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Manifesto “Todas Sabemos” quer criar “rede de solidariedade” contra abusos

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Oitocentas e cinquenta pessoas assinaram, numa semana, o manifesto “Todas Sabemos” que pretende criar uma “rede de solidariedade” e levar o governo português a criar mecanismos de prevenção, denúncia e protecção contra assédio moral e sexual. O manifesto vai ser publicado em francês porque se trata de uma causa transversal, explicam algumas das co-autoras que vivem em Paris.

Manifesto Todas Sabemos
Manifesto Todas Sabemos © Buala
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Uma semana depois da sua publicação, 850 académicos, artistas e outros profissionais do sector cultural e científico assinaram o manifesto “Todas Sabemos”, publicado a 14 de Abril no portal Buala. Trata-se de um texto que manifesta “total solidariedade” com as autoras do artigo “The walls spoke when no one else would: Autoethnographic notes on sexual-power gatekeeping within avant-garde academia”, publicado no livro “Sexual Misconduct in Academia: Informing an Ethics of Care in the University”, da editora britânica Routledge. O artigo, de três ex-investigadoras do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra, denunciava casos de assédio moral e sexual no seio da instituição e levou o centro a criar uma comissão independente para investigar as alegações. O director emérito do CES, Boaventura de Sousa Santos, disse, em comunicado, que vai processar as autoras do artigo por difamação e nega as acusações. Contactado pela RFI, Boaventura de Sousa Santos remeteu para mais tarde quaisquer declarações. Esta sexta-feira, no jornal Público, o professor e investigador disse esperar que a sua voz "seja ouvida com a mesma atenção que outras vozes" e que tem "todo o interesse em que a comissão independente criada pelo CES efectue a competente investigação de todas as denúncias" e que "ouça todas as partes com igual imparcialidade e rigor".

O manifesto “Todas Sabemos” expressa “total solidariedade” com outras vozes que, entretanto, vieram a público e “com todas as pessoas sujeitas a abusos de poder e outras formas de violência em contexto académico e fora dele”.

O texto foi redigido a muitas mãos e também por três professoras que vivem em Paris: Luísa Semedo, professora de Filosofia, Maria Benedita Basto, professora de Estudos Lusófonos na Universidade Paris Sorbonne, e Raquel Schefer, professora de Estudos Cinematográficos na Universidade Sorbonne Nouvelle que falaram com a RFI. 

O manifesto já tem uma versão em inglês e vai ser publicado em castelhano e em francês “porque o problema de abuso moral e sexual na Academia, violência e violência de género é transversal a todas as instituições, mas também acontece em todos os países”, explica Raquel Schefer. 

O documento quer, também, contribuir para “uma reflexão sobre as questões mais profundas que continuam a existir na sociedade portuguesa, e não só, e que levam a que esses casos e situações aconteçam”, diz Maria Benedita Basto.

O texto tenta reflectir sobre a maneira como as divisões e a existência dessas hierarquias tão marcadas no seio da academia – como no seio de outras instituições, não é um problema exclusivo da academia – depois se reflectem em práticas de abuso de poder que podem ter múltiplas declinações”, acrescenta Raquel Schefer.

Será que se está perante o início do movimento #MeToo em Portugal? Luísa Semedo diz que “teria de ser um movimento muito mais forte”, mas que “já dá para ver que são as mesmas estruturas e as mesmas estratégias de evitar a verdadeira questão” que se verificaram em diversos países.  

O manifesto começa por invocar “total solidariedade” com as autoras do artigo “As paredes falam quando mais ninguém o fez” e sublinha que “as repetidas e persistentes situações abusivas que o texto retrata, longe de serem episódicas ou um ataque concertado de difamação pessoal, institucional ou política, devem ser interpretadas como uma crítica a dinâmicas institucionais sistémicas, comuns dentro e fora da academia”.

É o que sublinha a investigadora Maria Benedita Basto ao dizer que “a questão é muito mais extensa e transversal”: “Convém alertar as pessoas que não estamos a falar, nem a acusar, um centro em particular e uma situação em particular, mas que é o momento de aproveitar o que está a acontecer para uma reflexão mais global, mais geral e mais transversal e, dessa forma, realmente criar uma acção porque a ideia também é de agir e tentar mudar alguma coisa”.  

A investigadora salienta que o manifesto foi criado para “criar uma rede de solidariedade e apoio” e “preparar, eventualmente, uma intervenção junto de instituições e do governo”. Até porque, destaca, “a resposta, a nível do governo, tem sido uma resposta muito fácil a dizer que já existem instituições e canais que possam resolver o problema e isso não corresponde inteiramente à verdade”.

No caso das universidades e das escolas, do ensino em geral, as falhas são bastante grandes. É, ao mesmo tempo, no campo escolar, mas é também na sociedade em geral, tentar que ao nível do governo haja uma tomada de consciência de que o que está feito não chega, que é preciso fazer e que é bom que essa parte que é preciso fazer seja feita com actores no terreno: pessoas que viveram essas situações e outras pessoas que pretendem estar solidárias com elas”, explica Maria Benedita Basto.

No manifesto pode ler-se, por exemplo, um pedido à ministra da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, Elvira Fortunato, e à ministra adjunta e dos Assuntos Parlamentares, Ana Catarina Mendes, bem como à Fundação para a Ciência e Tecnologia para “que se pronunciem e agilizem recursos no sentido de aprofundar o enquadramento legal para este tipo de casos, nos estabelecimentos de ensino e investigação superior”, com “a obrigatoriedade de códigos e regulações” e que sejam criadas “no imediato condições para que todas as instituições de ensino superior tenham um mecanismo de denúncia anónima de situações de assédio sexual e moral, garantias de proteção à vítima e comissões independentes e não endógenas” que trabalhem na prevenção, avaliação das denúncias, instruções de processo e sanções.

O texto aponta “o assédio sexual e moral, o extrativismo intelectual (a prática de plagiar ou reproduzir o trabalho de outrem sem citar, apresentando-o como seu), bem como outras formas de violência” como “estruturais e estruturantes de um sistema académico fundado em marcadas hierarquias profissionais e divisões de classe, género e étnico-raciais”.  Além disso, fala na “concentração de poder” e “monopolização de recursos financeiros essenciais para o desenvolvimento de carreiras de investigação, cuja grande maioria assenta na precariedade”.

O modo como funciona - no interior da academia, das bolsas, os pós-doutoramentos, etc – está, por vezes, nas mãos de uma pessoa que vai assinar. Não se pode dar muito poder só a uma pessoa sobre a vida de várias outras que estão subalternizadas. Parece-me absolutamente evidente que as tutelas têm que tratar disso e não lavar as mãos como se não fosse um problema delas”, acrescenta Luísa Semedo, lembrando que se está a falar em “dinheiros públicos”.

O manifesto destaca, ainda, as retaliações e aponta que “não é de ânimo leve que as mulheres se sujeitam ao escrutínio e ao questionamento público” porque “sabem de antemão o que as espera: juízos de valor, humilhação, deturpação, desvalorização, ridicularização e potencial re-traumatização”.

O manifesto é, por isso, uma forma de resistência, nomeadamente contra “a cultura do medo”. “É preciso resistir e nós estamos a tentar fazer corpo, fazer grupo (…) Todos os movimentos emancipatórios e de resistência são assim. Ou tu te calas e ficas num buraquinho e deixas o poder funcionar como ele costuma funcionar ou fazes o teu papel de fazer resistência. A resistência é aguentar todo o ‘backlash’ que vem a seguir e avançar e progredir”, conclui Luísa Semedo.

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