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João Carlos Silva, o “chef” que cozinha utopias em São Tomé e Príncipe

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Ficou conhecido como o apresentador do programa televisivo "Na Roça com os Tachos", mas a gastronomia é apenas uma das suas artes. João Carlos Silva é um dinamizador cultural em São Tomé e Príncipe e quer que o país seja "um entreposto de cultura" porque "a arte pode levar São Tomé e Príncipe para o mundo e trazer o mundo para São Tomé.”

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Nesta conversa, João Carlos Silva fala-nos sobre os seus principais projectos, desde a Cacau - Casa das Artes, Criação, Ambiente e Utopias, à Bienal de Arte e Cultura, passando autocarro PICA (Ponto Itinerante da Cultura e Ambiente) e a Roça São João com as suas residências artísticas e galeria de exposições, além da oficina de gastronomia e do conhecido restaurante.

RFI: O que é a Cacau?

João Carlos Silva: A Cacau é a Casa das Artes, Criação, Ambiente e Utopias.

Que utopia é esta?

É utopiar. O continente africano precisa de utopias novamente e sempre e São Tomé e Príncipe não foge à regra. Este é um projecto de um grupo de cidadãos que pensam e agem em conformidade com a sua linha de pensamento porque estão convencidos que é através da arte e da cultura que é possível fazer com que um país tão pequeno como o nosso, que foi um grande entreposto de escravos e que funcionou durante muito tempo como laboratório do Atlântico, possa, no futuro, com muita educação, formação e acção ser, o que é já, mas melhor ainda, um entreposto cultural. Como é que as artes e a cultura podem intervir, influenciar a economia real de um pequeno Estado insular como São Tomé e Príncipe.

Como é que nasceu este espaço, que dizem ser o primeiro espaço de artes de São Tomé e Príncipe?

O primeiro e talvez um dos mais interessantes espaços de toda a nossa sub-região e região africana e mesmo nos países de língua portuguesa. Esse é um ponto. O que é que nós conseguimos fazer num espaço como este, um espaço que é património nacional, embora não esteja classificado como tal? Este espaço foi a antiga oficina de manutenção das carruagens quando havia caminho-de-ferro. Ele vive, praticamente, paredes meias com a antiga estação de caminho-de-ferro. Este espaço começou por albergar a 5ª bienal de São Tomé e Príncipe e já vamos na 9ª, que reuniu aqui artistas de vários lugares do mundo, não apenas dos países lusófonos. Nós somos lusófonos por convicção. Se quiser, somos falantes da língua portuguesa, mas não nos quedamos apenas na lusofonia porque a lusofonia acaba por ser um bocadinho curta para aquilo que a gente quer fazer com o mundo.

E o que querem fazer com o mundo?

É levar São Tomé e Príncipe ao mundo e trazer o mundo a São Tomé e Príncipe, incluindo o mundo não falante de língua portuguesa. É verdade que colocamos sempre o acento tónico nos países falantes de língua portuguesa, isso é um dado adquirido, mas nós pensamos também, e esse é um pensamento novo, que se fizermos outras parcerias, se soubermos trabalhar com outras fonias do mundo, estaremos a contribuir melhor para a consolidação da própria lusofonia.

Este é o nosso pensamento. E é pensamento-acção porque nos últimos 20 anos nós formámos de várias maneiras, de várias formas, artistas, um grupo de artistas de renome internacional já, como é o caso do Kwame Sousa, René Tavares, Olavo Amado, Adilson Castro e outros que estão cá, outros que residem fora, que ganharam o mundo e ainda bem que ganharam o mundo e vêm volta e meia revisitar o seu país, recarregar as baterias todas. Isso é muito bom porque nós queremos, até com a música, o teatro e a dança fazer esse exercício de internacionalização das artes e cultura de São Tomé e Príncipe.

O que é que temos neste espaço de utopias?

Este espaço de utopias tem muitas coisas, desde logo um museu sabiamente desenhado e concebido por uma mulher que dá de nome Isaura Carvalho, que foi minha companheira durante muitos anos e que já não viu nascer o museu porque faleceu em 2017. O museu é relativamente recente, tem três anos. O ex-libris da exposição acaba por ser um filme de 1908 que conta a vida nas antigas roças, a vida económica, social das antigas roças de São Tomé e Príncipe. É um filme antigo de 1908, que coincide com a data da construção deste edifício em 1907, 1908. Para além disso, temos espaços como o auditório onde fazemos conferências, colóquios, lançamentos de livros. Nas noites de quinta-feira, há música, danças tradicionais, música ao vivo, com um buffet enorme com pratos típicos de São Tomé e Príncipe e as pessoas comem, ouvem música e dançam e divertem-se. Ou seja, nós estamos a fazer aquilo que já há algum tempo desenhámos como promoção do turismo cultural em São Tomé e Príncipe.

O espaço é muito grande...

2150 metros quadrados. Tem um auditório para 130 pessoas e tem este espaço enorme, onde nos encontramos agora, onde fizemos vários eventos durante a Bienal, que foi de 25 de Junho a 25 de Julho, e que foi um sucesso. Fizemos aqui eventos de moda, o Tchiloli Fashion. Estamos a promover uma grande campanha para que o Tchiloli seja declarado património nacional. Nós aqui, neste momento, estamos a fazer formação na área do artesanato, mas um artesanato com a identidade cultural são-tomense porque pegamos em todas as personagens que está a ver ali daquele lado - nas fotografias belíssimas da portuguesa Inês Gonçalves - e com as nossas artesãs estamos a fazer agora bonecos e bonecas de todas as personagens.

Uma escola de artesanato?

Nós cada vez mais apostamos numa escola de artes performativas e de ofícios. Já fomos mais escola de artes visuais, mas agora estamos a caminhar para estas áreas das artes performativas, uma vez que já formámos alguns artistas que também já criaram a sua própria escolinha, como é o caso do Kwame Sousa com o seu Ateliê M. É muito bom ver as coisas multiplicarem-se e os jovens tomarem iniciativas. Para além de serem famosos, também têm esta sensibilidade para poderem criar escolinhas para formar outros.

Aliás, vemos aqui obras do Ateliê M...

Temos obras do Atelier M que participou na 9ª Bienal em que, ao mesmo tempo, homenageámos também um grande artista são-tomense, Eduardo Malé, cujas peças ainda estão cá, há muita coisa da Bienal que ainda está presente. É este movimento à volta de vários patrimónios, mas, ao mesmo tempo, casando tradição com inovação, indo às raízes para buscar inspiração para fazer arte contemporânea, sobretudo nessas três áreas da música, do teatro e da dança, mas também nas artes visuais. Nós estamos a apostar muito no evento que vamos fazer de residência artística, de fotografia na Roça São João. Aliás, devo referir que o grande actor angolano Miguel Hurst, que é encenador também...

Também tem ali uma exposição do Miguel Hurst.

Sim. E o Miguel Hurst esteve quase três meses connosco em Angolares, na Roça São João, que tem uma residência artística internacional há vários anos, e ele formou, numa primeira fase, o Grupo de Teatro Anguené dos Angolares.

Nós, aqui [Cacau], estamos a fazer uma coisa que, daqui a mais uns anos, esperamos que possamos ter aqui uma grande escola, mas também um espaço onde possamos receber artistas da sub-região.

A Cacau acaba por ser uma vitrina dos artistas são-tomenses, nomeadamente, os contemporâneos, não é? Senão, onde é que podemos ver as obras deles?

Na Roça São João também tem uma residência artística e tem, por consequência, uma galeria de arte também. A nossa divisa é que nós ‘Roçamos o mundo aqui mesmo’, então, é essa ideia de estarmos no meio do mundo, umas ilhas no meio do Equador, mas que têm tudo para olhar o mundo, aprender com o mundo e, depois, dessa aprendizagem do global, fazer o glocal, criando aqui localmente uma coisa fantástica.

Ainda ligada à Cacau, nós compramos um autocarro em segunda mão e transformámo-lo numa BIIC, Biblioteca Itinerante Isaura Carvalho. Mas, a partir do momento que vivemos a Covid e que não podíamos circular com o autocarro, nós reformulámos o projecto e acrescentámos o PICA que é o Ponto Itinerante de Cultura e Ambiente. Agora é a Cacau que vai para fora levar o que acontece na Cacau, mas, ao mesmo tempo, fazer educação ambiental, educação para a cidadania, educação para a saúde. O autocarro vai parar em vários lugares e montamos o nosso estaminé com os animadores que estão a ser preparados para o fazer e, de uma forma articulada e integrada, vamos fazer com que o autocarro seja um ponto de cultura itinerante.

A Cacau é, então, um espaço de arte, teatro, ambiente e de outra das suas paixões que é a gastronomia, não é?

Gastronomia é arte, talvez uma arte mais efémera que as outras artes.

Uma performance?

É uma performance e fazemos várias performances, sobretudo na Roça São João onde temos a OLGA, quer dizer, Oficina Laboratório de Gastronomia dos Angolares.

Uma escola de cozinha?

Eu prefiro chamar-lhe oficina e prefiro falar de ofícios. Ensinamos às pessoas, através da gastronomia, não só a fazer a comida, mas também a plantar comida. Por exemplo, durante a pandemia da Covid, nós ficámos a fazer estufas, hortinhas. Toda a gente foi fazendo, mexendo, para aqui, para acolá, porque estivemos quase dois anos fechados mas estivemos a fazer outras coisas. Isto quer dizer que é uma roça inclusiva e só tem jovens dos Angolares. Os Angolares é o maior distrito do país, no Sul, mas um dos mais pobres e então fazemos discriminação positiva. Só aceitamos jovens que sejam daquela região ou daquela zona ou daquele lugar.

Então, através da comida, ensinamos às pessoas a viverem e a serem melhores cidadãos activos e participativos. Como é que se faz isto através da gastronomia ou desta arte efémera que fica na nossa memória durante algum tempo ou mais tempo (depende de cada um)? É que é possível falar de amor fazendo gastronomia.

Aqui é o meu chão e agradeço a todos os deuses do mundo por me terem dado este país.

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