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“Soldado Nobre”: Filmar o "limbo" entre memória viva e História oficial

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"Soldado Nobre" é um documentário sobre um homem que combateu na Primeira Guerra Mundial, em França, e que, como muitos "soldados desconhecidos", não é "sequer uma nota de rodapé na história". O filme tem estreia a 13 de Abril em Portugal e é uma viagem iniciática do realizador Jorge Vaz Gomes em busca das suas raízes e da história do bisavô, Francisco Nobre, um anónimo entre tantos que foram combater longe da terra sem saberem porquê.

Realizador Jorge Vaz Gomes em Paris, Março de 2023.
Realizador Jorge Vaz Gomes em Paris, Março de 2023. © Carina Branco/RFI
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Apaixonado pelo passado - e ainda mais quando o próprio passado cruza o passado universal - Jorge Vaz Gomes acredita que há histórias que sobrevivem à História e que a noção de herói não é forçosamente aquela que vem nos livros. Em tom de diário, com uma escrita poética e filosófica, o realizador foi atrás de uma fotografia com 100 anos para tentar dar um rosto ao seu bisavô…. O resultado pode ver-se no filme "Soldado Nobre" que estreia em Portugal a 13 de Abril.

RFI: "O Jorge diz que o seu avô não é "sequer uma nota de rodapé na História". Este filme é uma tentativa de corrigir a História?"

Jorge Vaz Gomes, Realizador de “Soldado Nobre”: "Eu acho que não é uma tentativa de corrigir a história. É acima de tudo uma empreitada pessoal para resgatar o máximo de informação sobre alguém que me foi muito próximo, embora já tenha morrido há muito tempo. Estamos a falar do avô da minha mãe, alguém que morreu muito cedo, que deixou marcas. Deixou marcas fortes na mulher dele, deixou histórias para a filha, deixou histórias para os netos, para os bisnetos e tem esta particularidade de não ter sido mais um bisavô como outro qualquer que é apenas um nome numa certidão de nascimento.

De todos os bisavôs que eu tive, este, em particular, tem uma história forte por detrás que é o facto de ter combatido na Primeira Guerra Mundial, de ter passado dois anos nas trincheiras. Para mim, enquanto pessoa fascinada pelo passado e pela história da minha família, enquanto passado próprio e passado que se cruza com um passado mais universal, é muito difícil eu saber que tive um bisavô a quem aconteceu isto e não tentar saber o máximo sobre ele."

"É por isso que você diz que “ele não é sequer uma nota de rodapé na história”?  Quis tentar reinscrever na História as histórias que a História esqueceu?"

"Sim. O Tolstoi dizia que a História é feita de pequenas histórias, de pequenos homens, mais do que de grandes feitos. Ele escreve o “Guerra e Paz” precisamente nesse sentido, uma espécie de afirmação de que mais do que o Napoleão ou do que os grandes generais do Napoleão ou Kutuzov e os generais russos, eram os soldados rasos que escreviam realmente a História.

De facto, quando eu digo que ele não é sequer uma nota de rodapé é porque a História é escrita desta forma um bocado perversa de forma a deixar de fora os pequenos actores. Mas, no fundo, são os pequenos actores que constroem a História. É claro que nunca teremos tempo nem capacidade de reconstruir os eventos históricos do ponto de vista dos pequenos actores, mas eu acredito que cada vez que olhamos para a História de um ponto de vista micro conseguimos saber algo mais sobre o passado e sobre o período em causa."

"Ou seja, o filme acaba por ser uma homenagem a todos os soldados desconhecidos, a todos esses pequenos actores de que fala. E se é também uma prova de que não há heróis, ao mesmo tempo você quase transforma o seu bisavô num herói ao ser o protagonista desta sua história..."

"Pois, não tinha pensado nesse ponto de vista.  Sim, ele acaba por ser o herói do meu filme até porque eu acho que qualquer pessoa que tenha passado dois anos da sua vida enfiado numa trincheira é inevitavelmente um herói. Estamos a falar de vários milhões de heróis que houve naquele período histórico…"

"Mas não herói no sentido, digamos, quase mitificado pela História?"

"Exactamente. Herói no sentido em que fez algo de heróico, mais do que ter tido feitos inscritos nos livros da grande História. A ideia de homenagem é também um bocado essa. É a de que estes soldados sofreram tanto, passaram por tanto, foram esquecidos, foram maltratados. O Estado Novo e Salazar encarregaram-se de fazer passar a ideia de que a participação portuguesa tinha sido um fracasso completo - porque era uma forma de enfraquecer a jovem República. No entanto, isto foram homens que foram muito resistentes, muito corajosos e que sofreram imenso sem saber muito bem porquê e para quê. Eu acho que, nesse sentido, é de toda a justiça que se faça uma homenagem a estas pequenas figuras incógnitas e desconhecidas - que é o meu bisavô e que são todos os outros que foram para lá."

"O filme começa em 2014 e continua até 2018 aquando do centenário da batalha de La Lys a que foi assistir no cemitério militar português de Richebourg e onde estiveram os presidentes português e francês. Como foi o processo de filmagens e a reconstituição da história e da viagem do seu bisavô?"

"Foi interessante porque quando se estava a aproximar o centenário da batalha da La Lys, a Associação Memória Viva - que trabalha sobretudo aqui em França - convidou-me para eu ir apresentar uma maquete do filme a um pequeno evento que eles iam fazer lá na região. Eu aproveitei o facto de ter recebido esse convite e de fazer a viagem até Lille e até à zona de La Lys para assistir e para filmar o centenário porque toda a gente disse que ia ser uma coisa em grande, que iam os dois presidentes da República, o português e o francês.

Eu fiquei com muita vontade de filmar isso até porque o meu bisavô combateu na batalha de La Lys, é uma das notas na ficha militar dele e eu achei que era um momento bonito para mim, passados cem anos, estar ali no sítio onde aconteceu a batalha - que é onde o cemitério foi construído - a filmar a cerimónia. Mas depois deparei-me com aquele problema que não consegui arranjar autorização para entrar porque as medidas anti-terroristas continuavam - e continuam em vigor - e ninguém da Embaixada me respondeu, de consulados. Cheguei a escrever para o gabinete do Presidente da República e não tive resposta.

Mas, pronto, eu acho que acabou por ser mais engraçado estar a filmar cá fora porque eu  estava no meio do público. Lá dentro do cemitério eram só convidados, e eu acabei por estar no meio do público, no meio dos descendentes de portugueses, e a ver a cerimónia por um grande ecrã de um camião que estava instalado à porta como se estivéssemos a ver um jogo de futebol. Tornou aquilo tudo assim meio burlesco e mais interessante na verdade."

"Foram quatro, cinco anos de filmagens, de montagem?"

"Foi ainda mais porque eu tive a ideia em 2013, estava a aproximar-se o início do centenário, e comecei a filmar em 2014. Em 2018, foi quando fui filmar o tal centenário. Depois em 2019, ainda fiz mais entrevistas, mais filmagens. O filme só ficou completamente acabado a nível da rodagem no final de 2019, só que depois meteu-se a pandemia que atrasou bastante a pós-produção do filme e só agora é que está pronto."

"Só agora é que vai ter estreia em sala..."

"Exactamente. Vamos estrear em várias salas em Portugal, dia 13 de Abril, e vamos ter uma pequena antestreia no município do Sabugal que é um dos nossos parceiros do filme…"

"Na aldeia de Alfaiates?"

"Não vai ser na aldeia de Alfaiates porque na aldeia de Alfaiates não há nenhum auditório, mas vai ser no auditório da Câmara Municipal do Sabugal, muito perto, dia 8 de Abril, que é a véspera do aniversário da Batalha de La Lys. Vamos ter uma pequena antestreia onde vou convidar as pessoas de Alfaiates, as pessoas que entraram no filme."

"E em França?"

"Ainda não está nada programado, mas espero que à medida que o filme vá saindo, o filme comece a despertar interesse eventualmente aqui em França e que possa passar cá também."

"Nesta viagem, o Jorge vestiu literalmente o uniforme dos soldados do Corpo Expedicionário Português, misturando o registo de ficção com o registo documental. Porquê?"

"É uma boa pergunta, eu próprio ainda hoje não sei dizer muito bem porque é que eu fiz aquilo. Porque, na verdade, aquilo não são propriamente reconstituições, ou seja, a ideia não é o espectador ver aqueles momentos em que eu estou vestido com a farda e sentir que entrou dentro de um filme de ficção sobre a Primeira Guerra. É uma espécie de uma evocação visual, é para nos dar um bocadinho de cheirinho de passado. Eu diria que é mais isso do que outra coisa assim mais complexa."

"O filme questiona o papel da fotografia enquanto representação e transmissão da memória. Ora, em vez de mostrar, a fotografia aqui esconde…"

"É uma espécie de jogo do gato e do rato. Eu ando a tentar identificar o meu bisavô numa fotografia de grupo onde aparecem muitos soldados que saíram da aldeia de Alfaiates. E é muito difícil porque o meu bisavô morreu em 1923. Quando eu começo o filme em 2013, as únicas pessoas que o conheceram já morreram há algum tempo. Por exemplo, o meu avô tinha 95 anos quando morreu, em 2005. Ou seja, ele tinha 13 anos quando ele [o «soldado Nobre»] morreu e de certeza que o conheceu. Este filme começou atrasado dez anos para eu poder identificá-lo na fotografia. As últimas pessoas que o podiam reconhecer já tinham morrido há cinco, seis, sete, dez anos.

E há uma coisa interessante sobre pegar na questão da Primeira Guerra na altura em que eu peguei. Por exemplo, se pensarmos na Segunda Guerra, ainda há muitas testemunhas, ainda há muitos sobreviventes. Portanto, existe um discurso vivo ainda, um testemunho vivo, uma memória viva daquilo que aconteceu. Mas, se pensarmos, por exemplo, nas guerras napoleónicas, a única memória que existe foi aquela que foi transposta para os livros de História, já não existe nada de testemunhos e memórias vivas porque já foi há demasiado tempo. Eu sinto que a Primeira Guerra - agora cada vez menos - vive numa espécie de mistura entre os dois que é: nos últimos anos tem deixado de ser algo que ainda vive na memória das pessoas para passar a ser algo que só vai estar nos livros de História.

É óbvio que as pessoas que viveram na Primeira Guerra já morreram todas há muito tempo. A questão é que os filhos dos soldados, por exemplo, ainda estão vivos e ainda guardam memórias muito frescas. Eu falei com várias pessoas no filme que têm memórias frescas daquilo que os pais lhes contavam que era a Primeira Guerra. Por exemplo, a dona da fotografia diz que o pai lhe falava demasiado sobre aquilo – o que é uma coisa curiosa porque a maior parte não falava – e ela era muito pequena e ficou muito traumatizada porque estava sempre a ouvir falar de cadáveres e corpos amontoados e o pai estava sempre a queixar-se das memórias que tinha da Primeira Guerra. Isso fazia-lhe imensa impressão e ela tentava bloquear isso. A Primeira Guerra ainda vive aqui neste limbo.

Eu, de facto, quando comecei a minha procura também tive esta pulsão, não só de perceber quem ele era na fotografia para ter uma imagem dele – porque a gente quando quer fazer um filme sobre alguém, a primeira coisa que queremos é ter uma imagem sobre essa pessoa e, portanto, existe essa pulsão desde o início – mas também existe esta pulsão de tentar saber e de salvaguardar o máximo de informação sobre aquela época que é uma informação que vai desaparecer."

"Até porque a dada altura diz: "As feridas foram ficando ao longo de todo o século, mas a informação que nos permite almejar alguma compreensão humana do conflito, essa já desapareceu"…"

"Sim, sim. Eu acho que existe um trauma que foi passando de geração em geração, de que algumas pessoas falam, sobretudo as pessoas com quem falei que são filhas de soldados que participaram, que ainda hoje sentem que tiveram uma infância difícil por causa disso. Por exemplo, a minha bisavó, nos poucos anos em que esteve casada com o meu bisavô, foram anos difíceis porque ele veio muito traumatizado, bebia muito, era violento, tinha ataques de asma muito fortes. A minha bisavó ficou viúva muito cedo e viveu a vida toda sozinha e foi uma coisa que também a marcou e que também terá passado para os filhos e para os netos, aquela dureza.

Este tipo de acontecimentos históricos deixam traumas a nível individual um bocadinho por todo o lado e a informação que a gente tem sobre isso é uma informação mais a nível macro, mais a nível da grande História do que a nível das pessoas. A nível das pessoas não está pensado, não está mapeado, não está estruturado."

"Falou na dureza. O facto de fazer este filme permitiu-lhe, de alguma forma, fazer as pazes com a sua própria história, digamos? A dada altura ouvimos no filme “Tudo na fotografia é pó, até a pedra.” O que aprendeu com o filme e conseguiu fazer as pazes com alguma coisa?"

"Acho que ainda não tinha pensado nisso porque estava tão concentrado em acabar o filme que acabei por não pensar o que é que eu aprendi com o filme. Bom, aprendi coisas muito práticas como: como é que se faz uma longa-metragem. Esta é a minha primeira longa-metragem e é, de facto, um trabalho de uma paciência muito aturada, que testa muito as nossas capacidades e os nossos limites.

Sobre a história em particular fico, pelo menos, com a sensação de sentir que fiz tudo o que conseguia para saber o máximo sobre ele e isso foi importante. Acho que há uma ética por detrás deste tipo de processo de investigação micro-histórico de tentar saber o máximo. Mas acho que fica sempre esta frustração que assiste o início do filme de ser tão difícil resgatar a informação sobre esta época e sobre pessoas individuais desta altura. Essa frustração permanece um pouco. Acho que nunca desvaneceu, acho que não fiz propriamente as pazes com esta questão."

 

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