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Os "invisíveis" de Paris que lutaram contra a guerra colonial e a ditadura

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Paris foi um abrigo para muitos exilados portugueses e inscreveu-se no mapa das lutas políticas contra a ditadura e a guerra colonial. Comités de apoio a desertores, jornais, concertos de música de intervenção, teatro, angariação de fundos para as famílias de presos políticos e para os trabalhadores em luta em Portugal foram algumas das formas encontradas na emigração para resistir à ditadura portuguesa.

Vasco Martins, Presidente da Associação Memória Viva. Paris, 26 de Fevereiro de 2024.
Vasco Martins, Presidente da Associação Memória Viva. Paris, 26 de Fevereiro de 2024. © Carina Branco/RFI
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Nos 50 anos do 25 de Abril, a RFI falou com vários resistentes ao Estado Novo. Neste programa, ouvimos, em Paris, Vasco Martins e Artur Monteiro de Oliveira.

Entre 1961 e 1974, houve cerca de 9.000 desertores e 20.000 refractários, aos quais se juntaram 200.000 homens que nunca compareceram quando chamados pelos regimentos. Os dados são do historiador Miguel Cardina, baseado nos arquivos do exército português e retomados na obra “Refuser la Guerre Coloniale” (2019). A maioria exilou-se em França, outros instalaram-se no Luxemburgo, na Suécia, nos Países Baixos, na Dinamarca, na Alemanha, na Bélgica e no Reino Unido. Paris era quase sempre um local de passagem obrigatório e muitos jovens eram ajudados por redes familiares ou de amizade, organizações políticas e caritativas francesas e comités de apoio aos desertores.

Algumas dezenas” de exilados portugueses passaram pelo 15 Rue du Moulinet, em Paris, a casa onde vivia Vasco Martins depois do Maio de 68. Eram insubmissos, desertores e refractários que recusavam a guerra colonial. A história de Vasco Martins é contada no documentário “As Mãos Invisíveis”, de Hugo dos Santos, porque Vasco foi um desses anónimos que ajudou o movimento de apoio aos desertores.

Fomos à Associação Memória Viva, presidida por Vasco Martins, em Paris, para viajarmos até àqueles tempos de luta. Ele começa por contar que foi viver para o número 15, Rue du Moulinet, depois de ter participado no Comité de Acção de Paris 14 durante o movimento de Maio de 68.

No fim desse ano, fui para uma casa em Paris e nessa casa tive a oportunidade de começar a receber. Eu tinha condições possíveis para receber refractários e desertores e foi assim que começou. Quer dizer, não era realmente um comité nessa altura, mas foi aí que começou realmente a desenvolver-se. Eram refractários e desertores que vinham de Portugal, que atravessavam a Espanha clandestinos e que chegavam a França. E era a maneira de poder albergar e tentar arranjar-lhes trabalho de maneira a que as pessoas se pudessem desenrascar.

Vasco Martins não sabe, ao certo, quantas pessoas acolheu, mas diz que foram “algumas dezenas”, não apenas jovens que saíam de Portugal antes de serem mandados para a guerra nos territórios colonizados, mas também “desertores que vinham da frente dos combates, nomeadamente da Guiné-Bissau”.

Anos mais tarde, Vasco Martins descobriu que estava na mira da PIDE, assim como a sua casa na rua do Moulinet.

Foi uma coisa que só vi muitos anos depois, na Torre do Tombo, onde estava realmente o meu mandado de captura pela PIDE. O 15 Rue du Moulinet foi denunciado e no comunicado da PIDE estava o meu nome completo. A PIDE dizia que tinha desmantelado uma rede de apoio aos refractários e desertores, que essa rede ia até o 15 Rue du Moulinet. Realmente estava um comunicado da PIDE, onde exigiam a minha captura. Houve jovens que falaram no café ou noutros sítios e chegou à PIDE através de bufos.

O que o motivava a abrir a sua casa a tanta gente era, em primeiro lugar, “a vontade de acabar com a guerra colonial”. Depois, porque esperava que “em Portugal se criasse um regime realmente democrático que defendesse os interesses dos trabalhadores”. Por outro lado, acreditava simplesmente que era o seu “dever”.

Vasco Martins era também refractário. Em Abril de 1961 foi à inspecção e em Setembro deveria começar a tropa. Totalmente contra a guerra colonial, que começou em Fevereiro desse ano, em Angola, Vasco deixou Setúbal rumo a Paris no Verão, a bordo de uma carrinha de ostras. Se a polícia perguntasse, era simplesmente o ajudante para carregar e descarregar a mercadoria que ia de Setúbal para Turim, na Itália.

Pouco tempo depois de chegar a França, Vasco Martins começou a participar nos comités de apoio às famílias dos presos políticos em Portugal.

A minha primeira actividade, logo nos primeiros anos em que eu cheguei a Paris, foi participar no apoio às famílias dos prisioneiros políticos. Havia reuniões, nomeadamente na Rua Vaugirard, onde - na altura não me tinha apercebido, mas depois apercebi-me -  havia realmente pessoas ligadas ao Partido Comunista Português e também a uma parte da Igreja Católica, padres, operários portugueses que participavam activamente nas campanhas que eram feitas. Vendíamos senhas e o dinheiro angariado era levado para Portugal para ajudar as famílias dos presos políticos.

O combate continuou com a angariação de fundos para os trabalhadores em luta em Portugal e com a ajuda aos portugueses que já estavam ou chegavam a França.

Nas associações e clubes, não só havia as actividades do futebol, havia as actividades de música, teatro e também procurávamos dar uma certa ajuda social no sentido de preencher os documentos em relação à assistência social e tudo isso. Por outro lado, era também falar a propósito da situação em Portugal. Criámos boletins e também jornais, nomeadamente o Jornal do Emigrante. Foi um dos primeiros a serem criados. Era graças ao apoio da Liga Portuguesa do Ensino e da Cultura Popular que distribuíamos e vendíamos também nos mercados e à volta de Paris e dentro de Paris também.

Os fundos também eram angariados em festas, nas quais participavam cantores como José Mário Branco, Tino Flores, Francisco Fanhais e outros. O montante angariado e o destino do dinheiro era depois afixado nas associações e também, por exemplo, no jornal O Alarme, criado em 1972, em Grenoble, e que era vendido em Paris e noutras cidades.

No clube da juventude franco-portuguesa, Vasco Martins também participou na campanha de denúncia internacional da deportação do opositor Mário Soares para São Tomé e Príncipe, assim como na campanha para libertar outro resistente à ditadura, o dirigente da LUAR Hermínio da Palma Inácio, quando este conseguiu fugir da prisão da PIDE no Porto e foi capturado em Espanha.

 

“Estava absolutamente decidido em não fazer a guerra”

 

Artur Monteiro de Oliveira. Paris, 19 de Dezembro de 2024.
Artur Monteiro de Oliveira. Paris, 19 de Dezembro de 2024. © Carina Branco/RFI

 

Como Vasco Martins, também Artur Monteiro de Oliveira saiu de Portugal determinado em não ir para a guerra colonial. Chegou a França em 1966, a salto, ou seja, clandestinamente, como tantos milhares de portugueses fizeram durante a ditadura. Entre 1957 e 1975 chegaram a França 900.000 portugueses, 550.000 dos quais o fazem ilegalmente e arriscando a vida, de acordo com dados publicados na obra “Refuser la Guerre Coloniale”.

Estava absolutamente decidido em não fazer a guerra, portanto ao sair da cadeia, tinha 19 anos, tinha que ir para a tropa. Recebi uma ordem de apresentação no quartel-general e depois ia para Penamacor, que era para onde iam as pessoas que tinham saído de prisão. As pessoas que tinham questões políticas, e que passavam por Penamacor, iam directamente para a Guiné-Bissau.

Artur foi obrigado a desistir dos estudos e começou a trabalhar aos 13 anos na firma Neolux, que produzia anúncios luminosos. Aos 15 anos começou a colaborar com o Partido Comunista Português e, a partir dos 17, iniciou actividade clandestina mais séria. A certa altura, pedem-lhe que acolha uma funcionária do partido em casa da mãe, que alugava quartos. Ainda que tenha abrandado o trabalho partidário para não levantar suspeitas, acabou por ser preso pela PIDE em Outubro de 1965. Tinha 19 anos e ficou na prisão da polícia política no Porto até Fevereiro de 1966.

A tortura que tive foi o que se chamava, na altura, a estátua. Quer dizer, durante sete dias não pude dormir. Era uma tortura muito banal, frequente. Houve uma altura que apanhei assim uns abanões. Há pessoas que foram muito torturadas. Conheci pessoas que foram torturadas, o que não foi, portanto, o meu caso, a não ser a estátua, que foram sete dias e seis noites, de pé na cela, com um polícia que se revezava porque eu não podia estar sozinho, não me deixavam sentar, não me deixavam encostar à parede.

Quando saiu da prisão, Artur decide, então, “dar o salto” e aventura-se, meses depois, rumo ao exílio. Iniciou a viagem para França na noite de São João em 1966 e chegou a Paris no início de Julho. Graças a alguns contactos, foi parar ao Quartier Latin e começou a trabalhar na fábrica da Renault. Inscreve-se na CGT e vive a sua primeira revolução: o Maio de 68. Foi escrevendo para jornais a alertar para a situação portuguesa e integrou a Liga Portuguesa do Ensino e da Cultura Popular.

Criada em 1965, a Liga organizava conferências sobre Portugal, fundou uma companhia de teatro e publicou o Jornal do Emigrante. Nos anos seguintes, vários movimentos dirigem-se aos trabalhadores emigrantes através de jornais como O Salto, Fronteira, A Voz do Imigrado; através de companhias de teatro, como O Teatro Português de Paris e o Teatro Operário Português; festas nas quais participam cantores exilados como Luís Cília, José Mário Branco, Sérgio Godinho e Tino Flores. Em Maio e Junho de 68, a casa dos estudantes portugueses na Cidade Universitária de Paris foi ocupada e tornou-se um espaço de discussões e debates.

A partir de Paris, Artur Monteiro de Oliveira também arregaçou mangas para denunciar o que se passava em Portugal e para ajudar os que tinham fugido da ditadura. Fê-lo através de artigos em jornais, de acção social, do teatro e do apoio ao movimento dos desertores e refractários. Escreveu, muitas vezes com pseudónimos, para O Trabalhador e o Jornal do Emigrante, difundidos junto da emigração, para O Comércio do Funchal, que descreve como “um jornal de resistência”, e para o República. Porém, aquilo que considerava a sua “actividade principal” era a “acção social junto da emigração”.

O facto de ter uma actividade social junto da emigração era, para mim, uma forma de entrar em contacto com a emigração, distribuir os jornais que nós fazíamos aos portugueses, dar informações sobre o que se passava em Portugal, informações que em Portugal não saíam e  que, por vezes, eram traduzidas dos jornais franceses.

Ainda que Artur diga que a sua “contribuição foi muito modesta”, a PIDE não pensava da mesma forma. Na fronteira portuguesa, havia um caderno com fotografias de indivíduos considerados “perigosos” e ele fazia parte. Por isso, não podia regressar a Portugal.

Paris foi um abrigo para muitos exilados portugueses e inscreveu-se no mapa das lutas políticas contra a ditadura e a guerra colonial. Alguns nomes fizeram história em Portugal, outros ficaram anónimos e preferiram continuar a viver em França e a abraçar novas lutas até hoje. Vasco Martins e Artur Monteiro de Oliveira continuam no mundo associativo. O primeiro dirige a Associação Memória Viva que faz actividades para a recolha e transmissão da memória da emigração portuguesa em França e o segundo está na associação Seuil que acompanha jovens em contexto social e educativo difícil e na associação Anticor de luta contra a corrupção. 

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