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Em Avignon, dança-se o luto debaixo das estrelas

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“L'œil nu”, de Maud Blandel, é um espectáculo que fala sobre memória, em que a coreógrafa franco-suiça aborda a morte do pai a partir de explosões de estrelas e questiona o tempo que passa e o que dele fica. A peça, que está no Festival de Avignon de 10 a 16 de Julho, é um poema íntimo e colectivo que conta com a portuguesa Ana Teresa Pereira entre os seis bailarinos que investem o claustro de La Chartreuse de Villeneuve les Avignon. Ana Teresa Pereira falou com a RFI sobre o espectáculo.

Ana Teresa Pereira, Intérprete em "L'oeil nu". Avignon, 9 de Julho de 2023.
Ana Teresa Pereira, Intérprete em "L'oeil nu". Avignon, 9 de Julho de 2023. © Carina Branco/RFI
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RFI: “Do que fala exactamente este espectáculo?"

Ana Teresa Pereira, Bailarina: “O espectáculo é uma espécie de autobiografia da Maud Blandel e é um evento que se passa quando ela é criança. As memórias não estão por completo, por isso, são pequenos fragmentos de uma situação que aconteceu, são fragmentos porque a memória não está toda presente.”

“Então o título da peça também tem a ver com a memória? Porque “a olho nu”, à partida, significa qualquer coisa que conseguimos ver à primeira vista, mas aqui são fragmentos...”

“Exacto. Depois há uma coisa muito poética que ela faz, que é uma ligação ao sistema estelar que se degenera e começa a degenerar o grupo, a música, o espaço, tudo se degenera. Mesmo assim, continua a guardar pequenas espécies de memória de eventos que já tenham acontecido, que vão ser trazidos ao presente, mas os acontecimentos que estão a acontecer no presente, eles não são sempre iguais, vão sempre mudando pouco a pouco.”

“Como é que se leva para a dança? Como é que encontrou o seu espaço neste espectáculo e como é que se representa pela dança esse corpo que degenera e que acaba por explodir e desaparecer?”

“Somos seis bailarinos, é uma peça que começa com um sistema muito forte, onde nós todos estamos interconectados e o sistema começa assim com uma base forte. Pouco a pouco, começamos a fazer pequenos jogos entre nós, por isso, temos que estar sempre à escuta e super sensíveis ao que o outro faz. Temos pequenas tarefas que vão aparecendo e, pouco a pouco, elas vão começar a degenerar na peça.”

“O espectáculo de Maud Blandel foi inicialmente inspirado pela vontade de transcrever na dança uma peça musical do compositor Gérard Grisey para seis percussionistas em torno das ondas de rádio emitidas por resíduos de estrelas. Mas evoluiu e a música do espectáculo passou a contar com temas de desenhos animados. O que conta esta música que também tem algo de trágico?”

“A música está ligada a essa tal memória de infância pela qual a Maud Blendel passou e é um dos fragmentos que ela tinha mais guardado nela. Daí os ‘cartoons’ aparecerem na peça e começarem também a degenerar porque começou por um desenho animado que ela estava a ver na televisão quando o evento aconteceu.”

“Estamos a falar da morte do pai?”

“Exactamente.”

“Há também guitarras eléctricas e piano no final, com a frase de um poema de T.S. Eliot “é assim que o mundo termina, não com um estrondo, mas com um sussurro”. Como é que tudo é articulado? É uma poesia dançada sobre o fim, sobre a morte?”

“Eu acho que sim, que foi uma pequena explosão que fez só um sussurro e representa a morte.”

“A peça acontece num claustro. De que forma é que este espaço solene desenha a maneira como vocês dançam e habitam este espaço?”

“O espaço é muito amplo, ainda estamos a passar por algumas dificuldades porque é normal porque mudámos de espaço. Como é uma peça tão espacial, o espaço é também faz parte do nosso jogo.Por isso, aqui as coisas parece que se difundem, ainda mais por termos este céu aberto, mas que também dá uma certa inspiração porque a peça está ligada ao estelar. Nós estamos em contacto com isso.E acho que é um sítio lindíssimo para fazer esta peça.”

“Como é que surgiu o convite para entrar nesta peça? Já tinha trabalhado com a Maud Blandel...”

“Eu fiz a primeira criação da Maud Blandel que se chamava “Touch Down”. Entretanto, fui para a Alemanha e deixei os meus contactos da Suíça. Mais tarde, eu e a Maud fomos beber um café e ela falou-me da nova peça e entendemo-nos muito bem, concordámos e agora estamos a trabalhar juntas outra vez.”

“Como é trabalhar com a Maud Blandel?”

“Para mim é um desafio grande porque é um trabalho super preciso. É preciso uma precisão musical, parece que temos que ter uma consciência de tudo o que está à nossa volta, de abrir a nossa cabeça a 360 graus.  Ao mesmo tempo, é um trabalho onde a sensibilidade tem muito lugar no nosso interior. Por isso é um trabalho super preciso mas, ao mesmo tempo, super sensível. E eu tenho aprendido imenso. É um prazer.”

“É a música que dá compasso e sentimento à peça?”

“Exactamente. A música ainda faz com que nós sintamos ainda mais esta degeneração porque a música em si degenera também e começa a ficar mais forte, a trazer-nos lembranças. Sem ela, não seria a mesma coisa.”

“A música também lhe traz lembranças a si?”

“Traz-me lembranças dentro desta peça. Ou seja, não é uma experiência que eu tenha passado, mas ouvi-la uma vez, se calhar um bocadinho mais longe, depois vou voltar a ouvir na peça um bocadinho mais próxima. São lembranças que eu sinto em relação à peça, dentro da peça.”

“Perante o tempo que passa, até que ponto a dança pode ser terapêutica? Ajudar a ultrapassar, por exemplo, um luto?”

“Porque é uma coisa que unifica. O facto de estar a dançar com outras pessoas é uma coisa que nos unifica e não nos sentimos sozinhos. Partilhamos o palco com outras pessoas e há essa sensibilidade de estar sempre atento ao outro. Acho que é uma coisa que dá imenso prazer. É super bom sentir que temos sempre alguém ao nosso lado, para quem importa qual decisão vamos tomar. Ele está lá para nos apoiar e essa peça é muito isso também.”

“O que representa estar no Festival de Avignon?”

“É a primeira vez que cá estou e primeiro estou super orgulhosa da coreógrafa ter conseguido fazer-nos dançar em Avignon. Estou super contente de poder dançar aqui e também de ver o que está a acontecer porque há muita coisa que se passa e para me inspirar dos outros.”

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