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Isabel do Carmo, uma mulher de armas contra a ditadura

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Isabel do Carmo foi co-fundadora das Brigadas Revolucionárias, uma das organizações de resistência armada à ditadura portuguesa. Nos 50 anos do 25 de Abril, ela contou-nos algumas das acções mais emblemáticas das Brigadas Revolucionárias, desde o ataque às instalações da NATO, na Fonte da Telha, à destruição de chaimites destinados à guerra colonial e à largada de porcos vestidos de almirante nas ruas de Lisboa.

Isabel do Carmo, Co-fundadora das Brigadas Revolucionárias. Lisboa, 6 de Fevereiro de 2024.
Isabel do Carmo, Co-fundadora das Brigadas Revolucionárias. Lisboa, 6 de Fevereiro de 2024. © Carina Branco/RFI
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Nos 50 anos do 25 de Abril, a RFI falou com vários resistentes ao Estado Novo. Neste programa, ouvimos Isabel do Carmo, uma das fundadoras das Brigadas Revolucionárias.

“Nós resolvemos que não fazíamos papéis. Fazíamos, antes de tudo, acções. E foi assim que começaram as acções. Houve acções das Brigadas Revolucionárias quase até ao 25 de Abril. E, de facto, é a primeira organização que aparece com uma mulher na direcção”, começa por nos contar Isabel do Carmo, fundadora das Brigadas Revolucionárias.

A activista e resistente nasceu em 1940 no Barreiro, uma zona operária onde palpitava, silenciosamente, a contestação ao regime. A sua militância começou muito cedo. Aos 15 anos colaborou com o MUD-juvenil. Aos 17, entrou na Faculdade de Medicina e integrou a Comissão Pró-Associação. Aos 18, entrou para o Partido Comunista Português e passou para a direcção clandestina do PCP na Cidade Universitária. Isabel do Carmo distinguiu-se, ainda, nas lutas académicas de 1962 por pedir a palavra no meio de grandes plenários universitários, focos de “poder masculino”.

Eu atrevi-me! Nos grandes plenários no Estádio Universitário, onde falavam só os rapazes, eu pensei: isto não pode ser. E então subi ao palanque e pedi a palavra. Fui realmente a única, com rapazes muito aflitos de me ouvir falar e eu um bocado stressada, não é? Mas cheguei-me à frente e falei de lá de cima e disse que as mulheres não eram só o repouso do guerreiro! Que as mulheres eram o guerreiro também!

Guerreira e determinada. Isabel do Carmo esteve presa duas vezes em Caxias, onde foi submetida a regime de isolamento. A primeira vez foi em 1970 e a segunda em 1972 depois de ter escrito um panfleto a denunciar a morte do estudante universitário Ribeiro Santos. Também foi aos temíveis interrogatórios da PIDE e conheceu a agente Madalena “que ficou conhecida de todas as mulheres presas porque era uma mulher completamente psicopata”. Quanto ao tempo que passou na cadeia, para ela, “a pior coisa que pode haver numa prisão é o isolamento”.

“Estive num isolamento muito, muito, muito, muito grande porque havia celas voltadas para o campo e havia outras voltadas para um muro onde passeava um soldado em cima. As celas eram mesmo de verdadeiro isolamento. Tiravam o relógio, tiravam livros, ficávamos sem nada. Acho que realmente a pior coisa que pode haver numa prisão é o isolamento. Dei-me verdadeiramente mal com o isolamento”, conta.

Isabel do Carmo licenciou-se e doutorou-se pela Faculdade de Medicina de Lisboa, mas foi impedida pela PIDE de integrar o corpo de assistentes da Faculdade. Fez, ainda, parte dos corpos gerentes da Ordem dos Médicos até esta ser fechada pela PIDE em Novembro de 1972. A activista esteve na comissão política da Comissão Democrática Eleitoral (CDE) de Lisboa, em 1969. Depois das "eleições", convenceu-se que era necessária a luta armada para derrubar o fascismo. Em 1970, saiu do PCP porque tinha uma posição anti-estalinista e exigia a luta armada prometida, mas ainda não cumprida. Depois disso, fundou as Brigadas Revolucionárias com Carlos Antunes, que se encontrava em Paris. A organização defendia o recurso à violência revolucionária como arma política, em estreita solidariedade com os povos que lutavam pela sua independência.  A filosofia “era abalar o regime sem matar pessoas”, sublinha.

A filosofia era esta: era abalar o regime sem matar pessoas. Foi sempre, desde o princípio, uma orientação nossa que era de não provocar morte de pessoas e ter alvos que realmente abalassem o regime. Sobretudo alvos militares, visto que estávamos em guerra. Este era o núcleo da questão das acções. E, depois, era realmente incutido, dentro do conjunto da organização, esta posição anti-estalinista. Este foi o espírito. Achámos que devíamos fazer acções antes de fazer papéis, documentos e manifestos porque as pessoas gastavam muita energia a fazer papéis, a fazer documentos, a fazer textos e, às vezes, eram presas só porque estavam a fazer isso. Nós resolvemos que não fazíamos papéis. Fazíamos, antes de tudo, acções. E foi assim que começaram as acções. Houve acções das Brigadas Revolucionárias quase até ao 25 de Abril.

Além de ter sido “a primeira organização que aparece com uma mulher na direcção”, houve outras mulheres nas Brigadas Revolucionárias.

Houve mulheres que integraram directamente os assaltos a bancos e integraram as acções de colocação de bombas para rebentar determinados alvos. Não foram muitas as mulheres que entraram propriamente nas acções, mas todas as acções integraram mulheres. E depois, quando o movimento se alargou aos chamados católicos progressistas, houve bastantes mulheres.

 

A sabotagem à NATO, a destruição de chaimites e os porcos almirantes nas ruas de Lisboa

A primeira acção das Brigadas Revolucionarias foi a sabotagem às instalações da NATO, na Fonte da Telha, a 7 de Novembro de 1971. Ocorreu poucos dias depois de a ARA, Acção Revolucionária Armada, ter colocado um engenho explosivo nas novas instalações do Quartel-General da NATO em Oeiras, o COMIBERLANT. Ou seja, em poucos dias, duas importantes estruturas da NATO em Portugal eram atingidas por dois grupos de resistência armada contra o regime ditatorial.

Foi com uma grande bomba porque, nessa altura, nós não tínhamos acesso a plástico e foi o Carlos Antunes que fabricou. Eu arranjei o nitrato, vários caixotes de nitrato porque a bomba era feita de nitrato com pó de alumínio e depois com o respectivo detonador. Foi uma grande bomba com muitos caixotes de nitrato que foi moído com pó de alumínio pelo Carlos Antunes. Foi ele e uma pessoa das Brigadas do Barreiro que transportaram isto para dentro (...) Fez imensos estragos, mas foi pouco visível porque foi uma coisa subterrânea. Era num sítio completamente isolado. A NATO ficou muito alertada. Tinha havido também uma outra acção da ARA nas instalações da NATO e o regime percebeu que isto era a sério.

A 11 de Julho de 1972, as Brigadas Revolucionárias realizam outra acção com grande impacto: a destruição de 15 camiões Berliet do exército que eram destinados à guerra colonial. Esta foi a primeira acção das Brigadas a atingir directamente o aparelho colonial para se oporem à guerra e para demonstrarem a solidariedade com os povos que lutavam pela sua libertação.

Houve, ainda, a 1 de Janeiro de 1973, a ligação à vigília da Capela do Rato, efectuada por grupos de católicos e estudantes, e que foi acompanhada pelo rebentamento de vários petardos colocados pelas Brigadas Revolucionárias em diversos pontos de Lisboa e com a distribuição de um documento que pedia o fim da guerra colonial e apelava à deserção.

Houve uma acção que foi de desmantelamento de chaimites, carros de combate, e essa foi uma grande acção. Foi simples de fazer porque aquilo tinha pouca vigilância, mas foi importante. Depois, foi também a ligação à greve da fome da Capela do Rato. Foi exactamente uma mulher das Brigadas que anunciou que iam fazer a vigília na Capela do Rato. Além dela, havia outras mulheres envolvidas em apoios, a guardar material e houve quem sofresse muito por as casas serem assaltadas e haver lá material, jornais ou copiadores.

Essa acção foi divulgada pouco depois, no dia seguinte nas igrejas, mas também foi divulgada por petardos das Brigadas e foi anunciada pela Rádio Voz da Liberdade que estava em Argel. E aí houve uma internacionalização da informação sobre as Brigadas. Essa acção – que só meteu petardos, não meteu bombas, e que envolveu pessoas que umas eram das Brigadas e outras não sabiam sequer que as Brigadas estavam envolvidas - foi uma acção muito espectacular. Digamos que talvez seja aquela que mais marcou sob o ponto de vista de visibilidade.

A acção mais popular acabou por ser uma largada de porcos vestidos de almirante. Estávamos a 25 de Julho de 1972, o almirante Américo Tomás era reeleito Presidente da República por um colégio eleitoral e as Brigadas Revolucionárias lançavam no Rossio e em Alcântara, em Lisboa, dois porcos vestidos de almirante. Ao mesmo tempo, eram distribuídos panfletos a denunciar a farsa eleitoral.

Essa foi a mais popular de todas. Até as pessoas que largaram os porcos achavam que aquilo não ia ter graça nenhuma, mas foi a acção mais popular de todas. Eles foram comprar porcos ali a um criador de porcos do Montijo e vestiram os porcos de almirante porque ia haver mais uma eleição do Presidente da República e era uma farsa. E, portanto, os porquinhos vestidos de almirante foram largados no Rossio e depois em Alcântara e os porcos a fugirem e os polícias atrás deles deram um grande espectáculo. Teve uma grande repercussão, teve mais do que aquilo que nós pensávamos. A certa altura já recebíamos telefonemas do estrangeiro a perguntar o que é que se passava com os porcos almirantes!

As Brigadas Revolucionárias foram mais longe e Isabel do Carmo conta que um soldado transportou uma bomba de plástico dentro de um queijo de Portugal para o quartel-general do exército português na Guiné-Bissau. Foi a 22 de Fevereiro de 1974. O engenho deflagrou, mas não durante a reunião das chefias militares, e provocou ferimentos com estilhaços no General Galvão de Figueiredo, na altura Comandante em Chefe na Guiné-Bissau. A acção foi também reivindicada pelo PAIGC.

Era um camarada nosso que foi mobilizado para a tropa na Guiné-Bissau. Ele transportou a bomba dentro de um queijo e levou o queijo como se fosse do farnel dele. Portanto, no queijo tirou-se a tampinha de cima, o plástico foi metido dentro do queijo e o queijo fechado outra vez. E foi assim que foi levado por um soldado para a Guiné-Bissau, para as instalações da chefia da Guiné-Bissau. Foi lá que rebentou. Não matou ninguém, mas foi estar dentro do coração da guerra.

E o medo nisto tudo? Havia medo? Isabel do Carmo diz que havia medo, claro, mas que nunca entrou em pânico e que cumpria todos os cuidados na clandestinidade. Sobre o manejo de armas, ela admite que não aprendeu nada porque “as armas eram muito rudimentares, eram pistolas e não é preciso muita esperteza para saber como é que uma pistola se acciona”. Quanto a Carlos Antunes, aprendeu a fazer os engenhos explosivos em França com um manual para fazer as covas das vinhas... 

Depois da Revolução de 25 de Abril de 1974, Isabel do Carmo foi uma das figuras mais destacadas do PREC, Período Revolucionário em Curso, mas com o 25 de Novembro verificou que o projecto revolucionário em que acreditara tinha sido derrotado. Ainda esteve presa entre 1978 e 1982, por alegada cumplicidade e encobrimento em assaltos a bancos, mas sublinha que nada foi provado. Em 2004, foi condecorada pelo Presidente Jorge Sampaio com o grau de grande oficial da Ordem da Liberdade, a mais alta condecoração atribuída aos cidadãos que contribuíram para democratizar Portugal.

A reputada médica, que quis tratar da saúde da ditadura, fez ainda parte do conselho consultivo do Museu do Aljube e esteve ligada ao movimento “Não Apaguem a Memória”. Em 2017, publicou Luta Armada. Escreveu, ainda, Puta de Prisão com Fernanda Fráguas, Vozes Insubmissas com Lígia Amâncio e Histórias que as mulheres contam, entre muitos outros livros.

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