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A arte foi “lugar de intervenção” e “liberdade” em 2023

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Neste programa, vamos dar um salto até alguns palcos de 2023, lugares onde se escreveram páginas de intervenção, de liberdade, de invenção e de empoderamento. No teatro, na dança, no cinema, na literatura, na música e em tantos outros “lugares”, vários artistas mostraram que criar também é resistir.

A "Carriere de Boulbon" é um dos palcos históricos do Festival de Avignon. 4 de Julho de 2023.
A "Carriere de Boulbon" é um dos palcos históricos do Festival de Avignon. 4 de Julho de 2023. AFP - NICOLAS TUCAT
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O ano de 2023 foi marcado por projectos artísticos que criaram pontes e alargaram horizontes a partir do teatro, dança, literatura, música, cinema… A RFI acompanhou alguns e propõe neste programa uma viagem até certos desses momentos.

21:46

Dos palcos até à RFI

Em Novembro, Maputo foi palco da 10ª edição da Bienal KINANI que também acolheu, este ano, a Bienal de Dança Africana. Uma bienal a dobrar com vários coreógrafos moçambicanos em cartaz a mostrar que Moçambique está “a viver um momento histórico” no mundo da dança. As palavras são de Quito Tembe, director artístico da KINANI, para quem a dança é “um lugar de intervenção”, pelo que o cartaz teve como algumas linhas de força a busca das raízes e a luta contra diversos tipos de opressão. “É importante olhar para a dança não somente como lugar do ‘estético belo’ mas como um lugar de intervenção”, afirmou.

Quito Tembe é um dos cinco comissários do Fórum de Curadores Internacionais da Bienal de Dança de Lyon, em França, um grupo que está a preparar projectos para a próxima edição de 2025. O trabalho começou este ano, em Setembro, na bienal francesa que é um dos encontros mais importantes da dança contemporânea a nível mundial e que foi, pela primeira vez, dirigida por um português. Tiago Guedes programou espectáculos que admitiu terem uma “militância social forte” para abrir "novas formas de encarar o mundo" e quis mostrar “a diversidade do que é a dança contemporânea” e “suprimir a palavra elitismo” deste universo. 

Por que é que é um acto artístico, social e político: é social no sentido em que nós defendemos que a Bienal é uma bienal popular, para toda a gente, então se é um acto social, ela tem que verdadeiramente chegar para além daquelas pessoas que já estão conectadas para a dança. Político no sentido das escolhas, ou seja, quando programas, tu escolhes o que dás a ver ao público e isso é um acto da escolha e um acto político também do que é que a dança pode ser hoje na sociedade, ou seja, como é que nós podemos ver o mundo através de um lado mais sensível ou mais brutal, ver o mundo através dos corpos e da escrita dos artistas. Isso para mim é algo que me interessa muito e que eu acho que é muito necessário nos dias de hoje.

Um dos espectáculos que esteve em cartaz na Bienal de Dança de Lyon foi “Liberté Cathédral”, do Tanztheater Wuppertal, a companhia fundada pela coreógrafa alemã Pina Bausch, que vai passar a contar com a bailarina cabo-verdiana Luciény Kaabral. O convite surgiu depois de ela ter participado na “A Sagração da Primavera”, com 38 bailarinos de 14 países africanos, na "École des Sables", no Senegal e que foi exibido no documentário "Dancing Pina", de Florian Heinzen-Ziob.O convite teve um peso simbólico porque Pina Bausch é “uma lenda” que acompanhou o percurso de Luciény Kaabral na dança e que a ensinou “a contar uma história verdadeira” com o corpo.

Fazer o belo, fazer para mostrar bonito não é o objectivo. Podemos chegar lá - ou aos olhos dos espectadores podemos chegar lá - mas nós não estamos a dançar para alguém. Eu lembro-me do que ela já tinha dito, e foi repassado pelos bailarinos que trabalharam com ela, que é: 'Dança como se ninguém estivesse a ver'. Ou seja, é realmente de dentro para fora e, muitas vezes, lá nos ensaios, é exactamente o que nós passávamos. Tantas horas a repetir a mesma coisa, mas não é repetir a fazer a mesma coisa. É repetir até que o corpo sinta e grave aquela emoção que gera esse movimento e todas as partes do corpo estão envolvidas. Através da respiração eu conseguia atingir isso, mas só conseguia porque havia uma emoção por trás, havia um sentimento que nem sempre tem a ver com a história da peça, mas que tem a ver comigo mesma, com a forma como eu me sinto naquele dia. Por isso é que eu digo que é contar uma história verdadeira.

Dança e teatro a contarem histórias e a fazerem história também em português. Este ano, pela primeira vez, o Festival de Avignon teve aos comandos um artista não francês. O encenador, actor e dramaturgo português Tiago Rodrigues fez do festival um “combate pela liberdade artística” em que a vulnerabilidade humana se transformou em força para inventar outras formas de se viver.

Eu julgo que nós seguimos os artistas. Esse é um dos combates do Festival de Avignon. É o combate pela criação, pela liberdade artística e seguir as ideias e os desejos e as urgências dos artistas. Portanto, não havia um tema, à partida, que procurássemos. Hoje, olhando para esta programação, há uma espécie de estrutura que emerge, um fio invisível que atravessa toda a programação, que é a capacidade que têm os artistas e as artistas de observar a vulnerabilidade humana, seja a vulnerabilidade colectiva, social, económica ou a vulnerabilidade individual, íntima, emocional, biológica, e transformar essa vulnerabilidade em criação. Olhar para a fragilidade, para a dificuldade, para a complexidade e ver aí um território fértil para a invenção e, muitas vezes, a invenção de uma fantasia, de um imaginário de outras formas de vivermos.

Liberdade foi também o mote do Mindelact, Festival Internacional de Teatro do Mindelo, na ilha de São Vicente, em Novembro. Em conversa com a RFI, após a abertura oficial do Mindelact 2023, o director artístico do Mindelact, João Branco, destacou que, pela primeira vez, a programação foi maioritariamente composta por espectáculos dirigidos e interpretados por mulheres. “Eu acho isso extremamente importante, para além das múltiplas temáticas que estão sendo desenvolvidas, falando um pouco da nossa história”, afirmou.

A vulnerabilidade e a força humanas também estão nas páginas de “Misericórdia”, o romance da escritora portuguesa Lídia Jorge que conquistou, a 9 de Novembro, o Prémio Médicis Étranger, em ex-aequo com "Impossibles Adieux", da sul-coreana Han Kang. Lídia Jorge é a primeira autora de língua portuguesa distinguida com o galardão, criado em França em 1970. “Misericórdia” é o palco de "uma batalha humana" onde as pessoas enfrentam o desafio do tempo mesmo que sejam atiradas para “uma outra humanidade”.

Nós temos a ideia de que, a partir de certa idade, as coisas se apoucam. Que os sentimentos se apoucam, que a vida não tem mais a vivacidade que tinha. A minha experiência é exactamente o contrário! Acho que as pessoas, porque são colocadas perante o desafio do tempo, acabam por engrandecer e por expandir aquilo que são, a parte sentimental. Em geral, há uma ideia de que as pessoas idosas funcionam como uma espécie de 'uma outra humanidade'. Não é, têm exactamente em tudo os mesmos sentimentos que, naturalmente, se tem. O Hotel Paraíso, onde tudo isto decorre, acaba por ser um palco de batalha ! Digamos da batalha humana com o que tudo acontece. Não só as memórias de quem lá está, mas também a reacção destas mesmas figuras em relação àquilo que está a acontecer no mundo. Portanto, é um sítio que funciona como uma espécie de "pára-raios" do tempo.

Outro “palco de batalha” é o dos migrantes também “atirados”, muitas vezes, para caminhos de “uma outra humanidade”. As dores da emigração cabo-verdiana abriram a "Semana da crítica” do Festival de Cannes, com o filme "Ama Glória". A protagonista é Ilça Moreno Zengo para quem “o filme mostra a real história da emigração”.

Também no Festival de Cannes, no encerramento da mostra ACID, consagrada ao cinema independente, esteve o filme “Nome” do cineasta guineense Sana Na N'Hada. Uma viagem até aos anos da luta de libertação da Guiné-Bissau que, a 24 de Setembro deste ano comemorou os 50 anos da independência. A ficção do filme conta com imagens dos arquivos da luta de libertação filmadas pelo próprio cineasta nos “tempos da luta”.

Combater o racismo e empoderar as mulheres são linhas de força do sétimo álbum da cabo-verdiana Lura, “Multicolor”. A artista apresentou o disco em Paris em Outubro. "É o disco de uma Lura mais afirmativa, com uma consciência maior do que se passa à minha volta e este disco toca várias temáticas que me preocupam e fazem parte de mim, a questão da identidade, da auto-estima, empatia e importar-se com o outro. E a força da mulher na sociedade", declarou à RFI, em Paris.

Também a cantora cabo-verdiana Elida Almeida lançou no final de Janeiro novo álbum. "Di Lonji" que quer respeitar a tradição, mas de braços abertos para as influências que também compõem a música de Cabo Verde.

Guardo a minha tradição, mas porque não inovar, se estamos a falar de um dos povos mais mestiços do Mundo? A nossa música também veio desta mestiçagem, veio destas misturas. Cada vez que íamos para o Brasil, para o México, para a Europa, trazíamos alguma coisa a mais para a nossa música, então porque parar agora com esta fusão? Eu sou a favor de continuar a abrir as portas.

A "maioria das portas" foi aberta pela "diva dos pés descalços" que é homenageada no documentário “Cesária Évora” que chegou às salas francesas no final de Novembro. Uma viagem à intimidade da cantora cabo-verdiana que conta com imagens inéditas e testemunhos dos que conheceram a artista. O filme foi realizado por Ana Sofia Fonseca que quis mostrar “a complexidade humana da Cesária”.

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