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Artes

O fado "sem amarras" de Lina_Raül Refree

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Há mais fado além do fado. O projecto Lina_Raül Refree, cujo disco saiu a 17 de Janeiro, propõe uma viagem experimental a um género que durante muito tempo se quis intocável: o Fado. Lina e Raül Refree estiveram na RFI para falar deste trabalho que descrevem como “uma releitura de fados clássicos” que lhes dá “novas sensações e texturas diferentes”.

Capa do disco Lina_Raül Refree.
Capa do disco Lina_Raül Refree. Lina_Raül Refree
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Focar o fado nas palavras, nos silêncios e nas texturas de teclados e sons electrónicos que habitam o espaço. Lina_Raül Refree, cujo disco foi lançado a 17 de Janeiro, apresentam o seu projecto esta terça-feira, em Paris, no âmbito do festival Au Fil des Voix. Os dois músicos (ela de formação clássica, que estudou ópera e foi parar ao Clube de Fado de Lisboa e ele, o produtor que reinterpretou o flamenco com Rocío Márquez, Sílvia Pérez Cruz e Rosalía e que vai lançar em breve um álbum com Lee Ranaldo, ex-Sonic Youth) fizeram um disco de fado contemporâneo com um repertório clássico de Amália Rodrigues. Não há guitarras - a não ser na última música, um tributo de António Variações a Amália…

Lina (Carolina Rodrigues) começou por estudar teatro e ópera no Porto. A descoberta de Amália Rodrigues, na adolescência, fê-la entrar no fado e foi parar ao Clube de Fado em Lisboa. Em 2020, surge em Lina_Raül Refree, um disco cuja capa, em tons de preto e branco, mostra o seu rosto desfocado, de onde sai a sombra de outra cara, a de Raül Refree. Ambos se fundem num álbum com uma paisagem espectral e minimalista, texturas experimentais a pender para o electrónico,  uma voz centrífuga que esculpe tanto as palavras quanto os silêncios. Um disco longe dos mandamentos tradicionais do género no ano do centenário do nascimento de Amália Rodrigues.

O trabalho foi lançado a 17 de Janeiro, pela editora alemã Glitterbeat Records, e recria clássicos cantados por Amália, como “Foi Deus”, “Gaivota”, “Medo”"Cuidei que tinha morrido", "Quando eu era pequenina", “Barco Negro”, entre outros, contando, também, com “Voz Amália de Nós”, de António Variações.

Há mais fado além do fado. Lina_Raül Refree dão novos fados a um fado que se cuidou “que tinha morrido”, sem “Medo” e num “Barco Negro” numa viagem sem aarras ao género português que durante muito tempo se julgou o mais intocável: o Fado.

Lina e Raül Refree estiveram na RFI para falar deste projecto descrito como “uma releitura de fados clássicos” que não descaracteriza o género mas lhe dá “novas sensações e texturas diferentes”.

 

"Uma releitura de fados clássicos"

RFI: "Para começar, pedia-vos uma pequena descrição do disco…

Lina: O disco é um conjunto de fados clássicos da Amália, com uma nova abordagem e texturas e sons completamente diferentes do que é o fado tradicional…

Raül Refree: Penso que é uma releitura de fados clássicos cantados por Amália Rodrigues e interpretados com uma visão aberta, sem querer uma ruptura, mas também sem querer ser tradicional, simplesmente soltando as amarras que são as âncoras do barco e deixar que o barco navegue na direcção que o vento sopra…

RFI: Como é que surgiu esta associação entre ambos?

Lina: Foi a partir dele que tudo começou…

Raül Refree: Antes, comentei numa outra entrevista que me teria encantado ter tido a ideia deste projecto, mas não foi minha. A ideia foi de Carmo Cruz, que nos acompanha e é a manager do projecto, que veio a Barcelona buscar-me, ela tinha ouvido uns discos que eu fiz dentro do flamenco e disse-me que achava que o fado precisava de uma releitura como eu podia fazer e gostaria de me apresentar a voz que me poderia acompanhar neste processo. Gostei logo do projecto, mas no momento em que começámos a tocar, no minuto um, vi que seria um projecto que me ia emocionar.

RFI: Lina, porquê aliar-se a esta concepção do fado?

Lina: Eu tinha essa necessidade de me libertar e de sair um bocadinho do fado tradicional, fazer coisas diferentes e mostrar aquilo que eu sou capaz de fazer . Não me limitar só a cantar fado tradicional, mas a usar a minha formação clássica e linguística a nível musical para fazer outras coisas, para abrir fronteiras com as quais me identifico e onde me sinto bem.

RFI: Abrir fronteiras porquê? Há mais fado além do fado?

Lina: Para mim, este disco com o Raúl fez-me sentir que aquilo que eu cantava - e os fados que eu cantava antes acompanhados com os instrumentos tradicionais - ainda poderia ser maior, ter mais intensidade e conseguir principalmente sentir de uma maneira mais intensa e mais verdadeira.

Lina e Raül Refree em concerto.
Lina e Raül Refree em concerto. Miguel Santos

RFI: O Raül ajudou, se assim podemos dizer, a reinventar o flamenco, nomeadamente com o disco Los Angeles de Rosalía. Quis fazer o mesmo com o fado? Há esta possibilidade criativa com as músicas mais tradicionais ou mais populares?

Raül Refree: Bem, antes de mais quero sublinhar que não tenho a sensação de ter reinventado alguma coisa. A música é uma matéria aberta, que se deixa manipular e a única coisa que faço – tanto no flamenco como no que tenho a oportunidade de fazer com o fado - é uma releitura, é dar o meu ponto de vista de uma música. É certo que as músicas tradicionais têm uma componente emocional muito forte e é por isso que sobrevivem ao passar do tempo, são músicas que passaram de pais para filhos e dentro têm uma componente muito forte que, por pouco que se faça, é muito emocionante.

RFI: O que é que vocês fizeram ao fado? Criaram um fado do século XXI com um repertório com mais de 60 anos?

Lina: Eu acho que não. Nós não o descaracterizámos. Ele acaba por ser fado na mesma, só que é com outra abordagem, com novos instrumentos, com novas sensações, com texturas diferentes, mas a intenção e a intensidade estão lá. Isso não se perde, pelo contrário, ainda se enaltece mais. É aquilo que eu sinto.

Raül Refree: Há anos que oiço - nos discos em que participei de flamenco e noutros também – a questão sobre se é ou não flamenco. Que interessa? Eu não tenho a intenção que este disco seja fado ou que o deixe de ser. São canções. Afinal, os géneros e as geografias entrecruzam-se e o que importa é que o recebas com intensidade e emoção - ou não. Espero que as pessoas sintam este disco da mesma forma que como quando eu o toco, com uma intensidade emocional.

RFI: No disco, não há guitarras a não ser na última música da autoria de António Variações. Porquê essa opção de não enveredar por um caminho que seria de esperar e, pelo contrário, escolherem piano, sintetizadores…

Raül Refree: Bem, sinceramente, quando nos juntámos no primeiro dia, eu pedi que no estúdio houvesse guitarra clássica, guitarra eléctrica e alguns instrumentos de teclas, como o piano, o Fender Rhodes… Mas tinha a ideia – a Lina sabe-o – que fosse um disco de guitarra e voz. Eu trabalhei noutros discos e gostava muito do formato e gosto muito de tocar guitarra. Mas, no momento em que começámos a tocar, não funcionava com guitarra e não sei porquê. É uma sensação que se tem quando se toca. E logo que me sentei ao piano tudo funcionou de uma maneira muito intensa. Aquele destino, aquela energia da canção levou-nos a que fosse um disco de piano e voz.

RFI: E porquê todo este repertório marcado por Amália Rodrigues?

Lina: Alguns fados eu já cantava, outros eu tinha ambição de cantar e não tinha ainda sido possível com o trio. Por exemplo, ‘Quando eu era pequenina’ a Amália gravou com uma orquestra e dentro dos instrumentos tradicionais não era fácil conseguir reproduzir. São aquelas também que mais me dizem, aquelas com as quais me identifico e com as quais eu vou descobrindo novas emoções e novas sensações…

RFI: Emoções fortes. Há medos, há ausências, há viagens, há partidas…

Lina: Tudo o que uma pessoa tem na vida, não é?

RFI: E a felicidade?

Lina: Há. No ‘Foi Deus’. Há gratidão, essas coisas todas…

Lina e Raül Refree
Lina e Raül Refree Lina_Raül Refree

RFI: O fado durante muito tempo parecia intocável, mas alguns intérpretes começaram a levá-lo para outros horizontes. Vocês também quiseram levar o fado para um território mais experimental e num disco inteiro. Como tem sido a recepção do público em Portugal?

Lina: Tem sido boa, muito boa.

RFI: Mesmo os puristas?

Lina: Sim, mesmo os puristas. Eu achava que ia haver divisão, mas não. Aquilo que tem acontecido é que, depois dos concertos, as pessoas vêm dizer-nos que gostam muito e que ficaram arrepiados e tive pelo menos uma outra pessoa que me veio dizer que as convicções todas que tinha sobre o fado tradicional tinham ido por água abaixo. Portanto, são óptimas críticas.

RFI: Vão continuar a trabalhar juntos?

Raül Refree: Ainda é cedo para o saber. Pelo menos, temos a intenção de continuar a explorar durante os concertos e se isso nos levar para algum território interessante porque não gravá-lo? Mas ainda é cedo e há muito caminho pela frente.

Lina: Agora queremos trabalhar este e desfrutar ao máximo.

Raül Refree: Às vezes dizes: Sim, sim, faremos outro disco, e no final da digressão estás tão cansado, até pode acontecer cansar da relação e precisar de trabalhar com outros… Não gosto de antecipar as coisas."

 

Lina e Raül Refree vão estar em Paris esta terça-feira; em Santiago de Compostela, Las Palmas, Tenerife e Madrid em Março; em Londres, Bruxelas e Lisboa em Maio; em Skopje e Santander em Junho.

 

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