Acesso ao principal conteúdo
Convidado

Médio Oriente: "temos da parte da comunidade internacional dois pesos e duas medidas"

Publicado a:

Neste que é o 19° dia de deflagração no Médio Oriente, Israel continua a bombardear Gaza onde a situação humanitária suscita a preocupação. A Agência das Nações Unidas para os Refugiados disse que poderá ter que cessar as suas actividades devido à falta de combustível na Faixa de Gaza. A ajuda internacional que começa a chegar ao território palestiniano representa apenas "uma gota num oceano de necessidades", lançou ainda ontem o secretário-geral da ONU.

O Presidente francês Emmanuel Macron à chegada em Amman, na Jordânia, na noite do 24 de Outubro de 2023.
O Presidente francês Emmanuel Macron à chegada em Amman, na Jordânia, na noite do 24 de Outubro de 2023. AFP - CHRISTOPHE ENA
Publicidade

No terreno político, aumenta o mal-estar entre António Guterres e Israel que reclamou ontem a sua demissão por este último ter declarado que o ataque massivo do Hamas no passado dia 7 de Outubro "não surgiu do nada".

Uma polémica perante a qual o secretário-geral da ONU deu hoje conta da sua incompreensão. Ao declarar-se "chocado" com a "representação tendenciosa" das suas afirmações sobre o Hamas, António Guterres disse não ter justificado os ataques do movimento armado palestiniano.

Paralelamente, o Presidente francês Emmanuel Macron prosseguiu esta quarta-feira a sua digressão pelo Médio Oriente. Depois de ter estado ontem com as autoridades israelitas e palestinianas, o chefe de Estado francês avistou-se esta manhã com o rei da Jordânia antes de viajar rumo ao Egipto para conversações com o Presidente al-Sissi.

Para além de anunciar hoje o envio de material médico para Gaza, o chefe de Estado francês também reforçou a necessidade de se reactivar o diálogo israelo-palestiniano com vista a alcançar uma solução com dois Estados.

Também no âmbito desta digressão, Emmanuel Macron propôs ontem que seja formada uma coligação internacional contra o Hamas, tal como no passado se lançou uma coligação contra o Estado Islâmico. Uma abordagem que não é a mais pertinente do ponto de vista de João Henriques, vice-presidente do observatório do Mundo Islâmico da Universidade Autónoma de Lisboa.

RFI: Emmanuel Macron propôs ontem a formação de uma coligação internacional contra o Hamas? O que pode dizer sobre esta iniciativa?

João Henriques: De facto, o Presidente Macron pede que se evite o alargamento do conflito e é seu entendimento que esse alargamento pode ser travado com uma nova coligação internacional que possa combater os grupos terroristas. Mas também aqui me parece que houve algum exagero por parte de Macron quando, no seu propósito de manifestar internacionalmente o seu apoio às teses israelitas, está a pôr combustível na fogueira. Esta não me parece ser a maneira de resolver o problema. Propõe a coligação internacional para combater o terrorismo -e isso é legítimo que assim seja- todavia, ele está a esquecer sempre aquele elemento, aquele factor decisivo que é a população civil, tanto do lado dos palestinianos como do lado de Israel, naturalmente porque os terroristas não vão ficar indiferentes a esta agressão israelita e vão formar uma frente comum e que não têm qualquer tipo de problema de morrerem porque a dinâmica dos grupo jihadistas é mesmo essa. Eles consideram-se mártires e, por isso mesmo, têm uma actuação que tem um destino final que vai ao encontro da sua ideologia religiosa.

RFI: Depois de ter estado com o Primeiro-Ministro israelita, Emmanuel Macron esteve também com o Presidente da Alta Autoridade Palestiniana. Até que ponto é que aquilo que tem para dizer é ainda audível do lado palestiniano?

João Henriques: Do lado palestiniano, o Presidente da Autoridade Palestiniana tem estado um pouco apagado nesta confrontação. Ele, de resto, é conhecido por alguma incapacidade política em promover a paz. Também não tem sido ouvido nas instâncias internacionais, mas aquilo que o Presidente Macron faz ao falar com Abbas é tão simplesmente dizer que está atento aos dois lados, mas naturalmente que o lado privilegiado está a ser o governo israelita.

RFI: Hoje o Presidente francês com as autoridades da Jordânia mas também do Egipto. O que se pode esperar desta visita de Macron nestes dois países?

João Henriques: Tanto a Jordânia como o Egipto -especialmente a Jordânia- têm uma história de alguma dificuldade que aconteceu neste conflito israelo-palestiniano. Na última incursão israelita, deslocaram-se para a Jordânia 300 mil palestinianos, criaram as suas famílias e lá ficaram. Portanto, a Jordânia tem uma má experiência. Por outro lado, o Presidente al-Sissi também não vê com grande simpatia este deslocamento populacional para o sul, para o Egipto, porque entende que isso é uma maneira de criar alguma instabilidade de natureza social e eles também não têm condições para receber tantas centenas de milhares de refugiados, até sob o ponto de vista securitário para eles também. Eles querem, tanto o rei da Jordânia como o Presidente egípcio, é que haja contenção por parte de Israel e eles estão naturalmente interessados em que este conflito seja resolvido pela via da diplomacia, por um acordo, e mais à distância, aquilo que se pretende e os próprios palestinianos querem isso -não é caso do Hamas que não quer isso, o Hamas só descansa quando um dia verificar que o Estado de Israel e o povo judaico é completamente dizimado, o mesmo acontece também por parte de Telavive que aparentemente só descansa quando houver uma limpeza étnica do povo palestiniano- portanto, tanto o rei da Jordânia como o Presidente egípcio, aquilo que eles pretendem é que no futuro imediato se retomem as negociações para a efectiva criação de dois Estados.

RFI: Os Estados Unidos, desde o começo desta nova crise, têm sido o apoio incondicional de Israel, no entanto começam a aparecer algumas fissuras nesse apoio. Ao mesmo tempo que o Presidente americano diz que efectivamente Israel tem o direito de se defender contra o Hamas, também tem lançado apelos para que haja uma trégua humanitária.

João Henriques: Sim, mas a trégua humanitária não é aceite por parte das autoridades israelitas e tem havido alguma timidez por parte do Presidente americano nos ataques que faz a Netanyahu e ao seu elenco governativo. Por outro lado, os Estados unidos estão a dividir-se em duas guerras para já: estão com a invasão russa na Ucrânia, com agora com este problema no Médio Oriente, têm também outro problema para resolver, que é o caso de Taiwan. Portanto, aos Estados Unidos, aquilo que interessa é que todos estes conflitos tenham o seu termo o mais breve possível. Não vai acontecer isso. O problema da Ucrânia, o problema do Médio Oriente, o problema da Ásia-Pacífico, vai continuar pelo tempo, e não é -com toda a certeza- neste consulado do Presidente Biden que o problema vai ser resolvido. E no caso de Donald Trump vencer as eleições de Novembro de 2024, esta configuração mundial vai sofrer enormísimas alterações.

RFI: Relativamente, desta vez, ao posicionamento que tem sido sustentado pela ONU e nomeadamente pelo seu secretário-geral, está a haver alguma tensão neste momento entre Guterres e Israel por este último apelar ao cessar-fogo humanitário e ter dito que aquilo que aconteceu no dia 7 de Outubro "não veio do nada".

João Henriques: Objectivamente, muitos analistas defendem isso também. Eu pessoalmente defendo que sim, isto não acontece por obra e graça. Isto acontece porque é uma reacção à ocupação do território palestiniano, e daí ressalta o aspecto mais gritante que são os colonatos. Nesta altura, há meio milhão de israelitas a viver nos colonatos, a viverem em território palestiniano ocupado por Israel. Talvez o secretário-geral das Nações Unidas António Guterres pudesse ser menos mordaz, mas objectivamente ele tem razão quando diz que "estes ataques não vêm do nada". Reconhece no entanto que Israel tem o direito imperativo de se defender, mas aquilo que está a acontecer, mais parece um acto de vingança do que propriamente uma reacção militar porque aquilo que está a acontecer é que a população palestiniana está a ser dizimada. A relação de vítimas da Palestina é exponencialmente maior do que as vítimas do lado israelita.

RFI: Relativamente à situação humanitária, António Guterres tem vincado que é preciso deixar entrar mais facilmente a ajuda humanitária e, sobretudo, fornecer combustível aos palestinianos para eles poderem fazer funcionar os seus hospitais, Israel tem insistido que não. O que é que isto pode dar no final, se se continuar nesta situação em que não há combustível na Faixa de Gaza?

João Henriques: Israel fundamenta essa proibição de fornecimento de combustível porque vai beneficiar as posições radicais, as posições terroristas, e vai dotar os grupos a começar logo pelo Hamas. Mas isto é a retórica oficial. No fundo, aquilo que está a acontecer vai ao encontro de algo que referi há momentos. Isto mais parece ser uma consolidação de forças que tem como propósito final a limpeza étnica do povo palestiniano porque, de facto, se os hospitais não tiverem o combustível para manterem a sua actividade, o povo palestiniano naturalmente vai ser dizimado e não há apoio possível para que aquelas vidas sejam salvas.

RFI: Que perspectivas, a seu ver, se apresentam neste momento? Julga que isto pode alastrar dado que tem havido tanto trocas de tiros com o Líbano como também com a Síria?

João Henriques: Israel já ameaçou o Líbano que se continuar a ser atacado na sua fronteira norte, vai invadir o território libanês uma vez mais e vai desmantelar todo o Líbano. Naturalmente que isto é uma retórica de violência que é típica dos governos israelitas, em particular este que é dominado por uma facção ultra-ortodoxa que interessou e interessa ao Primeiro-ministro Netanyahu, sem nos esquecermos que ele está envolvido em conflitos de natureza judicial. Agora, já é o meu lado optimista, aquilo que eu desejaria -e acredito que seja esse o caminho a seguir- é que a intervenção da comunidade internacional está a ser cada vez mais alargada e mais incisiva no sentido de persuadir os líderes israelitas a enveredarem pelo caminho das conversações. Não haverá uma pausa humanitária. Aquilo que se pretende é que haja o fim deste conflito, embora ele vá perdurar por muito tempo, mas no ambiente em que se está agora, seja reconstruída a Faixa de Gaza, também a Cisjordânia, que os colonatos sejam eliminados, que os israelitas que estão na Cisjordânia regressem a Israel porque é a terra deles e que a comunidade internacional agora se vire para a reconstrução da Palestina, tal e qual pretende fazer com a Ucrânia. Não pode haver dois pesos e duas medidas. Se os Estados Unidos e parte da comunidade internacional condenam a Rússia porque está a invadir um território que não é o seu, então porque não apoiam da mesma maneira o povo palestiniano que igualmente está a ser invadido por um país agressor ali ao lado? Portanto, temos aqui de parte da comunidade internacional dois pesos e duas medidas para resolverem conflitos que têm muitas semelhanças em diferentes aspectos. Objectivamente, é a invasão de um país a outro que é um país soberano. O Estado da Palestina foi formalmente reconhecido em 1988, mais de 130 países reconheceram o Estado da Palestina, como de resto também reconheceram o Estado de Israel a partir de 1948. Portanto, tem que haver coerência por parte dos líderes mundiais para que este problema seja resolvido pela via da paz e não seja acicatado como está a acontecer agora. Muitas das posições são dúbias, são pouco claras por parte de alguns líderes porque também lhes convém naturalmente ter uma boa relação com Israel.

NewsletterReceba a newsletter diária RFI: noticiários, reportagens, entrevistas, análises, perfis, emissões, programas.

Acompanhe toda a actualidade internacional fazendo download da aplicação RFI

Ver os demais episódios
Página não encontrada

O conteúdo ao qual pretende aceder não existe ou já não está disponível.