nível musical.

Crescemos muito, como é óbvio. Quando começámos foi num bar mínimo onde cabiam 20 pessoas e eu nunca imaginei que algum dia pudéssemos estar, por exemplo, a dar uma entrevista numa rádio em França. E eu acho que há uma energia de busca e de procura das pessoas para algo que elas sentem como sendo também arrancado da sua própria identidade e do seu património pessoal e cultural e traduzido à luz das suas preocupações actuais. Eu acho que muita gente se liga com esse exercício.

Muito obrigada a ambas pela entrevista e também por nos trazerem um tema do vosso disco aqui aos estúdios da RFI. Trata-se de “Crónica do Maxo Discreto”, uma nova versão de um outro fado bem conhecido. Imagino que não tenha sido fácil reinventar este fado…

João Caçador: O fado é o “Nem às paredes confesso”. Nós tocámos durante muitos anos essa música ao vivo, só que quando fomos gravar o disco os herdeiros dos direitos de autor recusaram – como muitos outros fados que nós tocávamos ao vivo – a possibilidade de nós podermos tocar esses fados. Então tivemos que recriar, mais uma vez, todos os fados que tocávamos e obrigou-nos a compor de raiz esses novos fados do álbum e a “Crónica do Maxo Discreto” é esse exemplo.

Obviamente que tem influências desse fado “Nem às paredes confesso”, mas é uma música totalmente nova, foi a Lila que fez a letra, e foi muito interessante porque nos possibilitou trazer ou invocar essa figura do maxo discreto que é uma mistura de ódio e de desejo que muitas pessoas LGBT sentem e que traz a ideia das possibilidades do armário, dos lugares onde nos podem empurrar, tanto de liberdade quanto da falta dela. Então, é uma mistura que vive muito dentro de nós diariamente, esta ideia de viver dentro da norma e fora da norma. É uma versão bem empática e, ao mesmo tempo, provocadora dessa realidade.

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