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Crimes ambientais no Brasil chegam ao “Cinéma du Réel” em Paris

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O documentário “Rejeito”, do realizador brasileiro Pedro de Filippis, está em exibição, esta quarta-feira, 29 de Março, no Festival Cinéma du Réel, em Paris. O filme parte da tragédia de Brumadinho, no Brasil, quando uma barragem mineira rebentou e um tsunami de lama tóxica varreu tudo à sua passagem, matando mais de 270 pessoas e contaminando centenas de quilómetros. O documentário também conta a resistência popular face às gigantes mineradoras. 

Pedro de Filippis, Realizador. RFI, 27 de Março de 2023.
Pedro de Filippis, Realizador. RFI, 27 de Março de 2023. © Carina Branco/RFI
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RFI: “Porque decidiu ir filmar logo após a tragédia de Brumadinho?”

Pedro de Filippis, Realizador de “Rejeito”: “É algo que passa pela intuição, talvez. Foi uma reacção que tive e a câmara é a minha ferramenta de resistência também. É a forma como eu tenho actuado em Minas [Gerais], em relação à mineração, desde a minha graduação. O primeiro filme que eu fiz foi sobre questões relacionadas com a mineração. Naquele momento, eu senti que deveria estar ali para entender qual seria a minha reacção a partir daquilo porque eu gosto de ir com uma abertura, com uma escuta. Então, eu não tinha um plano em mente a não ser reagir àquilo.”

“O filme é um manifesto ecológico. Que ambição tem e até onde espera ser ouvido?”

“O máximo possível. Desde o começo, eu não quis fazer um filme que fosse sobre um desastre isolado que aconteceu no passado. Ele introduz sobre os desastres passados, mas a maior parte do filme passa-se no agora, no que está a acontecer com as barragens que não romperam, mas que ameaçam milhões de pessoas ainda. Por ser um tema tão urgente, sobre algo que pode acontecer, sobre desastres iminentes, é um filme que precisa ser falado o máximo possível.”

“No filme, há uma ambientalista que diz que estas barragens são bombas-relógio. Minas Gerais tem 354 barragens deste tipo e é o único lugar no mundo onde existem centenas de barragens de rejeitos de mineração com milhões de pessoas abaixo delas. O filme pode ajudar a mudar alguma coisa?”

“Eu acho que sim porque senão eu não o faria. Agora, os caminhos são sempre tortuosos. Eu sou um fã do caos e acho que são movimentos imprevisíveis que podem causar alguma mudança. E eu actuo com essa crença.”

“Algumas pessoas retratadas no filme passam o tempo com medo e a vigiar, como João Baptista Carlos, morador de uma casa que seria a primeira a ser atingida em caso de ruptura. Numa reunião com responsáveis da mineradora, ele diz: ‘Estamos na rota da morte (…) Somos reféns do medo e figurantes de um filme de terror.’ Estas barragens existem há décadas e são controladas por gigantes económicas. O que pode a população local neste combate de David contra Golias?”

“Eu diria que muito pouco. A pressão popular é importante, mas a tomada de decisão não é algo restrito ao Brasil. Eu participei em algumas discussões. Existe um encontro que acontece a cada dois anos para discutir estratégias de mineração na América Latina inteira. São 12 países que se encontram e é impressionante como a gente vê estratégias comuns entre essas empresas e algo que identificámos é que as pessoas não têm direito de dizer não. Isso não é um poder que se dá ao povo. O direito de dizer ‘Não queremos mineração’ ou ‘Não queremos que seja assim’ não está na mão dessas pessoas, infelizmente. Então, simplesmente não tem recurso para isso, mas o recurso torna-se a pressão popular.”

“O filme também denuncia a expulsão progressiva dos moradores precisamente com o argumento apresentado pelas mineradoras de que há riscos iminentes de ruptura. A ambientalista fala em ‘terrorismo de barragem’… Porquê?”

“Terrorismo de barragem, isso mesmo. O terrorismo já é um terceiro capítulo do filme, seria o terceiro acto, que abre uma janela a uma questão que tem sido muito omitida no Brasil também por parte dos ‘media’, porque não ousam falar sobre o terrorismo de barragem que basicamente é: hoje a mineração aproveita-se dos rompimentos passados e usa possíveis rompimentos para o esvaziamento de território de interesse minerário. É uma estratégia de despossessão para acumulação (o termo académico que se tem usado). E não é nada de novo. A despossessão é praticada pelo capitalismo em vários lugares e não é particular do Brasil que isso esteja acontecendo.”

“E as autoridades? Numa altura em que tanto se fala em ecologia, o que é que fazem as autoridades?”

“Se a gente fala em governo, o governo do Estado é extremamente conivente até porque tem grandes interesses que essas multinacionais continuem operando do jeito que operam.”

“Eu demorei algum tempo até perceber as imagens do genérico que vão aparecendo ao longo do filme. Parecem belas pinturas abstractas de uma paisagem monumental, com uma tinta muito espessa, em tons pastéis… Quis brincar com a percepção do espectador até ele perceber que afinal aquilo não tem nada de abstracto e essa paisagem são as barragens que ameaçam ceder perante minúsculas comunidades indefesas?”

“Isso. Essas imagens foram inspiradas 100% no trabalho da Júlia Pontes, que é uma fotógrafa também de Minas Gerais. Ela faz fotografias aéreas já há alguns anos sobre as barragens. Quando entrei em contacto com ela, a gente trabalhou junto e eu entendi que aquilo tinha que estar no filme. Acho interessante o jogo que ela faz: num primeiro momento, você acha que é lindo, você acha uma pintura abstracta e quando se entende o contexto em que ela está inserida, as pessoas sentem uma certa culpa por terem achado aquilo bonito em primeira instância. Eu acho isso interessante: como é que algo tão desastroso pode passar pelo belo também.”

“Mas há outras imagens. As imagens de Brumadinho, que filmou ou foi buscar aos arquivos, são impressionantes. Desde o ‘slow motion’ do acidente quando a terra desabou, ao homem a acenar em cima de uma ponte que também desabou, à vaca coberta de lama vermelha... Como é que seleccionou as imagens?”

“O filme aborda os ‘media’ como uma personagem também. Usar imagens dos ‘media’ dentro de um filme que critica os ‘media’ para mim era uma questão. Talvez tenha sido a maior dificuldade durante a montagem do filme. As imagens que a gente usou, a gente pensou numa forma de ressignificar. Por mais que elas sejam imagens que foram produzidas para o fim mediático, a gente retrabalhou no sentido de recontextualizar aquilo, principalmente na camada sonora.

Eu sempre quis prezar imagens que não abusavam de seres humanos ou que repetissem aquelas imagens - em respeito aos atingidos - porque foram imagens que foram abusadas também e que estiveram sendo impingidas no dia-a-dia. A gente viu aquelas imagens repetidamente mas, ao mesmo tempo, eu sei que existe uma necessidade de se contar a história. Foram pesos que a gente teve que equilibrar nessa balança ética.”

“Nessa balança ética, há um plano particularmente violento: um camião das obras a perseguir dois cavalos numa estrada de lama onde antes havia floresta… O que significa este plano e porque é que o escolheu para o momento-chave do filme?”

“Esse plano, para mim, resume tudo o que o filme entregou no final, que é o terrorismo de barragem. Aquilo foi completamente inesperado. Como vários planos do filme, eu filmo e algo é entregue para mim. Isso acontece, vê-se durante o filme inteiro. Eu recebi esses presentes, de alguma forma, por estar no lugar certo, na hora certa. Quando isso aconteceu, eu entendi que esses cavalos eram as pessoas que a gente tinha acabado de ver e a mineração perseguindo e expulsando a única manifestação de vida que se tem dentro de uma cava. Então, isso ficou bem literal com a cena que fechou a história.”

“Uma das primeiras perguntas do filme, feita por um jornalista a um responsável da mineradora Vale, foi como é que a mineradora deixou acontecer uma segunda ruptura monumental, depois de já ter acontecido a tragédia de Mariana. Encontrou uma resposta? Tem a certeza que vai haver novos acidentes ou tragédias? (Acidente não, porque acidente é uma palavra que a ambientalista contesta justamente por não ter sido um acidente.)”

“Acidente foi uma palavra-chave que a empresa escolheu para minimizar o impacto. Há algo também que a Maria Teresa fala e que eu gosto muito, vou citar aqui: ela fala que ‘é um é um desastre em curso’. O estado que a gente vive de pós-colónia em Minas Gerais, desde sempre, é um desastre em curso. O problema de se ter destaque para esses rompimentos que têm acontecido é que nós acabamos por isolar, como se aquilo fosse algo que acontece de extraordinário, mas não tem nada de extraordinário. A gente entende muito bem porque é que essas barragens romperam. Isso é uma negligência do Estado, uma negligência da empresa, é mais do que esperado que isso aconteça. Então, é mais do que esperado que vai acontecer de novo.  É bem provável.”

“O que significa, para si, trazer este filme a Paris e mostrá-lo num dos festivais de cinema documental mais prestigiados da Europa?”

“É incrível. Esta é a minha primeira longa-metragem e ter essa oportunidade de trazer uma forma de arte - é por onde eu me consigo expressar naturalmente - e estar conectada com uma denúncia tão importante... Para mim, é incrível ser porta-voz disso. Tomara que que isso tenha impactos - porque eu sei que vai ter - no sentido de trazer alguma resposta para a situação política que a gente está a viver hoje em dia.”

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