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Crise no Burkina Faso resulta do “cansaço” face ao avanço jihadista

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O Presidente de Burkina Faso, Roch Marc Christian Kaboré, foi detido, esta segunda-feira, por militares, um dia depois de violentas manifestações contra o governo. Régio Conrado, do Instituto de Estudos Políticos da Universidade de Bordéus, admite que “Kaboré tem muitos inimigos” mas que a crise no país resulta do cansaço da população e do exército perante a incapacidade de travar o avanço dos grupos terroristas.

Militares junto ao quartel Guillaume Ouedraogo, em Ouagadougou, no Burkina Faso, a 24 de Janeiro de 2022.
Militares junto ao quartel Guillaume Ouedraogo, em Ouagadougou, no Burkina Faso, a 24 de Janeiro de 2022. © AFP/Olympia de Maismont
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RFI : A confirmar-se o golpe militar no Burkina Faso, o que representa?

Régio Conrado, Sciences-Po de Bordéus:Este golpe de Estado é uma consequência dos disfuncionamentos no seio do próprio exército. Nós sabemos que no dia 14 de Novembro do ano passado, houve um ataque onde morreram 57 pessoas, das quais 53 gendarmes. Isto criou certamente uma percepção de que o exército era totalmente disfuncional, que havia problemas gravíssimos relativamente à questão da logística, havia a questão da corrupção, havia também uma percepção profundamente grande no meio do exército que o poder político estava a ser incompetente, incapaz de compreender aquilo que eram as necessidades do exército. Isto levou à mudança do primeiro-ministro do Burkina Faso e a um conjunto de mudanças. Se se confirmar este golpe de Estado, estaremos certamente a dizer que uma parte do exército está a mostrar ao poder político que ele é incapaz de tomar decisões acertadas para poder evitar o avanço – sempre profundamente grande – dos movimentos terroristas dentro do Burkina Faso.

12:43

Entrevista a Régio Conrado

O presidente Roch Marc Christian Kaboré está no poder desde 2015 e foi reeleito em 2020 sob a promessa de fazer da luta anti-jihadista a sua prioridade, mas foi sendo cada vez mais contestado pela população cansada dos ataques jihadistas. Este sentimento de contestação era palpável?

Absolutamente, absolutamente. Kaboré foi eleito na base da sua promessa de que iria conseguir limitar o avanço ou eliminar os movimentos terroristas. O grande problema é que não só o poder político, com Kaboré no poder, não conseguiu limitar o avanço do movimento terrorista, mas também com este poder de Kaboré foram sendo mostrados um conjunto de problemas associados ao fornecimento de material suficientemente capaz de permitir que o exército conseguisse combater estes grupos. Quer dizer que os investimentos que foram prometidos no exército não foram feitos; também não foram feitos os processos de formação internos e modernização, profissionalização do exército; e também sabemos que a população e parte dos militares entende que há uma grandessíssima corrupção que envolve pessoas próximas de Kaboré e que tem impactos estruturais negativos no exército.

Desde 2015, Kaboré não conseguiu cumprir com aquilo que eram os desideratos pelos quais tinha sido eleito e a população está a manifestar-se a favor do golpe de Estado, está a manifestar-se ao pé das diferentes casernas para mostrar apoio a este grupo que está a levar a cabo o golpe de Estado (se se confirmar). Isto mostra que estamos numa situação em que o poder político actual está em total desconexão com aquilo que são os problemas do país, nomeadamente a questão da segurança. O governo só exerce a autoridade numa parte do Burkina Faso, que é na parte sudeste, mas toda a parte oeste e mais para o norte está totalmente sob controlo de diferentes movimentos jihadistas, o que deixa a população numa situação de profunda desconfiança em relação à capacidade de Kaboré de continuar a governar o país.

Falou nas manifestações de apoio da população ao exército. Os protestos já aconteciam há vários meses mas muitos foram proibidos e reprimidos...

Absolutamente. O ministro da Defesa e dos Antigos Combatentes do Burkina Faso, Aimé Simporé, apareceu variadas vezes a dizer que era totalmente interdita qualquer que fosse a manifestação. Obviamente que isto demonstra que o poder político e alguma parte das forças de Defesa e Segurança do Burkina Faso já estavam conscientes de que havia determinados movimentos no interior que poderiam, de facto, ter impactos negativos no exercício do poder do actual Presidente; que a interdição das diferentes manifestações populares - que muitas vezes não tinham nada que ver com golpe de Estado - eram apenas manifestações de repúdio à incompetência e incapacidade do actual governo. É uma demonstração clara que este governo chegou a um ponto de não retorno, um ponto em que mostra que não tem nenhuma capacidade para resolver os problemas candentes da sociedade nem propor soluções.

Haverá aqui a sombra do general Diendere que está detido num dos quartéis actualmente tomados pelos militares revoltosos e que era um próximo do antigo Presidente Blaise Campaoré que foi deposto em 2014 e que desde então vive na Costa do Marfim?

Neste tipo de situações de golpe de Estado, ao nível dos países da África do Oeste e, em particular, no Burkina Faso, nós sabemos que é sempre difícil determinar quem é que está por detrás de um golpe de Estado, mesmo que nós saibamos que em todo e qualquer golpe de Estado, feito sobretudo pelos militares, há determinadas figuras que têm interesse particular em estar à frente dos processos.

O general Diendere foi condenado a 20 anos de prisão por uma alegada tentativa de golpe militar em 2015...

Porque o general Diendere nunca esteve de acordo. A história dele em relação a Kaboré foi sempre uma história de total conflito e total incompreensão. Kaboré tem muitos inimigos, sobretudo inimigos que eram próximos do Blaise Campaoré e havia pessoas que estavam totalmente de acordo e apoiavam de forma próxima Blaise Campaoré mas que estão totalmente contra este actual Presidente que, não só é considerado incapaz de reconstruir o país e as Forças Armadas, mas também porque há determinados assuntos às vezes pessoais – como, por exemplo, a perda de poder, alguma perseguição ao nível dos tribunais porque nós sabemos muito bem que Kaboré foi o que pela primeira vez dentro do Burkina Faso levou algumas pessoas ao tribunal e algumas foram condenadas por contumácia. Portanto, há de facto este conflito, mas podemos dizer também que, neste momento, há outras pessoas, que não o general Diendere, que podem estar por detrás desta situação.

Nomeadamente?

Nós sabemos que, nesta altura, o que se diz é que existem determinadas patentes do Comando Geral das Forças Armadas que apoiam e algumas estão presas e são próximas do exército mas, nesta altura, não foram colocados os seus nomes a público.

Como o Mali e o Níger vizinhos, o Burkina Faso está numa espiral de violência jihadista. É também uma altura em que há uma redução de contigentes militares, nomeadamente franceses da Força Barkhane, e também da vinda de mercenários russos da Wagner. O que se pode esperar na região?

O que está a acontecer, neste momento, ao nível do Mali e do Burkina Faso - mas também da Guiné-Conacri, ainda que numa situação um pouco diferente - é que as populações dentro destes países entendem que o poder civil não está a ser capaz de resolver os problemas fundamentais dos seus respectivos países. Quer dizer que os militares nesta altura são vistos como os verdadeiros defensores da pátria, da sua integridade e da sua continuidade. Não é a primeira vez que os militares recebem o apoio popular, nos anos 60 e 70 era profundamente comum e estamos a ver um pouco a repetição. O segundo ponto fundamental é que as forças de apoio externo para indigar os diferentes problemas ligados à segurança, sobretudo do terrorismo nessa região, também não estão a funcionar.

Portanto, esta situação toda mostra que hoje é o poder militar que é considerado como capaz de exercer o poder e trazer ordem nas regiões que estão em total descontrolo. Este é o primeiro ponto. O segundo ponto é que este apoio em relação às lideranças militares que levaram os golpes de Estado no Mali e agora provavelmente no Burkina Faso pode mostrar que as populações estão profundamente cansadas do estado em que se encontra o poder civil porque os motivos que levaram ao golpe de Estado no Mali são os mesmos motivos que podem ter levado ao golpe de Estado – se se confirmar – no Burkina Faso que eram a corrupção, a incapacidade do exército, a falta de logística, a falta de atenção para com o exército, etc. É muito provável que este aspecto particular se estenda para os outros países. Sabemos que houve uma tentativa no Níger, mas foi rapidamente controlada. Nunca se sabe o que se está a tramar por debaixo desses processos todos.

Ou seja, o facto de haver golpes militares na Guiné-Conacri, no Mali, no Burkina Faso – se se confirmar-, pode ter um efeito de contágio para os outros países vizinhos?

Sem dúvida, sem dúvida. Pode ter um efeito de contágio. A opinião pública, nestes países em que houve golpe de Estado, sobretudo nas classes populares, não fez nenhuma condenação em relação aos respectivos golpes de Estado. O que quer dizer que a opinião pública em geral aprova, de forma integral, a acção destes militares. Muitos destes militares insistem sobre o discurso do patriotismo e entendem que é o momento do exército tomar as rédeas do poder para voltar à ordem e o exército é visto como patriota contra aquilo que têm sido as práticas nocivas dos poderes civis. Então, potencialmente já se podia esperar que houvesse algum tipo de contágio porque já houve a legitimação no Mali, na Guiné-Conacri e, provavelmente, agora no Burkina Faso. Mesmo se se acompanhar os medias dos países africanos desta região em particular, os que produzem a opinião pública também concordam de forma integral que o poder militar parece mais judicioso no que concerne aos problemas de segurança.

Mas em relação ao Mali, a CEDEAO impôs várias sanções aos militares no poder, nomeadamente devido ao adiamento das eleições...

A posição da CEDEAO em relação ao Mali é profundamente ambígua na medida em que sabemos que também houve um golpe constitucional na Costa do Marfim e a posição da CEDEAO foi mínima, para não dizer inexistente. Em relação ao Mali, nós sabemos que é muito mais complexo porque tem que ver com os interesses da França que estão sendo colocados em causa nesta região. Os Presidentes da Costa do Marfim e do Senegal são ambos praticamente os instrumentos ao serviço da política externa francesa naquela região. Logo que a CEDEAO tomou posições, a França – que agora dirige o Conselho da União Europeia – disse tomar um conjunto de medidas que visam punir o governo maliano. O problema não está tanto em que a junta militar tomou como decisão que as eleições sejam daqui a cinco anos. O problema fundamental é: qual é o peso que a França tem, o que é que a França esperava tirar disto.

Agora, o que vai acontecer nos outros países, nós vimos que a situação foi praticamente minimizada em relação à Guiné-Conacri porque os interesses franceses não estão totalmente colocados em causa. Em relação ao Mali, há a situação do grupo Wagner com a intervenção russa um pouco mais activa e muito provavelmente poderá também a Turquia entrar com alguma força naquele país. Isto mostra que a posição da CEDEAO não é assim tão coerente, pelo menos olhando para aquilo que são as dinâmicas internas da região.  

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