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Cabo Delgado um ano depois da chegada das tropas estrangeiras

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Fez este mês um ano que chegaram as tropas ruandesas a Cabo Delgado, no norte de Moçambique, sendo seguidas algumas semanas depois pelas forças regionais da SADC para apoiar os militares moçambicanos no combate ao terrorismo. Segundo dados oficiais, desde o começo dos ataques em 2017, a violência provocou cerca de 4 mil mortos e 800 mil deslocados internos.

João Feijó, investigador e coordenador do Conselho Técnico do Observatório do Meio Rural em Maputo.
João Feijó, investigador e coordenador do Conselho Técnico do Observatório do Meio Rural em Maputo. © Liliana Henriques / RFI
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Para além do impacto humano, a violência levou à paralisação de algumas actividades económicas, nomeadamente a construção da plataforma do grupo francês Total para a liquefacção de gás na zona de Palma, onde em Março de 2021 se deu um dos principais ataques perpetrados pelos jihadistas em cabo delgado.

A violência gerou mais pobreza que gerou, por sua vez, mais violência. Este é o ciclo vicioso descrito por João Feijó, investigador e coordenador do Conselho Técnico do Observatório do Meio Rural em Maputo, que segue de perto a situação de Cabo Delgado. João Feijó refere que com a chegada das tropas estrangeiras há melhorias sensíveis desde há um ano mas considera, ainda assim, que não há mudanças significativas no cenário vivenciado no extremo norte do país.

RFI: Qual é avaliação global que faz da situação prevalecente neste momento em Cabo Delgado?

João Feijó: Não há assim mudanças significativas no cenário. O que acontece é que desde a intervenção ruandesa, o grupo insurgente mudou de estratégia, escondeu-se nas matas mais a sul de Macomia de deixou de fazer ataques de grande envergadura como aqueles que houve em Palma ou em Mocímboa da Praia (no extremo norte). Dividiram-se em pequenos grupos e começaram a atacar mais alvos dispersos, visando populações isoladas. Foram atacar mais a sul, tentaram abrir uma frente no Niassa, não conseguiram. Agora, mais recentemente, entraram por Ancuabe (a cerca de 100 km a oeste de Pemba, capital provincial), onde nunca tinha havido ataques, conseguiram descer para Chiúre (mais a sul na província) e efectuaram um ataque simbólico em Nampula (na província limítrofe com o mesmo nome) e regressaram. Portanto, já não têm a capacidade que tiveram há um ano atrás, sobretudo quando quando atacaram Palma. Dispersam-se e atacam em pequenas unidades. Houve algumas operações ofensivas da parte do governo moçambicano juntamente com as tropas aliadas que foram noticiadas na televisão, nomeadamente quando tomaram a base de Catupa (a norte da zona natural das Quirimbas), uma base onde estavam supostamente os líderes a insurgência, foram apresentadas algumas pessoas presas, algum material apreendido, mas não sabemos como é que se procedeu, se realmente foi ocupação ou se já tinham abandonado a base. Não se sabe se houve baixas ou não. Portanto, a verdade é que a situação não muda, é uma guerra de de guerrilha. Eles continuam dispersos nas matas a atacar aldeias isoladas com menos frequência do que faziam, mas sem criarem condições estruturais de segurança para as pessoas poderem regressar.

RFI: Ainda recentemente, a SADC fez uma avaliação positiva da presença das suas tropas em Moçambique. De modo geral, a presença dessas tropas e a presença das tropas ruandesas poderá ter produzido uma melhoria nem que seja ínfima na situação em Cabo Delgado?

João Feijó: Não há dúvida de que a situação está melhor do que estava em Abril de 2021. Hoje a população de Palma está mais segura, regressa-se a Mocímboa da Praia, mesmo à vila sede, ainda que muito timidamente. Na zona oeste de Mocímboa da Praia, nomeadamente em Diaca, já começam também a regressar pessoas, na vila sede de Macomia, também regressam pessoas. Já há condições de assistência alimentar às populações que estão nessas zonas, há condições de assistência humanitária, de saúde. Então, há melhorias, já é possível ocupar e administrar territórios que dantes eram inalcançáveis. É preciso ver que em Abril do ano passado, grande parte do território não era sequer administrado e ocupado pelas forças moçambicanas. Hoje a situação continua ainda longe do desejável porque os funcionários públicos não têm ainda condições para regressarem em muitas áreas. Continua a não haver escolas a funcionar, continua sem haver serviços públicos, continua a haver sobretudo a presença de militares. O Estado faz-se sentir sobretudo pela presença do exército. É um Estado militar, com muitas tropas moçambicanas e estrangeiras. A situação de segurança melhorou mas está longe ainda ser aquela que vai proporcionar um regresso massivo das populações e, depois, investimento em condições para o desenvolvimento daquela população. É uma guerra de guerrilha, é uma guerra de paciência. Aquelas matas são densas, há muitas zonas para as pessoas se esconderem e há aldeias isoladas no meio das matas densas que criam as condições ideais para uma guerra de guerrilha porque os guerrilheiros vão lá, atacam, queimam, destroem, pilham, roubam, raptam e vão reforçando as suas fileiras com jovens adolescentes raptados, raptam mulheres para depois tornarem-se guerrilheiras e levam mantimentos. Portanto, reproduz-se todo o ciclo vicioso da violência, não recupera economicamente, não diminui a pobreza, pelo contrário. Aumenta a violência e aumenta a possibilidade de recrutamento de pessoas inclusivamente de forma voluntária, porque não têm outra alternativa para conseguir comida ou porque querem vingar-se de situações de injustiça e de exclusão social profunda que se vive ali.

RFI: Pode-se falar de deslocação da violência em Cabo Delgado?

João Feijó: Sim, sem dúvida. Perante uma confrontação perante um inimigo mais poderoso, em vez de o enfrentar, a táctica do guerrilheiro consiste em dividir-se em grupos e ir atacar na retaguarda, onde o inimigo não tem capacidade de se defender. Então é nestas aldeias isoladas mais a sul que são apanhadas de surpresa onde este grupo consegue encontrar um sítio onde se pode reorganizar, encontrar logística para se alimentar, raptar outras pessoas e confundir o adversário. Ancuabe (que foi atacada no passado mês de Junho) foi mediático por vários motivos, porque tem lá várias empresas de exploração de recursos naturais, de pedras preciosas, de grafite. Dá acesso particularmente a Montepuez Ruby Mining que é uma empresa multinacional que extrai rubis. Portanto, é uma empresa que simbolicamente tem um peso muito importante ali na província porque há um conflito antigo entre essa empresa e os garimpeiros. Essa empresa é um dos grandes contribuintes fiscais em Cabo Delgado. Então, eles (os insurgentes) estão ali à porta do distrito de Montepuez, estão à porta das minas de Namanhumbire, que são zonas com matas densas, zonas onde os insurgentes poderão ter condições para se esconderem e até capitalizarem sobre o descontentamento dos jovens locais impedidos de fazerem garimpo, mobilizando até jovens para a actividade de garimpo para financiar a guerrilha. Há aqui todo um conjunto de preocupações porque é também uma zona socialmente tensa, com conflitos que já vêm de média duração e que estão longe de estarem resolvidos. Depois, fica naquele eixo Pemba-Montepuez onde há uma estrada nacional que segue até ao Niassa. Portanto, é um corredor que é muito utilizado pela população de Pemba e que afecta profundamente a população da capital (provincial) e é em torno do pânico que os insurgentes jogam, provocando ataques espectaculares. Aliás nem são assim tão espectaculares, são, 6, 7, 8 pessoas que queimam uma aldeia, dão uns tiros, vão decapitar uma pessoa, pedem à esposa para levar a cabeça do marido até à aldeia seguinte para informar 'nós já estamos aqui' e depois há pessoas que na aldeia seguinte vão filmar e vão circular pelas redes sociais. Essas imagens vão depois sair na imprensa e vão provocar este pânico. é este pânico e esta comoção social que os insurgentes exploram.

RFI: Tem havido apelos das autoridades moçambicanas para que as populações regressem às suas zonas de origem e tem havido também apelos contraditórios, a dizer que talvez ainda não seja altura de regressar a casa. Há pouco, evocou precisamente o regresso de algumas populações. Há condições neste momento para isso?

João Feijó: Em algumas zonas, as pessoas estão a regressar, não propriamente as 'zonas baixas', mas a zona de Muidumbe que fica ali no planalto de Mueda (no extremo norte da província). Mesmo na 'zona baixa', há algumas pessoas que estão a regressar. Muita gente regressou à costa de Quissanga (a um pouco mais de 100 km a norte de Pemba), também para Bilibiza, bem como em Macomia (sensivelmente na mesma zona). Mas depois, temos pessoas que perante ataques estão a fugir. Há movimentos contraditórios de população. Algumas pessoas regressam, outras pessoas estão a fugir. Há pessoas que regressaram a Mocímboa da Praia, a 50 km da vila-sede que foram atacadas e agora estão deslocadas na vila-sede de Mocímboa da Praia. Há movimentos circulares, uns deixam uma parte da família, outros arriscam-se a regressar e vão plantar mandioca ou outras coisas e tentar multiplicar os rendimentos num contexto de redução do apoio do Programa Alimentar Mundial.

RFI: O ministério da Defesa de Moçambique tem apontado dificuldades no combate ao terrorismo e nomeadamente na identificação de quem financia os terroristas.

João Feijó: De facto tem, ou pelo menos não tem havido evidências claras. Não se sabe se são eles próprios que se financiam através do roubo. Grande parte dos ataques de cometem, é com armas ligeiras, nem todos têm armas de fogo. Muitos atacam com catanas, pelo menos, os últimos relatos falam disso mesmo. Por outro lado, grande parte das armas que eles usam, há evidências de que eram armas roubadas às Forças Armadas. Não está muito claro qual é o nível de ligação internacional deste grupo em relação ao Estado Islâmico. É verdade que o grupo Estado Islâmico tem reivindicado estes ataques. Não se sabe ao certo que tipo de apoio é que eles fornecem. Então, há esta incógnita.

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