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"Muitos países estão à espera desta pausa para acudir a população de Gaza"

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Ao 47º dia de conflito, o governo israelita deu luz verde a um acordo para garantir a libertação de 50 reféns detidos pelo Hamas em troca de prisioneiros palestinianos e de uma trégua de quatro dias na Faixa de Gaza. "Israel está a sentir mais do que nunca uma pressão internacional, incluindo da parte dos Estados Unidos que continua a ter um controlo logístico sobre Tel Aviv", lembra o coordenador do mestrado de Relações Internacionais na Universidade de Abu Dhabi, Ivo Sobral.

Acordo de cessar-fogo na Faixa de Gaza.
Acordo de cessar-fogo na Faixa de Gaza. AFP - JOHN MACDOUGALL
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Gaza e os seus habitantes vão viver uma trégua de quatro dias de pausa humanitária, concedida por Israel em troca da libertação de 50 dos reféns nas mãos do Hamas. Depois de um mês e meio de bombardeamentos, mais de três semanas de operações terrestres, esta é a notícia que os habitantes de Gaza esperavam?

Ivo Sobral: Neste momento existe um grande sufoco logístico em Gaza. Israel estava literalmente a sufocar estes milhões de palestinianos por uma imposição normal de guerra, que são regras de guerra; eliminar coisas como o acesso à água, telecomunicações, electricidade - afectando de forma grave toda esta população palestiniana. Este [último] mês, assistimos a  guerra intensiva por parte de Israel com a invasão terrestre com vários milhares de soldados, blindados e tanques, assim como bombardeamentos cirúrgicos constantes, 24 horas por dia. Neste momento, penso que a maioria da população palestiniana estaria com condições mínimas de vida porque falta  água, falta  alimentação e paz. Um limite nesta guerra irá ser muito importante para essa população, assim como para todas as organizações de cooperação internacional e de ajuda humanitária, que terão a possibilidade de assistir todas estas pessoas nos próximos dias. 

Este é o primeiro sinal tangível de trégua depois de várias semanas de guerra, mas ainda não se conhecem detalhes sobre o acordo; quando é que vai ser aplicado, provavelmente amanhã a partir das 10 horas, como afirma o grupo Hamas. Segundo o jornal israelita Haaretz , “trinta crianças, oito mães e outras doze mulheres” seriam libertadas pelo Hamas em troca de 150 prisioneiros palestinianos. A lista divulgada por Israel inclui o dobro de nomes – 300 pessoas – devido à possibilidade de o Hamas libertar mais reféns israelitas em troca de mais prisioneiros. O que se sabe sobre as negociações que juntaram Israel , Estados Unidos, Catar e Egipto?

É uma grande vitória para o Qatar que, desde o início, se movimentou muito bem em toda esta situação. O Qatar emergiu como um negociador bastante hábil, que consegue falar com todas as partes. A meio do mês passado, existiram algumas acusações por parte de Israel dirigidas ao Qatar, mas o Qatar concretizou este acordo. Um acordo muito importante, apesar de ter havido adiamentos em relação a esta negociação. Israel mostrou vontade de manter famílias juntas, pelo menos pais e mães juntos dos filhos e foi isso que o Qatar conseguiu fazer com este número de reféns que vão ser libertados. Este é um início porque existe uma lista maior de prisioneiros palestinianos que estão em Israel, que poderão ser libertados. Israel também prometeu que por cada 10 reféns libertados iria haver 24 horas de continuação da pausa humanitária. Em termos diplomáticos é uma grande vitória para o Qatar e para os Estados Unidos. Para os Estados Unidos esta última semana foi cheia de avisos à navegação por parte do departamento de Estado norte-americano relativamente a uma maior cooperação e aceitação por parte de Israel, aludindo uma crise humanitária iminente. Para os Estados Unidos negociar esta paz, nem que seja uma curta paz, é também a afirmação da continuação dos Estados Unidos como um pivot fulcral para tudo o que possa acontecer no Médio Oriente. 

O Egipto, o último interveniente nesta negociação, é importante porque o governo de Abdel al-Sisi necessita desta visibilidade internamente para o próprio Egipto, mas também externamente. O Egipto é uma potência regional que teve, muitas vezes, dificuldade em mostrar o seu próprio poder e a sua influência. É ajudado por outros países do Golfo, assim como pelos Estados Unidos para se manter, em termos diplomáticos, nesta liderança do Médio Oriente. Para o governo de Sissi é uma vitória muito importante, estava a ser pressionado por todos os lados. Não sabemos o que vai acontecer, mas o Egipto vai ser um dos países mais importantes no que vai acontecer depois.

Preocupado com o aumento da pressão internacional durante esta trégua de quatro dias, Benjamin Netanyahu defendeu que a operação militar seria retomada logo depois a um ritmo acelerado, deixou claro que Israel está em guerra e vai continuar a guerra até atingir todos os objectivos:  eliminar o Hamas, libertar todos os reféns e pessoas desaparecidas.

Israel está a sentir, como nunca, que o mundo está diferente. O mundo das guerras anteriores que Israel defrontou em que, inclusive, o líder era exactamente o mesmo, Benjamin Netanyahu, esse mundo é [hoje] diferente. Esta pressão internacional é muito mais forte e muito mais palpável do que no passado, onde certas coisas eram toleradas. Agora com os media, com um activismo político bastante galopante, tudo é muito semelhantes aos anos 70  em que existiram uma série de movimentos europeus e internacionais em prol da causa palestiniana. Neste momento, estamos a assistir, de novo, a uma onda de apoio que pressiona Israel contra uma parede e são os próprios Estados Unidos que também pressionam Israel nesse sentido, o que é relativamente novo. Apesar de no início os Estados Unidos apoiarem de forma incondicional Israel, rapidamente esse apoio começou a esfumar-se porque os Estados Unidos continuam a manter um controlo logístico sobre Tel Aviv. A maioria das munições, dos projéteis, das bombas de precisão, assim como outros sistemas vêm dos Estados Unidos. Israel necessita do apoio americano.

O Qatar tem sido criticado desde o início do conflito porque considerava o Estado judeu “único responsável” pela vilência ao mesmo tempo que condenou veementemente a tomada de reféns do Hamas. Anfitrião dos principais líderes políticos do movimento islâmico, estabeleceu contacto com Washington desde o primeiro dia. Como se explica esta ambivalência?

O Qatar tem tido uma política externa bastante sui generis nos últimos vinte anos. O Qatar já pagou caro esta mesma política independente e neutral. Além das críticas no passado, existirão embargos dos países do Golfo em relação ao Qatar, mas ele manteve sempre a mesma política. Um dos baluartes é a representação de qualquer parte; desde o início do ano 2000, por exemplo, o Afeganistão tinha uma presença diplomática no Qatar, quando falo do Afeganistão falo do movimento Talibã que tinha um representante diplomático no Qatar, assim como a maioria das frentes e das organizações palestinianas e muitas organizações presentes na Síria e Iraque têm uma presença no Qatar, que é um porto de abrigo. Esta posição trouxe-lhe sempre problemas e críticas.

No que está a acontecer entre Israel e o Hamas em Gaza existirão críticas, inclusive aqui do Golfo em relação ao papel do Qatar. Estas críticas continuam e não sei que tipo de consequências terão no futuro relativamente a estas acções. O Qatar está a emergir como uma Suíça do Golfo, mas o Médio Oriente não é a Europa e há consequências para todas essas acções. Este é um exercício difícil para o Qatar e é um perpétuo exercício de equilíbrio que não é para todos e por vezes não é conseguido. Quase toda a leadership do Hamas está a viver em hotéis no Qatar e é bastante complexo falar sobre isso.

Segundo a ONU, quase 1,7 milhões dos 2,4 milhões de habitantes foram deslocados pela guerra na Faixa de Gaza. A Unicef ​​descreve uma “tragédia” sanitária em Gaza , devido à falta de combustível e água. O acordo vai também permitir que a Cruz Vermelha possa ter acesso aos reféns ainda detidos, para prestar cuidados médicos.

Não sei se terão acesso directo aos reféns israelitas, mas a ajuda que irão providenciar a Gaza irá também chegar aos reféns. Ontem li vários relatórios de organizações, coisas como o acesso à água potável estava a acabar. Sabemos que quando a água potável acabar, começa aquele período de incubação de doenças que depois irá afectar a maioria da população. Se não se intervir agora, Gaza ficará ainda pior num curto espaço de tempo. Não tendo acesso a água potável, as pessoas têm de beber a água que existe e isso é uma porta de entrada para complicar, ainda mais, a existência destas pessoas em Gaza. A Cruz Vermelha e outras organizações estão à espera desta pausa. Abu Dhabi está a preparar uma missão para a construção de hospitais dentro de Gaza, assim como suporte a pessoas com problemas oncológicos. Muitos países estão à espera desta pausa para acudir a população dentro de Gaza.

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