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Artes

Dança Contemporânea de Angola chega a Paris

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A Companhia de Dança Contemporânea de Angola apresenta, esta quinta-feira, na UNESCO, em Paris, o espectáculo "Isto é uma mulher?", das coreógrafas Ana Clara Guerra Marques e Irène Tassembédo. A peça é interpretada por homens que dançam e questionam o género, em mais uma criação que rejeita cristalizações de conceitos, corpos e identidades.

Ana Clara Guerra Marques, Coreógrafa angolana.
Ana Clara Guerra Marques, Coreógrafa angolana. © Carina Branco/RFI
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A coreógrafa e directora artística da Companhia de Dança Contemporânea de Angola, Ana Clara Guerra Marques, conversou com a RFI sobre a história, a evolução, as dificuldades e a resistência da companhia que cumpre 31 anos em Dezembro e que se apresenta, pela primeira vez, em França.

RFI : Quer começar por descrever-nos a peça que a Companhia de Dança Contemporânea de Angola apresenta em Paris ?

Ana Clara Guerra Marques, directora artística da Companhia de Dança Contemporânea de Angola: "A peça que nós viemos apresentar foi a última criação do CDC que é uma co-autoria entre mim e a coreógrafa Irène Tassembédo e chama-se 'Isto é uma mulher?'"

E o que é "uma mulher" para a Companhia de Dança Contemporânea de Angola?

"Esta peça não é uma peça feminista, é uma peça que pretende pôr as pessoas a pensar e a reflectir sobre algumas questões ligadas ao género, mas, também, sobre a condição da mulher. Acho que é interessante porque a companhia é masculina, são sete homens que dançam a mulher ou interpretam – não imitam, não reproduzem – interpretam."

Ser interpretada por bailarinos, homens, não é contraditório? Quem deve falar de mulheres não são as mulheres?

"Não. Nós não achamos nada disso e também achamos que mulher não se circunscreve a um aspecto físico e discutimos isso na peça. Toda a gente deve falar de toda a gente. Sobretudo, o que nos interessa aqui é a nossa condição de ser humano, ser mulher, homem ou qualquer outro género. Com tanto discurso feminista, no nosso país chegou-se a um exagero: põem mulheres porque é preciso ter mulheres independentemente da sua competência ou da sua não competência e são homens que fazem isto, que promovem, que nomeiam, que põem. Nós também não temos que estar sujeitas a esta magnanimidade masculina.

Nós devemos aceder às coisas pelo nosso mérito e não por sermos mulheres. Esta peça anda muito à volta disto. Obviamente que existem situações em que as mulheres são altamente discriminadas em algumas culturas, mas também há outros géneros que também são discriminados. Tudo isto vem acima na peça. Para quem quiser ver."

Além disso, as coreógrafas são mulheres.

"São mulheres, mas são mulheres de fibra."

Em termos de vocabulário plástico e de coreografia, como é essa dança?

"A companhia é de dança contemporânea, inclusiva. A linguagem é uma linguagem mista porque são duas linguagens, duas coreógrafas. O nosso trabalho não pretende ser uma reprodução daquilo que estamos habituados a ver como sendo a dança contemporânea que se vê sobretudo na Europa, aquela forma de movimentar. Nós trabalhamos com os nossos bailarinos que têm uma formação diferente destes bailarinos daqui, ou seja, não têm uma formação convencional -  a formação é-lhes dada dentro da companhia. E, portanto, eles têm uma forma de mover, cada um deles. Obviamente que eles têm técnica e têm aulas de técnica, etc, mas  nós investimos no lado artístico deles e a linguagem é muito feita a partir dos corpos deles, dos movimentos que eles trazem e trabalhando isso, depois, com as coisas de cada coreógrafo."

Como é que surge a apresentação na UNESCO? A Clara é membro do Conselho Internacional de Dança da UNESCO. É a partir daí que surge o convite ?

"Não. A companhia também é membro, somos os dois, mas o convite foi feito pela nossa Embaixadora de Angola na UNESCO, a doutora Ana Maria de Oliveira, que conhece o trabalho da companhia, que aprecia bastante o trabalho da companhia, que está desde o início da criação da companhia - quando a companhia foi formada, ela era ministra da Cultura. É uma pessoa que tem vindo a acompanhar o nosso trabalho e tem um grande apreço. Convidou-nos no âmbito das comemorações da Independência de Angola e do Centenário de Agostinho Neto."

Também há outra data redonda. Os 30 anos da Companhia de Dança Contemporânea de Angola. Que balanço faz?

"Em realidade, nós vamos fazer 31 anos agora em Dezembro. Foi um percurso difícil, muito sofrido e continua a ser, como se diz no livro, de grande resistência, ou seja, o nosso país talvez não esteja ainda preparado para um trabalho desta desta natureza, com estas linguagens. Mas foi, ao mesmo tempo, um percurso que marcou a dança, marcou a mudança, marcou a diferença e continua a marcar a diferença num país que é, de certa forma, conservador em relação a estas propostas mais contemporâneas da arte. Tem sido uma grande luta, mas tem sido também um desafio. Nós podemos saldar como positivo. Apesar de, repito, de um caminho completamente tortuoso, completamente difícil, muitas vezes sem lugar para ensaiar, sem possibilidades para produzir. Mas nós somos lutadores e se achamos que é preciso fazer, que é preciso modificar, que é preciso pôr Angola no caminho do progresso, no campo das artes, então é isso que nós fazemos."

Precisamente, vocês também apresentaram na Embaixada de Angola em França dois livros sobre a companhia, "Lugares Incorporados" e "Companhia de Dança Contemporânea de Angola - 30 Anos de Resistência". Olhemos para este título - "30 anos de resistência". É preciso resistir para se ter dança contemporânea em Angola ?

"É. É preciso resistir para conseguir levar um trabalho novo, propostas às quais as pessoas não estão habituadas e que, muitas vezes, são rejeitadas porque as pessoas, muitas vezes, pensam ou acham que o nosso trabalho não é suficientemente africano para representar um país africano. Ou seja, há uma certa confusão, há uma certa falta de cultura, há uma certa ignorância, uma certa falta de sensibilidade porque as pessoas, sobretudo a nível institucional, são muito progressistas em relação a outros aspectos mas, de repente, quando chega a parte das artes e, sobretudo, da dança, pensa-se que a dança angolana tem que ser exclusivamente a dança patrimonial, ou seja, nós devemos apenas mover-nos no terreno etnográfico e das danças tradicionais e populares.

Nós temos sempre que resistir. Esta palavra resistência tem também a ver com o facto de nós resistirmos a este movimento, digamos, quase contra o nosso trabalho, mas fazendo um novo, apresentando um novo. É, no fundo, um trabalho de vanguarda, se é que ainda podemos utilizar esta palavra numa altura destas, mas é neste sentido também."

É um trabalho de vanguarda, um trabalho contemporâneo, mas, ao mesmo tempo, que se inspira em danças tradicionais, em danças populares angolanas…

"Às vezes. Nós temos duas linhas de criação: por um lado, intervenção social e esta é a nossa preferência, uma companhia que intervém, é quase um trabalho político; e também temos esse trabalho baseado no nosso acervo patrimonial, não apenas nas danças, em que eu utilizo o trabalho de investigação que eu tenho feito justamente neste campo etnográfico. Nós trabalhamos nestas duas vertentes, digamos assim."

A dança inclusiva é algo fundamental no seu trabalho também.

"Sim. Angola, com as várias guerras e sucessivas guerras, tem um grande número de pessoas mutiladas e com deficiências, etc, e há alguma discriminação também em relação às pessoas portadoras de deficiências. Nós achamos que é importante mostrar que um corpo diferente pode dançar também e num país como o nosso, em que há realmente esta discriminação, a companhia tem feito um trabalho importante nesse sentido, mostrando realmente que a diferença não é um problema, não é uma limitação."

A companhia contribuiu para alterar a história da coreografia e da dança em Angola?

"Completamente, completamente. Nós trouxemos a dança contemporânea, a dança inclusiva, a utilização de espaços não convencionais. Nós trouxemos realmente novas linguagens para um panorama que tinha apenas as danças populares, as danças sociais, naturalmente, as festas, etc, e o acervo tradicional. Não havia mais nada. Mesmo da época colonial para depois da Independência, não passou nenhuma estrutura. Não havia no tempo colonial nenhuma companhia de dança em Angola, havia de teatro mas não havia de dança. Raramente éramos visitados por companhias de dança. Eu lembro-me de lá ter ido a Gulbenkian nos anos 70, eu era miúda, andava na escola de dança já.

Nós inovámos também. Trouxemos o regime de temporadas, o profissionalismo mesmo em dança porque os bailarinos são profissionais, são formados, dominam linguagens, dominam léxicos. Tudo isto foi realmente completamente inovador. Eu acho que também daí, às vezes, há algum medo de assumir este colectivo e o nosso trabalho, sim."

Porque no fundo, a companhia fundada em 1991 foi a primeira companhia profissional em Angola. E em África ?

"Foi das primeiras em África nascidas no continente. Havia, e continua a haver, muitos coreógrafos africanos que estão radicados em Paris, na Alemanha, aqui e ali, e têm as suas companhias e fazem o seu trabalho. Mas, a surgir no continente, a nossa deve ter sido a quarta ou a quinta companhia e em Angola, sim, foi a primeira e neste momento é a única companhia profissional que Angola tem. Os bailarinos vivem da sua profissão."

Conseguem sobreviver da dança?

"Sim, sim, sim. Dedicam-se, com exclusividade ao trabalho da companhia, trabalham seis, sete, oito horas por dia. Ou seja, é um trabalho profissional."

Em termos de apresentações, limitam-se a Angola ou conseguem exportar o vosso trabalho?

"Nós conseguimos fazer 'tournées'. De há uns anos para cá, nós fazemos, pelo menos, uma tournée por ano e fazemos as temporadas em Angola. É difícil fazer digressões dentro de Angola. Quando conseguimos apoios, preferimos trazer o trabalho cá fora, preferimos divulgar e internacionalizar o nosso trabalho."

Quantas peças têm no vosso repertório ao longo destes 31 anos? Quais as que mais marcaram a  companhia e, até, Angola?

"Se nós pensarmos que desde 1991 até agora fizemos, pelo menos, uma peça por ano, temos 0 peças mais ou menos. É difícil escolher. Imagina-te com vários filhos, não podes gostar mais de um do que de outros! Em relação ao público, tem graça, porque as peças mais críticas, mais agressivas, digamos assim, são as peças que marcam mais o público. Obviamente que nós somos um produto do público também. 'Palmas, por favor!' foi uma peça que marcou bastante. O 'Agora não dá! Tou a bumbar…' também porque era uma crítica cheia de humor porque essa é uma das características do nosso trabalho. 'O Homem que chorava sumo de Tomates' foi mesmo, mesmo muito forte. O 'Ceci n’est pas une porte' foi outra peça em que não havia teatros – e não há - então nós construimos uma série de caixas e encostámo-las a uma parede e os bailarinos dançaram nessa parede de caixas. Foi na altura em que prenderam 15 activistas, portanto, eles estavam confinados numas caixas, não podiam falar, não tinham espaço..."

Uma mensagem política, portanto?

"Sempre. Sempre. Eu divido, claramente, o entretenimento da arte. Já que existimos, os artistas, não temos que existir para o deleite de pessoas. Nós devemos existir para intervir, para estar presente e para dar o nosso contributo para mudar."

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