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“Je suis Tigre”: Acrobacia poética e política contra a xenofobia

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O espectáculo infantil “Je suis Tigre”, de Florence Bernad, está no Festival Off Avignon até 22 de Julho. Esta é uma história contada através da dança, da acrobacia e do desenho que fala sobre migração, refugiados, guerra e amizade. Em palco, dois artistas interpretam Marie e Hichem: ela vive num mundo pacífico, ele fugiu à guerra. “O espetáculo é bastante político", resume a portuguesa Rita Carmo Martins, que interpreta Marie.

"Je suis tigre" no Festival Off Avignon. 7 de Julho de 2023.
"Je suis tigre" no Festival Off Avignon. 7 de Julho de 2023. © RFI/Cyril Etienne
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RFI: Como é que resume a história de “Je suis tigre”?

Rita Carmo Martins, Intérprete em "Je suis tigre": É um espectáculo de desenho, acrobacia, principalmente de “acrodance”, que significa que é um espectáculo de circo e em que há uma mistura de acrobacia e de dança. Neste caso, os dois intérpretes interpretam duas crianças pela idade da primária, ou seja, mais ou menos oito anos e que estão na escola, na hora do recreio, e que se conhecem ou brincam juntos. Ela é francesa e a ideia é ser interpretada por alguém caucasiano, ou seja, que à partida será branco. Normalmente, a personagem interpretada pelo rapaz é alguém de cor, se é que podemos dizer dessa forma, sendo que é alguém que foge à guerra.

A Marie questiona-se bastante sobre o seu amigo porque percebe que ele não vive da mesma forma, usa sempre a mesma roupa, que se comporta de uma maneira um pouco diferente, mas, apesar de tudo, brincam juntos. Ele mostra-lhe o que é que ele acabou por viver, a sua história, que fugiu à guerra, mostra-lhe o deserto e nós tentamos mostrar isso através do corpo e através da expressão. O espectáculo tem videoprojeção, tem desenho.

Desenho feito em directo por vocês.

Exactamente.

É um espetáculo classificado como destinado às crianças, embora seja para todos, mas fala de um tema muito difícil: a guerra, as pessoas obrigadas a fugir e a deixar as suas casas e os seus países. Como é que a dança, a acrobacia, o desenho feito em directo no palco, a partir dos vossos movimentos, ajuda a contar de forma mais fácil uma história tão dura às crianças?

Efectivamente, é um espectáculo classificado como “jeune public”, o que significa que, na maior parte do ano, nós fazemos o espectáculo para escolas, ou seja, “Je suis Tigre” é apresentado muitas das vezes três, quatro dias em que nós fazemos duas apresentações por dia, em que fazemos escolas, normalmente primária ou entre os 6 e os 10 anos, e no final falamos com as crianças. Ou seja, há um “bord plateau” que significa que nós falamos ao público, que lhes fazemos questões e são eles que nos fazem descobrir o espectáculo, queremos ouvir as opiniões deles.

Muitas das vezes o corpo acaba por contar mais do que aquilo que nós podemos contar com a voz.  Ao mesmo tempo, o facto de o espectáculo ter uma voz off também ajuda a dar suporte à história e a colocar também intensidade. Podemos dizer que é um espectáculo para crianças, mas, ao mesmo tempo, muitas das vezes quem acaba por ficar mais tocado pelos espectáculos são mesmo os adultos. Eu já fiz este espectáculo aproximadamente 80 vezes e já senti muita coisa muito forte ao final do espectáculo, com as reacções do público ou com o feedback do público. Por isso, sim, é um espectáculo para crianças, mas não é só.

Qual é a mensagem do espectáculo? Tentar ser um contrapeso ao discurso racista e violento de que são vítimas as pessoas migrantes?

É sim. Na verdade, o espetáculo é bastante político. Mas também tem uma outra mensagem, que é neste caso, a amizade que acaba por não ter fronteiras, não ter línguas, não ter raças e que é aquilo que é mais importante. Tenho bastante prazer de fazer este espectáculo porque efectivamente sinto que ele passa uma mensagem. O facto de nós fazermos espectáculos para escolas, principalmente para crianças, atingimos futuros adultos. E é super interessante neste aspecto.

Formalmente, como é que foi a criação desta escrita coreográfica, que também escreve um desenho gigante?

Eu sou intérprete, significa que eu não fiz a criação. Quem fez a criação, curiosamente, foi uma outra portuguesa que se chama Maria Pinho e também o Simon, que está num outro espetáculo aqui em Avignon, que é marroquino, e que - em conjunto com a coreógrafa Florence, assim como toda a equipa, ou seja, existe sempre uma equipa de som, de luz de, vídeo, o espectáculo não se faz só com duas pessoas em palco - construíram um espetáculo durante quatro meses de trabalho intenso, sendo que o espetáculo foi pensado pela Florence durante dois anos. Ela fez o trabalho de encontrar pessoas. Houve uma mãe que ela encontrou, que a inspirou imenso para fazer o espectáculo, que veio da Guiné e que trouxe o seu filho e que conseguiu integrar a sociedade francesa. E isso foi uma das inspirações.

Do ponto de vista da minha performance, eu vi o espectáculo e adorei. Na altura, surgiu a possibilidade de fazer uma audição e acabei por ser escolhida ao fazer a audição em Janeiro de 2022. A partir daí, continuei a fazer o espectáculo até agora.

E já vão mais de 80 representações.

Sim. E, na verdade, foi só um processo. Normalmente nós passamos, por exemplo, uma semana para aprender o espetáculo inteiro. Depois, voltamos a fazer alguns ensaios e normalmente fazemos sempre, por exemplo, um ensaio geral antes de fazer o espectáculo e houve um crescendo depois de o espetáculo já estar materializado, de juntar intenções, intensidades, emoções.

Em termos de movimentos, exploram o movimento acrobático do circo, como estava a dizer, para desenhar a história e também vão buscar movimentos mais felinos a apontar para o título da obra. Como é que se faz esta transição entre o título e a dança? Que é que quer dizer este título?

O título, “Je suis Tigre”, “Eu sou Tigre”, é mesmo específico. Não é “Eu sou o tigre” porque a ideia deste espectáculo é que o tigre aparece quase como um amigo imaginário ou uma forma de movimento ou um estado de espírito,  como o Hichem que sente a necessidade de se comportar como um tigre no sentido de ele esconde-se, ele foge, alguém que toca e ele reage como um tigre.

Às vezes, perguntamos aos miúdos qual é a diferença entre um gato e um tigre e eles dizem que ao gato nós podemos fazer miminhos, festinhas e ao tigre não. Também porque tem a metáfora que um tigre é um animal que percorre muitos quilómetros para caçar, para se esconder, passa fronteiras e países para fazer a sua vida. A acrobacia entra aqui como efeito surpresa, mas também como essa forma de movimento felino espectacular no sentido de, como um gato, acabamos por fazer recepções em quatro patas.

Falou em acrodança. É apresentada como “acrobailarina”. O que é uma acrobailarina?

Eu considero como uma disciplina do circo, uma vez que a minha origem é o circo, mas há também quem a considere dentro da dança. Mas para ser mesmo específica, é uma mistura entre acrobacia e dança, ou seja, não podemos dizer que é só um “flic flac” e paramos, mas é um movimento contínuo, é quase uma dança no qual a acrobacia vem completar. Existe uma fluidez do movimento em que a acrobacia entra também nessa fluidez e que não aparece apenas como um salto parado, se é que assim podemos dizer, como na ginástica.

E relativamente ao seu percurso, como é que veio parar a França? De onde vem o amor pela dança, pela acrobacia, pelo circo?

Eu fiz ginástica dos dois aos 22.  Fiz mesmo ginástica acrobática de competição.

Aos dois anos?

Aí já foi a partir dos 12! Mas eu fiz ginástica de formação, mais ou menos entre os dois e os seis anos. Depois, estive a fazer rítmica e depois da rítmica passei para a acrobática. Aí estive mesmo a fazer competição. Entretanto, quando deixei de competir passei a treinar circo, a ser treinadora de ginástica e a fazer treinos de circo. Entretanto, fui convidada para dar aulas na escola de circo em Portugal, no INAC, e senti que queria mais formação, mais meio artístico ou mais circo, na verdade, mais espectáculos. Acho que foi a curiosidade que, na altura, em 2019, 2020, me levou quatro meses ao Lido [Ésacto'Lido], a Toulouse, a escola de circo, para fazer uma formação para desenvolver um projecto artístico. E depois acabei por ter que voltar a Portugal e ao meu emprego antigo e fiquei praticamente um ano durante o ano do Covid-19. Voltei à França, aos bocadinhos e, portanto, oficialmente, estou em França desde Outubro do ano passado.

É a primeira vez em Avignon. O que representa para si?

Acho que é uma oportunidade incrível. Acho que nunca sabemos na vida quando vamos estar em Avignon uma outra vez. É incrível porque é o maior teatro do mundo, se é que podemos dizer isso. Há espectáculos por todo o lado, a cidade está repleta de gente, de línguas, de cultura e é extraordinário ter a oportunidade de fazer vários dias de espectáculo para diferentes públicos. Acho que é verdadeiramente uma honra, não é indescritível, mas quase.

Será que tem um peso ainda maior o facto de estar em Avignon e levar ao palco um tema tão político? É uma acrobacia sensibilizar o mundo para o drama dos refugiados?

Sim. Não só em Avignon, mas em todo o lado. Uma das coisas que eu gosto imenso quando faço este espectáculo é, por exemplo, quando nós vemos o público e que as pessoas são todas diferentes e que, na verdade, outrora a nossa família teve que emigrar, mesmo eu emigrei, mesmo que não seja por uma razão de guerra e acho que é super importante falar sobre isso e sobre ser integrado quando se é diferente, quando não se fala a língua. França é um lugar em que ainda há muita barreira relativamente a isso, mesmo sendo um país que acolhe imensa gente, acho que é super importante falar sobre o tema, não só dos refugiados, mas o que é verdadeiramente ser francês ou ser português, ou ser de um país. No final, somos todos humanos, gostamos todos de comunicar e de se integrar.

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