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Sudão do Sul

Prolongamento da transição no Sudão do Sul "só vai prolongar o sofrimento das pessoas"

O executivo de União Nacional do Sudão do Sul dirigido pelo Presidente Salva Kiir e o seu mais directo adversário, o vice-presidente e antigo líder rebelde Riek Machar, apresentou ontem um novo roteiro pós-guerra civil e anunciou que vai prolongar por mais 2 anos a transição que devia terminar em Fevereiro de 2023, com a organização de eleições. Com este novo adiamento, o período de transição deve agora terminar apenas em 2025.

O presidente do Sudão do Sul, Salva Kiir (à esquerda) e o seu vice-presidente, o ex-líder rebelde Riek Machar (à direita), em Juba, no dia 20 de Fevereiro de 2020, durante uma conferência de imprensa conjunta.
O presidente do Sudão do Sul, Salva Kiir (à esquerda) e o seu vice-presidente, o ex-líder rebelde Riek Machar (à direita), em Juba, no dia 20 de Fevereiro de 2020, durante uma conferência de imprensa conjunta. REUTERS/Jok Solomun
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Em vigor desde 2020, o período de transição subsequente à assinatura do acordo de paz em 2018 entre os apoiantes do Presidente Salva Kiir e os seus rivais do campo de Riek Machar depois de 5 anos de guerra civil, devia inicialmente terminar em 2022, sendo que o termo foi alterado para 2023, devido a bloqueios que impediram o cumprimento de boa parte das disposições previstas no acordo.

Apesar de já ser aplicada uma transição alargada, ainda no passado mês de Março, altura em que a ONU renovou por um ano a missão dos seus capacetes azuis no país, constatava-se o recrudescimento das violências entre facções rivais e também a aplicação de apenas uma das medidas previstas no acordo de paz, ou seja, a recomposição das estruturas de governação do Sudão do Sul.

Num discurso dirigido ontem à nação, o Presidente Salva Kiir argumentou que ao prolongar novamente o período de transição até Fevereiro de 2025, "pretende não precipitar uma eleição que poderia levar o país novamente à guerra" e que, do seu ponto de vista, se trata de uma escolha "pragmática" e "realista" para curar e consolidar o país.

O novo roteiro revelado ontem não deixou de suscitar a preocupação dos parceiros internacionais do país. Os Estados Unidos, a Grã-Bretanha e a Noruega, países que apoiaram a transição, boicotaram a conferência em que foi anunciada a decisão governamental. A 'troika' internacional também dirigiu uma carta ao Presidente Salva Kiir lamentando que as partes, nomeadamente grupos religiosos, membros da sociedade civil e actores económicos não tenham sido consultados antes desta decisão.

“A eventualidade de um roteiro ou uma extensão serem considerados legítimos pelo povo do Sudão do Sul e pela comunidade internacional depende de um processo de consulta inclusivo”, indicaram os parceiros internacionais acrescentando “não poder garantir se vão apoiar um roteiro ou uma extensão noutras circunstâncias”, alertam. Ainda de acordo com os autores da carta, “o roteiro deve demonstrar de que modo difere dos anteriores e deve incluir etapas para um progresso nítido no estabelecimento das instituições e mecanismos necessários para a realização de eleições”. Recomendações que surgem numa altura em que tanto a ONU como os Estados Unidos têm alertado nos últimos meses as autoridades do país sobre a necessidade de organizar eleições gerais "livres e justas".

Ao comentar a situação vigente no Sudão do Sul, o Padre José Vieira, missionário que viveu largos anos nesse país, dá conta do seu cepticismo quanto ao andamento do processo de transição e reconciliação entre os antigos beligerantes."Há dois ou três elementos fundamentais que estão por detrás deste prolongamento. Por um lado a nova Constituição não foi aprovada. Para haver eleições, a nova Constituição devia estar pronta e os exércitos dos diversos grupos, do Salva Kiir, do Riek Machar, deviam já estar unidos num exército nacional. O que se sabe é que as forças continuam acantonadas em sítios diferentes e continuam a lutar entre elas" refere o missionário considerando que "os pressupostos para eleições livres ainda não estão presentes".

Os parceiros internacionais do Sudão do Sul têm constatado que disposições do acordo de 2018, nomeadamente a elaboração de uma nova constituição, a reforma da gestão das finanças públicas, o estabelecimento de instituições judiciais, assim como a formação de um comando unificado das Forças Armadas, continuam por implementar devido aos desacordos persistentes entre os campos rivais.

"O governo diz que a culpa é dos doadores internacionais que não têm dado o dinheiro suficiente para financiar as operações de integração do exército, criar um exército único nacional e as demais acções", observa o Padre José Vieira referindo que "por outro lado, há quem diga que os líderes do governo, Salva Kiir e os seus amigos e também, na oposição, Riek Machar e os seus amigos, não estão interessados em mudar o 'status quo' e a minha impressão é que enquanto estes dois senhores dominarem a política do Sudão do Sul, a paz, a unidade e o progresso do país nunca vão acontecer".

Enquanto isso, constata o religioso, "os problemas fundamentais do país continuam por resolver. A corrupção, a falta de desenvolvimento, a educação, a saúde, as questões políticas continuam sem serem resolvidas porque não há um quadro político em que as coisas possam ser resolvidas. Este ajuste dando mais dois anos de tempo para o processo de união nacional e de reconciliação só vai prolongar o sofrimento das pessoas".

Neste contexto já por si pouco auspicioso, o padre José Vieira mostra-se pouco optimista, sublinhando que as iniciativas da sociedade civil para encontrar soluções têm sido sistematicamente travadas. "Nos próximos tempos, infelizmente vai ser mais do mesmo. Vai continuar a haver marginalmente ataques entre os grupos políticos. Vão dizer que são tensões étnicas localizadas, mas não são. As pessoas são manipuladas pelos políticos para lhes dar algum poder quando estão à mesa das negociações. A corrupção no Sudão do Sul que é endémica vai continuar pelo mesmo caminho e o país continua a ser adiado (...) Eu vejo que uma das soluções possíveis seria através da sociedade civil, encontrar uma liderança política nova, baseada nos valores da democracia, da transparência, da dignidade da pessoa e essas coisas todas. Aquilo que tenho notado é que quando algum líder da sociedade civil se torna proeminente, os serviços de segurança nacionais encarregam-se de o prender ou de o amordaçar", constata o missionário.

Desde sua independência em 2011, o país mais jovem do mundo tem sido palco de violências político-étnicas. Entre 2013 e 2018 a guerra civil no país provocou cerca de 400 mil mortos, milhões de deslocados e uma crise humanitária em larga escala. O processo de transição implementado desde 2020 tem sido muito frágil e à medida que foi sendo prolongado, as violências e a instabilidade continuaram.

Apesar de imensos recursos petrolíferos, o Sudão do Sul continua a ser considerado um dos mais pobres do mundo. De acordo com a ONU, numa população avaliada em cerca de 11 milhões de pessoas, uma parte significativa -9 milhões- precisa de ajuda humanitária para enfrentar a crise alimentar.

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