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Secretário-geral da UNTG: "a comunidade internacional já abandonou a Guiné"

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A Guiné-Bissau continua a gerir as consequências da tentativa de desestabilização ocorrida no dia 1 de Fevereiro. Enquanto isso, continuam por resolver os problemas dos funcionários públicos, nomeadamente da classe docente e do sector da saúde, que têm efectuado largos meses de greve para receberem os seus salários em atraso sem conseguirem uma resposta positiva por parte dos seus interlocutores.

Júlio Mendonça, secretário-geral da UNTG
Júlio Mendonça, secretário-geral da UNTG © Liliana Henriques / RFI
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Ao esboçar um quadro pouco optimista da situação do seu país, Júlio Mendonça, secretário-geral da central sindical UNTG - União Nacional Dos Trabalhadores Da Guiné, dá conta de "elevadíssimos níveis de corrupção", considera que "os políticos não estão interessados no bem-estar do povo" e que, por outro lado, "a comunidade internacional abandonou a Guiné-Bissau".

RFI: Como avalia a situação seu país?

Júlio Mendonça: Durante um ano, fizemos greve no sentido de persuadir o executivo de mudar a forma de governar o país, priorizar a boa gestão da coisa pública e consequentemente criar condições para que o servidor público seja dignificado. Mas infelizmente isto não aconteceu. Pior do que tudo, assistimos a diferentes formas ou elevadíssimos níveis de corrupção no país. Obviamente que esse índice de corrupção também tem as suas consequências, porque o povo vive mal e entre os servidores público, ninguém vive bem. Foram agravados no ano passado os impostos, diferentes tipos de impostos que foram instituídos e taxas também que acabaram por se imiscuir com a capacidade de compra do servidor público e dos trabalhadores em geral. Houve queda no salário e consequentemente o trabalhador perdeu a capacidade de compra devido ao aumento do preço dos produtos no mercado. O governo ficou impotente, não conseguiu tão pouco reajustar os salários ou controlar o preço dos produtos no mercado. Obviamente que todo o mundo descontente. Percebemos claramente que os políticos não estão nem aí na criação do bem-estar do povo, estão mais preocupados em angariar riqueza na base da corrupção, aproveitar o erário público para os seus interesses pessoais e partidários. Quem paga por isso é o povo e o trabalhador, razão pela qual a UNTG está muito distante das querelas políticas e não tem nenhuma ligação com partidos políticos. O nosso objectivo é claro: conquistar a dignidade do trabalhador guineense.

RFI: Relativamente aos sectores que têm estado em greve nestes últimos meses, nomeadamente o sector da saúde e o sector da educação, como estão as coisas neste momento? Há diálogo?

Júlio Mendonça: Infelizmente, isto não está a acontecer. Antes de acontecer a remodelação governamental, estávamos em diálogo com o então ministro da função pública, no sentido de começarem a pôr em prática aquilo com que se comprometeram. O Presidente também se tinha comprometido connosco e tinha-nos pedido para lhe facultar todos os pontos que tínhamos submetido à ANP, para ver se a ANP tomou todos os pontos em consideração. Depois disto, não tivemos mais informação, se o Presidente constatou alguma coisa ou não. Soubemos depois que promulgou o orçamento. Infelizmente, no dia em que estávamos a reunir o secretariado para tomar uma posição, deu-se a tentativa de golpe de Estado. Mas de lá para cá, não recebemos nenhuma comunicação. Para ser realista, estes dois sectores continuam a estar na pior situação. O que está a acontecer é mais grave: perseguição aos dirigentes sindicais, aos trabalhadores no ministério da educação e também no ministério da saúde. Há transferências desenfreadas das pessoas só porque aderiram à greve. Estamos a organizar a nossa casa, estamos a preparar o nosso congresso para renovar as estruturas da central mas a partir daí, vamos organizar a nossa luta.

RFI: Como é que vivem as pessoas após vários meses de greve?

Júlio Mendonça: Todo o mundo ficou numa incerteza absoluta porque não há nenhuma luz no fundo do túnel. O funcionário público não tem nenhuma esperança relativamente a este governo porque este governo, infelizmente, não está para resolver os problemas sociais. Não obstante termo feito esta luta, nada mudou até agora. Todo o mundo ficou à espera, mas o governo remeteu-se ao silêncio. Vamos organizar a nossa casa e depois voltar à luta.

RFI: A covid-19 está cá há dois anos. Qual foi o impacto da covid no meio disto tudo?

Júlio Mendonça: Infelizmente, até parece que não temos covid na Guiné porque os principais violadores das medidas impostas pelo governo são os próprios membros do governo. Dizem que há covid, o governo decreta medidas restritivas de vários direitos mas são os primeiros a violar essas medidas. Além do mais, no período da covid, a Guiné-Bissau é se calhar o único país do mundo em que todos ficaram dificuldades financeiras mas em que se aumentaram os impostos, contrariamente ao que aconteceu no Senegal. O Presidente (do Senegal) simplesmente cortou alguns impostos para poder acudir às demandas feitas pela área social. Na Guiné, não, é ao contrário. Aumentaram os subsídios para os representantes da ordem e soberania, isto é mordomias para os membros do governo, e empobreceram a classe trabalhadora guineense. A Guiné-Bissau é um país atípico nesse aspecto. Somos os piores a nível mundial, com políticos que não têm noção da governação.

RFI: Relativamente às condições económicas do país, neste momento nota-se que se deposita alguma esperança no empréstimo a ser avalizado pelo FMI.

Júlio Mendonça: O FMI já fez variadíssimos empréstimos à Guiné-Bissau e isso nunca surtiu efeito a nível social. O dinheiro que não é utilizado para resolver sociais, nem para resolver os problemas fundamentais do país no que diz respeito à educação e à saúde. Esse dinheiro é desviado para compras de imóveis na Europa, construções imobiliárias na Guiné, criação de empresas fictícias... Enfim, esse dinheiro é desviado pelos governantes. Não é preciso ser 'expert' para perceber que este é um dos países mais pobres do mundo. Mas com esses biliões, como é que se aplica esse dinheiro? Então, para nós, isso não será grande novidade, não há nenhuma expectativa disso, porque a prática é a mesma, desvio, corrupção. Vão emprestar o dinheiro e fazem a gestão à maneira que quiserem. Vemos os hospitais onde não se consegue detectar alguma coisa lá porque não têm laboratório, não têm nada. Agora fizeram investimento no Hospital Simão Mendes que é o maior hospital do país. É só pintura. Isso não interessa ninguém. Mas não foram criadas condições para que os médicos prestem um serviço de melhor qualidade, não dignificaram os médicos. Não foram capacitados, não têm material de diagnóstico, não têm nada. Então estão a fazer o quê? É uma brincadeira apenas. Fizeram tudo para manter o povo na escuridão. Foi negado ao povo a escola porque não criaram condições para que todo o mundo tenha acesso à escola. Quase 60 ou 70% da população é analfabeta. Não percebem isto. Os que tiveram oportunidade de ir à escola, muito caíram na corrupção, porque cada um luta para sobreviver. Enquanto representantes dos trabalhadores, só podemos lamentar, porque aquele dinheiro não será utilizado devidamente. É evidente que o povo guineense anda agora a pedir socorro mas percebemos que a comunidade internacional já abandonou a Guiné, porque há um silêncio absoluto.

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