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Artes

Filme sobre cantora do Maio de 68 ecoa com a França de hoje

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O documentário “N’Effacez pas nos traces ! Dominique Grange, une chanteuse engagée” dá voz a uma das vozes mais conhecidas de Maio de 1968. O filme teve ante-estreia a 21 de Fevereiro, no Forum des Images, em Paris, e ecoa com os protestos de hoje contra a reforma do sistema de pensões em França.

Desenho do artista Tardi e que é a imagem do cartaz de "N'EFFACEZ PAS NOS TRACES ! Dominique Grange, une chanteuse engagée", do realizador Pedro Fidalgo.
Desenho do artista Tardi e que é a imagem do cartaz de "N'EFFACEZ PAS NOS TRACES ! Dominique Grange, une chanteuse engagée", do realizador Pedro Fidalgo. © Tardi
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Depois de um filme dedicado a José Mário Branco, um dos ícones da canção de intervenção portuguesa [“Mudar de Vida, José Mário Branco, Vida e Obra” (2014) que co-realizou com Nelson Guerreiro], o realizador português Pedro Fidalgo vai estrear em França um outro documentário em que a cantiga volta a ser uma arma. Trata-se de “N’Effacez pas nos traces ! Dominique Grange, une chanteuse engagée” [“Não Apaguem os Nossos Rastos! Dominique Grange, uma cantora de protesto”, sobre uma das vozes mais conhecidas de Maio de 1968 e que continuou a militar nas ruas e nos palcos por diferentes causas. O filme ecoa com o movimento social que se tem sentido em França contra a reforma das pensões.

Depois de se ter estreado em Portugal, no ano passado, o documentário chegou às salas francesas a 22 de Fevereiro, depois de uma ante-estreia na véspera em Paris.

RFI: O filme começa com estas palavras da cantora Dominique Grange: “Quando olhamos à nossa volta, é difícil não ficarmos revoltados…”. Foi a revolta que o motivou a fazer este filme com a Dominique Grange?

Pedro Fidalgo, Realizador: Sim, a revolta é algo que está intimamente ligado aos dois filmes. Quando se diz revolta, não é simplesmente um grupo de enraivecidos que vão para a rua e depois voltam para casa zangados. Quer dizer, há um lado também festivo. Nós podemos ir para a rua de forma alegre e tentar não nos desmotivar com aquilo que vemos no dia-a-dia, seja no trabalho, seja nas prisões, seja no quotidiano com a guerra, com tudo o que está à nossa volta, com a inflação, em que nós sentimos que há um sistema e uma sociedade em que as pessoas acabam por ficar envolvidas sem quererem estar.

Então, essa forma de vivermos todos numa sociedade que nos ultrapassa acaba por levar-nos muitas vezes a termos um sentimento de revolta individual. Refilamos em casa, zangamo-nos, às vezes, com aqueles que estão ao nosso lado, quando, na verdade, quando nos juntamos na rua ou nos juntamos aos outros, acaba por ser quase uma festa colectiva que leva as pessoas a serem solidárias na rua.

O documentário ecoa muito com o que vivemos hoje. Manifestações contra a reforma das pensões e novamente milhares de pessoas nas ruas. O título “N’effacez pas nos traces” é o nome de uma das canções de Dominique Grange e faz referência aos que lutaram contra as opressões e desigualdades no Maio de 68. Meio século depois - e mesmo se o antigo Presidente Nicolas Sarkozy chegou a dizer que estava na hora de virar a página de 68 - porque é que ouvir Dominique Grange tem qualquer coisa de intemporal?

As canções da Dominique Grange têm de intemporal o que têm outras canções históricas que marcam um período específico, mas que podem ser mais tarde ouvidas e não só relembrarem o que aconteceu naquele momento – estou a pensar na Internacional na Comuna de Paris ou outras canções que marcaram a história, como na Revolução Russa ou na Guerra Civil de Espanha. São canções que marcam um período, mas que ouvidas muito mais tarde, noutro contexto e noutras situações, podem ser adaptadas.

No caso da Dominique Grange, algumas canções já têm 50 anos - as do Maio de 68. Como o Maio de 68 foi uma ruptura completa com a sociedade que existia, mas também houve mudança no pós-68, existem rastos que ficaram até hoje por resolver, nomeadamente as questões das violências policiais, do racismo, houve bastantes recuos dos anos 80 para cá em tudo o que foram conquistas sociais. A cantiga “Abaixo o Estado Policial” é uma cantiga que é bastante interessante porque foi cantada por manifestantes durante a Lei do Trabalho El Khomri em 2016 e voltou. Muita gente talvez cante as canções dela sem saber que são dela.

As canções de Dominique Grange são uma forma de resistência a todas as formas de opressão. Uma das músicas mais conhecidas de Maio de 68 foi, precisamente, “A bas l’etat policier”, mas a música não se esgotou nessa altura. Com o movimento dos coletes amarelos, a violência policial regressou, mas também com a morte, por exemplo, de Adama Traoré, numa esquadra de polícia em 2016,  e tantos outros crimes motivados pelo racismo. Porque escolheu esta música como um dos fios condutores do filme?

Eu não acho que a violência policial regressou, ela sempre existiu. Simplesmente, ela era muito dirigida a um certo tipo de comunidades, nomeadamente populações estigmatizadas, emigrantes, bairros populares, e não afectava tanto uma classe média branca como aconteceu com os coletes amarelos em que pessoas que estavam bastante longe dessas violências – ou que ouviam falar através dos jornais e televisão – tivessem um contacto directo.

Com os coletes amarelos, vimos bem a evolução do movimento, ao início as pessoas gritavam ‘Os polícias connosco’, ‘Juntem-se a nós’ e, no final, perceberam que não era bem a palavra-chave para levar para a frente o movimento, acabando por manifestar-se ao lado de movimentos mais anti-polícia.

Depois de ter cantado nos diferentes comités de trabalhadores no Maio de 68, a Dominique Grange esteve no partido La Gauche Prolétarienne, chegou a ser presa, a dada altura teve de ir para a clandestinidade, continuou o militantismo contra tantos tipos de opressão e acabou por cantar sempre e sempre cantigas de intervenção social. Ela diz “Je continue en colère” [“Continuo com muita raiva”] perante o estado do mundo. Porque é que ela continua com tanta raiva?

Essa questão teria de ser feita a ela, mas ela diz no filme. Ela está farta de ver que sempre que as pessoas se querem manifestar e exprimir o que sentem, na realidade, há sempre uma força do poder, do Estado, que vem para as calar, para as violentar. São estas injustiças que ela vê.

Quando ela fala de injustiça, estamos a falar de coisas bastante concretas: estamos a falar do apartheid que existe actualmente contra o povo palestiniano pelo Estado racista que se tornou Israel; estamos a falar de colonialismo pelo Estado chileno em relação às comunidades autóctones mapuche no Chile – um país com quem ela tem uma grande relação porque adoptou filhos de origem chilena e mantém uma ligação forte ainda hoje; e, depois, também aqui em França, quando abordamos coisas do passado para remetê-las no presente – a ideia de falar de Wahid [Hachichi], o jovem que foi assassinado pela polícia em 1982 era para mostrar que desde então as coisas não mudaram. Entretanto, tivemos vários crimes policiais em França, como a morte de Adama Traoré, de Théo [Luhaka], de Lamine Dieng... Temos uma série de nomes, de jovens, sobretudo homens, rapazes, negros, de bairros populares, que foram assassinados por puro e simples racismo. Isso são coisas denunciadas no filme e que é preciso ter em conta.

Algumas canções de Dominique Grange ainda são hoje cantadas em protestos. Ela diz no documentário que a cantiga é uma arma, uma frase que no imaginário português remete logo para o título de uma das mais conhecidas músicas de José Mário Branco, sobre quem também co-realizou um documentário. Porquê este interesse pela cantiga enquanto arma? 

A canção de protesto, em português, diz-se de intervenção, mas é um termo que foi sempre muito recusado pelos próprios cantores de intervenção. O termo exacto seria mais canção de protesto. A canção de protesto é uma coisa que é bastante importante que é o facto de ela ser histórica, relatar não só os factos, mas também permitir uma análise e uma compreensão do que se passava numa certa época, não só nas letras, mas também na forma como é feita e cantada e produzida. Se formos ver as canções do Grupo de Acção Cultural em Portugal ou mesmo as de Dominique Grange no Maio de 68 ou no pós-Maio de 68, são cantigas que foram autoproduzidas de forma colectiva, que retratam o espírito de uma época e de um momento. São cantigas que também podem ser de amor e que, se calhar, têm uma preocupação não intimamente ligada só ao outro individual mas ao outro colectivo.

Então, as canções de intervenção que sempre foram marginalizadas desde os anos 80 para cá – não em França porque a canção de intervenção esteve em todos os géneros musicais e continua – mas em Portugal houve um período em que tudo o que fosse de carácter político, houve um afastamento, não claro, para que a coisa passasse melhor nas rádios.

A canção de protesto é mesmo um termo quase ocidental para determinar canções da oposição ou de inconformismo com o regime. No caso do Wolf Biermann, que era um cantor sobre o qual gostaria de fazer um filme, é o contrário. Ele foi um comunista que acreditava no regime comunista da RDA e acabou por ser expulso porque era tão contestatário que ao criticar o próprio regime em que ele acreditava, acabou por ser expulso. É um exemplo que a canção de protesto que há nos países no hemisfério sul não tem esse carácter porque a música em si é uma forma de protesto porque foram países que foram colonizados e que têm uma história diferente. Assim como a cantiga é uma arma - e a Dominique diz no filme que pode atravessar as fronteiras, as prisões, os muros - um filme também pode ter a sua utilidade.

Vemos no genérico do documentário que foi filmado e produzido através de um "crowdfunding", mas o Pedro Fidalgo também agradece ao realizador Jean-Luc Godard, que revolucionou o seu próprio cinema no Maio de 68. Qual foi o papel dele? Como é que ele ajudou?

Uma manhã, estava eu a trabalhar e recebi um telefonema do Jean-Paul Battaggia, que era o seu assistente, a dizer que o Jean-Luc Godard queria apoiar o "crowdfunding'"e participar. Claro que fiquei um bocado surpreendido, na altura fiquei a pensar que era algum amigo a brincar comigo porque sabe que eu gosto muito dos filmes do Jean-Luc Godard mas, na verdade, não. Ele participou e o agradecimento especial no filme tem a ver com o apoio que foi feito, mas também com o facto de ser um autor que me inspirou de uma certa forma em termos de montagem. Daí esse agradecimento especial. Houve discussões no momento da montagem do genérico se não seria discriminatório em relação aos outros apoiantes, mas pela inspiração que o autor tinha dado e pela iniciativa, daí esse agradecimento especial ao “camarade Jean-Luc”!

Como é que conheceu a “camarada Dominique Grange” e como é que teve a ideia de fazer um filme com ela?

Assim que acabei o filme do José Mário Branco, escrevi-lhe no Facebook, expliquei-lhe o que fazia, enviei-lhe o outro filme, encontrámo-nos para beber um café, ficámos duas a três horas a conversar e, pronto, começou o filme.

Já o mostra no filme, mas como é que ela é?

É preciso ver o filme. É uma mulher combativa, com uma certa alegria de viver, sempre solidária, disposta a ajudar o outro, que não pára...

E cuja militância não se ficou pelo Maio de 68…

Sim. É uma pessoa que sempre evoluiu com o seu tempo e que não ficou estagnada numa época.

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