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“Molière não é um autor estranho à criação portuguesa”

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Nuno Cardoso é um dos encenadores portugueses que levou a palco uma das peças de Molière, um autor que “não é estranho à dramaturgia e criação portuguesas” e que “mudou o paradigma do teatro”. O actual director artístico do Teatro Nacional São João, no Porto, retomou, em 2016, “O Misantropo” e fez uma “encenação disruptiva” de uma “comédia farpada” profundamente contemporânea. Nuno Cardoso esteve à conversa com a RFI, no âmbito dos 400 anos do nascimento de Molière.

"O Misantropo" encenado por Nuno Cardoso em 2016.
"O Misantropo" encenado por Nuno Cardoso em 2016. © João Tuna
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Pensou num lugar de surdez e criou uma discoteca com música retro para cenário de “O Misantropo”, de Molière. O encenador Nuno Cardoso, actualmente director artístico do Teatro Nacional São João, no Porto, retomou, em 2016, o texto apresentado - pela primeira vez - há 350 anos e fez uma “encenação disruptiva”. Alceste, o misantropo, impõe-se pela cegueira, e Celimene, a mulher que quebra códigos, domina pela clarividência.

Nuno Cardoso foi buscar uma “comédia farpada” que continua a ser amargamente contemporânea quatro séculos depois. Foi também ao encontro de um autor que “mudou o paradigma do teatro” e que “não é estranho à dramaturgia e criação portuguesas”.

Este ano, o Teatro Nacional São João é parceiro do projecto “Nós” que junta teatros e escolas superiores de arte dramática de Portugal, Espanha e França para produzir “O Tartufo”, numa encenação do português Tónan Quito e que vai estrear, em Junho, no Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa. Um projecto que integra a programação da Temporada Cruzada Portugal-França que decorre este ano.

12:53

Entrevista a Nuno Cardoso

Nuno Cardoso, Director artístico do Teatro Nacional de São João, no seu teatro, no Porto, a 27 de Dezembro de 2022.
Nuno Cardoso, Director artístico do Teatro Nacional de São João, no seu teatro, no Porto, a 27 de Dezembro de 2022. © Carina Branco/RFI

RFI: Em 2016, levou a palco “O Misantropo” de Molière. Porquê "O Misantropo"?

Nuno Cardoso, Encenador: O Misantropo, que foi o espectáculo que eu fiz a partir do Misantropo, peguei nele porque estava a sentir na altura em que o fiz [2016] que a futilidade social é cada vez mais presente com as redes sociais, com as ligações que se estabelecem, o jogo social... Mas também é cada vez mais evidente que o enquistamento e a teimosia podem levar a situações em que toda a gente ralha e ninguém tem razão. E foi por causa disso tudo que eu fiz uma espécie de piscar de olhos ou uma espécie de banda sonora um bocadinho retro e situei o jogo teatral numa discoteca...

Uma discoteca não deveria ser um lugar de alegria, de diversão?

É sobretudo um lugar de surdez porque é um expediente para a diversão e também é um expediente para a crítica da diversão. É uma coisa exterior. Depois, também é muito engraçado porque também aí se revela uma contemporaneidade porque a dramaturgia ocidental tem um défice muito grande em relação à mulher e ao papel da mulher e, portanto, isso espelha uma sociedade patriarcal...

Como a maior parte das peças de Molière...

Sim e eu acho que a punição que existe no fim, aquele niilismo final, de um lado reflecte o carácter do misantropo propriamente dito, mas também a falta de paridade que existe. E também quis falar um bocadinho sobre isso e, por isso, investi tanto na personagem feminina. O que foi curioso é que houve uma ou duas pessoas que me chamaram na rua e disseram que eu não deveria ter tratado a Celimene como uma prostituta. O que eu lhes disse, várias vezes, é que não é uma prostituta, é uma mulher sexualmente liberta que tem as mesmas opções que os homens, só que quando faz o mesmo jogo, infelizmente a punição é muito maior. Portanto, foi um bocadinho a partir daí que eu construí a “mise-en-scène”.

No fundo, há uma paridade entre o Alceste e a Celimene. O Alceste tenta criticar a sociedade, ela vive a vida dela como bem acha, mas é se calhar mais mordaz...

Mais mordaz, sim. A crítica fundamental à sociedade está na Celimene, não está no Alceste.

Como é que conseguiu essa justeza entre a crítica à sociedade e, ao mesmo tempo, mostrar o ridículo disso tudo?

Pois, não sei, vamos tentando. Às vezes corre bem, outras vezes corre mal. Devo dizer que o Misantropo já está um bocadinho longínquo, mas eu acho que foi uma peça que correu bem, aliás fartou-se de digredir em Portugal. Esteve aqui [Porto], esteve em Lisboa, esteve em Vila Real, esteve em pelo menos sete sítios.

Em relação ao Alceste, o que é que o seduziu na personagem do Misantropo?

A cegueira. Eu acho que ele é um solipsista, ele não sai de si próprio e justifica a sua incapacidade tornando os outros espelhos que reflectem aquilo que ele quer ver e não o que se vê.

Cegueira mas, ao mesmo, tempo ele tem aquela força subversiva porque critica tudo o que os outros não criticam...

Mas é estéril. Aconteceu uma coisa curiosa quando encenámos isso, uma vez, no fim. Aquilo começava com um rádio que estava ligado com o que quer que apanhássemos. E o actor metia sempre na Antena 2. Ele tem um percurso diferente, mas muito semelhante ao Timão de Atenas, vai para a sua caverna, etc, etc. No fim, o rádio continua ligado e, na rádio, alguém está a fazer uma conferência e diz “Timão de Atenas quando vai para...” e  aquilo era quase um comentário absolutamente fortuito em relação ao que acabáramos de ouvir. Portanto, foi isso e foi também a estranheza, a dificuldade da peça, às vezes sou suscitado por isso...

É uma comédia mas é quase uma tragédia. Uma comédia negra?

Será uma “comédia farpada” - se a gente usar a linguagem dos Vencidos da Vida. É, de facto, algo de agridoce que é mais "agri" que doce, que retrata tipos como o novo-riquismo, o nepotismo, o clientelismo, a futilidade...

Tipos que continuam a ser contemporâneos...

Que continuam a ser contemporâneos, absolutamente. E nisso talvez o génio do Molière porque, normalmente, em comédias ou em dramaturgia de arquétipos, as personagens são muito bidimensionais e as personagens do Molière não o são. Têm sempre uma dose de ubiquidade, de dúvida e isso é que as torna interessantes. Mas obviamente que ele não foi feito segundo o cânone, foi uma encenação um bocadinho disruptiva e recriadora nesse sentido. Mas foi essa totalidade que me agradou.

Como é que adaptou, em termos de linguagem oral, todo o texto que foi escrito no século XVII? Houve uma grande alteração?

Não. Não propriamente, mas houve uma tradução muito elegante da Alexandra Moreira da Silva.

Quais é que foram as maiores dificuldades de adaptar Molière?

Não são assim substanciais porque é um autor que se adapta bem às circunstâncias. Se calhar não tem estado tanto nos repertórios dos Teatros Nacionais ultimamente mas tem tido alguns. Em 2017 também teve uma encenação no Dona Maria. Nas circunstâncias portuguesas há dois teatros de repertório, o Nacional Dona Maria II e o Nacional de São João,  e há um conjunto de companhias independentes que fazem uma grande quantidade do que é a criação portuguesa. Os Teatros Nacionais não têm a capacidade de passar por todo o repertório porque estamos a correr por um conjunto dos autores.

Em relação às companhias independentes – eu fiz isto e ainda estava com a minha companhia independente – digamos que a ideia de escrita no palco e a ideia de criação conjuntural é o que está dominante neste momento e o repertório é uma coisa que assusta um colectivo porque tem necessidade de um elenco, tem necessidade de um investimento em termos de cenografia, de figurinos, etc, que a própria peça exige, que o repertório exige, portanto, é natural que as pessoas se afastem um bocadinho do repertório ou que quando o escolham não vão para Molière. De qualquer maneira, não é um autor que é estranho à dramaturgia e à criação portuguesa. Aliás, uma das peças de fundação da Cornucópia foi O Misantropo também. Há todo um conjunto de circunstâncias. Também é um autor dado nas escolas...

Nas escolas em Portugal?

Sim, nas escolas de teatro. Mas também é um autor que passa pelos liceus, não propriamente no currículo mas que, por exemplo, eu tive acesso quando andava no liceu através de um professor. Portanto, não é um autor estranho à cultura portuguesa.

Quem é que foi Molière para o teatro?

Há autores que extrapolam a sua condição e que fazem crescer o que é o âmbito do que é o teatro. Shakespeare foi um deles, Molière foi um outro. Pessoalmente, acho que o Racine também o foi, mas todos os clássicos franceses também dão um puxão ao teatro. Molière é no sentido de que é disruptivo, quebra muitas regras, e, portanto, reinventa de uma forma muito mais vital que, por exemplo, o Marivaux. Como, por exemplo, o Tchekhov também o fez, como o Schiller à sua maneira, como depois o Beckett o faz com o absurdo. Há momentos em que a dramaturgia muda. Como o Koltès também mudou, como o Vinaver também mudou com o “stream of consciousness” e essas coisas todas, “roman fleuve”, como dizem em francês. Portanto, há sempre autores que, no âmbito do repertório, mudam o paradigma e Molière foi um deles.

Qual é a pertinência de levar Molière aos palcos portugueses nos dias de hoje?

Molière faz parte de um conjunto de dramaturgos que escapam um bocadinho à sua fronteira e à sua circunstância e cujo trabalho é universal. Obviamente que qualquer dramaturgo, nomeadamente estrangeiro, que pegue em Molière para encenar é porque sente que a dramaturgia em causa tem alguma coisa a ver consigo e com as suas circunstâncias e com o tempo e o espaço onde vive. Mas uns são mais que outros. Digamos, uns são mais sazonais que outros e eu acho que o Molière escapa a essa sazonalidade de uma forma diferente do Shakespeare por exemplo, ou de uma forma diferente do Tchekhov, mas é um autor para todas as circunstâncias.

De qualquer forma é muito engraçado porque a primeira coisa que eu fiz, quando tinha 14 anos, na escola, foi o meu professor de desenho que fez um sarau e nós tínhamos de apresentar alguma coisa e eu não sabia o que havia de apresentar e eu e um colega fizemos uma cena do “Médico à Força”. Depois esqueci-me completamente que tinha feito isso e voltei a lembrar-me quando fiz o Molière.

Não é dos autores a que eu tenha voltado muitas vezes, só fiz uma vez, mas tenho programado. Ainda há pouco programei Tartufo [do Teatro da Garagem, encenado pelo Carlos Pessoa] e estou envolvido na criação de outro Tartufo com alunos daqui, com alunos do ENSATT [École Nationale Supérieure Des Arts et Techniques du Théâtre], com alunos do ISCTE de Lisboa num projecto chamado “Nós” e que vai ter encenação do Tónan Quito.

Que vai estrear no Teatro Nacional Dona Maria II e que envolve também uma escola em Lyon...

Exactamente, o ENSATT. Isto é um projecto entre os dois [teatros] nacionais, a Galiza e França.

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