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#Cinéma du Réel

“Inevitabilidade” dos incêndios em Portugal retratada em filme

O documentário “Cinzas e Nuvens”, da cineasta e artista visual belga Margaux Dauby, esboça a ameaça silenciosa dos incêndios em Portugal. Em poucos minutos e sem diálogos, o filme faz o retrato de várias mulheres que passam horas a olhar para uma floresta, a partir de uma torre de vigia que é também um espaço de espera, de solidão e de contemplação. “Cinzas e Nuvens” está em competição no Festival do Documentário Cinéma du Réel, que decorre de 24 de Março a 2 de Abril, em Paris.

"Cinzas e Nuvens", de Margaux Dauby.
"Cinzas e Nuvens", de Margaux Dauby. © Margaux Dauby
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RFI: O que conta o filme “Cinzas e Nuvens”?

Margaux Dauby, Cineasta: Tentei aproximar-me da sensação que descobri quando passei lá uma tarde, numa torre de vigia, com uma pessoa que exercia esse trabalho. Queria aproximar-me do tempo que passa, da solidão da torre, da contemplação da paisagem, da relação com os incêndios latentes ou potenciais, portanto, até aproximar-me de uma sensação.

Porque é que decidiu fazer um filme sobre os incêndios florestais em Portugal?

Para mim, tem a ver com a situação actual do mundo, que não vai bem a nível ecológico. Os incêndios são um dos sintomas do problema ecológico que o nosso mundo atravessa agora. E, depois, venho de um país muito húmido, a Bélgica, e os incêndios não são propriamente uma coisa problemática para nós. Então, alguma coisa chamava a minha curiosidade: saber como é que se sente essa questão dos incêndios num país que encontra esse problema durante o Verão.

Também me queria aproximar de uma profissão que não tem a ver com computadores, que é uma profissão mais ligada ao território, humana e ligada ao território, e mais concreta, de certa forma. Tenho a sensação que hoje em dia estamos muito atrás dos ecrãs e dos computadores e que há uma ligação mais directa com o mundo que está a desaparecer ou que está a mudar. Eu queria passar tempo com pessoas que ainda têm essa conexão forte com o real não mediatizado.

É um documentário filmado por uma mulher que filma mulheres sobre um problema de urgência ecológica. Este é um filme também ecofeminista?

Eu não sou muito forte com conceitos teóricos, mas, sim, interessava-me a dimensão de serem só mulheres por uma razão inicialmente muito simples. Eu descobri as torres de vigia quando estava a fazer uma volta de bicicleta sozinha em Portugal e, no restaurante onde eu parei, havia três homens que começaram a ser muito desagradáveis comigo. Fugi o mais rapidamente que podia antes de eles terem acabado de almoçar e refugiei-me numa torre de vigia. Bati à porta e uma senhora abriu-me e passei a tarde com ela - o que era ilegal, na verdade, porque ela não podia abrir a porta de ninguém.

Então, pensei que podia haver um filme bonito, passando tempo com mulheres e como eu sou também uma mulher, pensava que era mais simples inicialmente passar tardes com mulheres e não com um homem sozinho numa torre.

Depois, vê-se pouco no cinema mulheres que estão lá sem estar à espera de um homem ou de crianças ou de uma coisa. Mulheres que existem apenas. Eu pensei que havia alguma coisa para fazer lá.

O filme é uma curta-metragem, como um fósforo que se acende e que se apaga pouco depois. Porquê este formato?

Não recebemos dinheiro para o filme, portanto, tivemos que fazê-lo com os nossos recursos e eu tinha umas bobinas de película que usei para o filme. Uma das questões determinantes para a duração do filme era o material de que dispúnhamos e o tempo que podíamos passar nas torres também foi limitado. Isso reduzia também o tempo de observação e o tempo da filmagem. Depois, não sei, eu acho que estou mais à vontade com um formato mais curto, por enquanto é onde eu me sinto à vontade.

Fala sobre os incêndios florestais a partir de uma torre de vigia. Parece que nada se passa, que a espera é constante. Há grandes planos de olhos a vigiar… A ideia é mostrar que por mais que se esteja atento, não há quase nada a fazer contra a quase inevitabilidade dos fogos ou há alguma esperança?

O filme começa com uma citação da Maria Gabriela Llansol que é uma escritora que viveu entre a Bélgica e Portugal – o que também ressoa com a minha vida hoje em dia. Ela disse: ‘Quando se olha a cumeada das serras, insinua-se-me uma pergunta e, simultaneamente, tenho um desejo. E se nada existisse?’ Eu acho que comecei o filme com essa frase porque remete para um certo nihilismo. Em francês é ‘à quoi bon?’, ou seja, ‘para quê fazer esforços’ se há essa inevitabilidade?

Ao mesmo tempo, recuso-me a cair neste nihilismo e acho que mesmo se a casa for perdida, o que interessa é o esforço para tentar que não o seja. Então, mesmo que o planeta esteja condenado, não podemos baixar os braços, temos que lutar por ele. Sim, é isso que que eu tentei fazer com o filme, portanto, evocar essa inevitabilidade dos incêndios e das catástrofes naturais e, ao mesmo tempo, realmente é para uma necessidade de fazer alguma coisa apesar de tudo.Tentar, pelo menos.

Apesar da inevitabilidade dos problemas e das catástrofes naturais, eu acho que temos que tentar salvar o planeta e fazer o nosso melhor e não cair num nihilismo depressivo ou ansioso, no qual às vezes caio. Por isso, se faço filmes é para tentar não cair nisso. Se fui observar essas mulheres era também para aprender sobre elas. Como é que elas que estão nas torres privilegiadas para observar a natureza que queima, como é que elas lidam com isso? Obviamente, estão cheias de sensibilidade para a natureza e a paisagem e obviamente elas também são percorridas por essas questões dos problemas que são bem maiores do que nós a nível individual, mas como é que elas conseguem manter uma certa serenidade ao longo do Verão, ao longo das horas que passam. Foi isso que quis aprender com elas passando tempo.

Apesar de falar sobre os fogos, o filme centra-se nas mulheres que são as vigias.Ainda que haja sons da natureza, o silêncio é praticamente omnipresente, assim como a solidão, a repetição infinita dos mesmos gestos. Este é também um filme sobre a solidão ou precisamente por ser um filme “mudo” é um filme que ainda ecoa mais por ser uma coisa mais contemplativa e nos fazer despertar para a contemplação quando já não sabemos contemplar?

Sim, quando fiz o filme era para me aproximar dessas mulheres e para perceber através delas como é que se pode lidar com a solidão. Com a solidão total porque são oito horas que elas passam numa torre sozinhas no meio de nada, no meio do ar, e em flamengo temos uma expressão que diz que observar dá-nos entendimento interior. Tentei aproximar-me das paisagens que elas contemplam e também das paisagens internas com as quais elas estão o dia todo. Acho que pensei no estado mental - não necessariamente delas, mas de toda a gente - como uma paisagem ou um mar ou uma planície. Queria tentar refletir sobre a paisagem exterior e a paisagem interior, através do tempo, isso desenrolando-se no tempo e jogando ou interagindo com o som para criar ecos entre o interior, o exterior…

Nesta busca da paisagem interior, a aparente calma da natureza e a aparente calma destas mulheres poderá também indiciar que tudo é extremamente frágil e tudo pode num instante desfazer-se em cinzas? É também esta a mensagem estética e ética do filme?

Eu não sei se há uma mensagem do filme. O que me interessa no cinema é ajudar a sentir coisas, é aproximar-me de sensações. É, por isso, que me recuso, de certa forma, a elaborar estruturas narrativas. Depois, a partir das sensações e das imagens e das propostas formais, eu deixo muito espaço para o espectador poder também apropriar-se o conteúdo e ver com o que é que ele sai da sala de cinema.

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