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"Igreja portuguesa fez ocultação dos casos de abuso sexual"

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Em Fevereiro, a Comissão Independente para o estudo dos abusos sexuais contra as crianças na Igreja católica portuguesa, apresentou as suas conclusões detectando quase 5 mil potenciais vítimas nos últimos 72 anos, uma situação que ficou durante décadas no silêncio devido, segundo o presidente deste órgão, Pedro Strecht,  à "ocultação" e ao poder da Igreja em Portugal. Para Francisco vai encontrar vítimas dos abusos esta semana durante a Jornada Mundial da Juventude.

Uma vigília em Fevereiro de 2023, organizada à porta do Mosteiro dos Jerónimos, prestou homenagem às vítimas dos abusos sexuais na Igreja portuguesa.
Uma vigília em Fevereiro de 2023, organizada à porta do Mosteiro dos Jerónimos, prestou homenagem às vítimas dos abusos sexuais na Igreja portuguesa. AP - Armando Franca
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Durante mais de um ano, o pedo-psiquiatra Pedro Strecht presidiu à Comissão Independente para o estudo dos abusos sexuais contra as crianças na Igreja católica portuguesa, também conhecida como a comissão "Dar voz ao silêncio", que validou 512 vítimas de abusos sexuais por parte de membros da Igreja e que estima que entre 1950 e 2022 tenha havido um total que se eleva a 4.815 vítimas.

Em média, estas crianças tinham 11 anos quando foram abusadas e o pico dos abusos decorreu entre os anos 60 e 90, primeiro em estruturas como seminários ou casas de acolhimento que recebiam crianças e adolescentes, e, mais tarde, em agrupamentos de escuteiros ou outras estruturas da Igreja. 77% dos abusos relatados a esta comissão foram cometidos por padres.

Em entrevista à RFI, Pedro Strecht diz ter ficado chocado com o sofrimento acumulado por estas vítimas durante décadas de silêncio, com muitas a contarem pela primeira vez os abusos que viveram aos membros desta comissão. Cerca de 43% dos relatos foram feitos pela primeira vez a esta comissão.

"A mim, enquanto médico pedo-psiquiatra, que trabalho mais com crianças e adolescentes no meu dia a dia, chocou-me muito a intensidade dos sofrimentos ressentidos ao longo de anos. Nós acabámos por ter uma idade média no nosso grupo de estudo da nossa amostra de estudo à volta dos 52 anos, mas tivemos muitas pessoas que conhecemos em que falar com os elementos da comissão sobre esta situação foi a primeira vez que o fizeram na sua vida inteira. Eram sofrimentos mantidos em segredo durante 30 ou 40 anos nalguns casos", disse o médico.

Segundo o relatório publicado em Fevereiro deste ano, a Igreja contribuiu e alimentou este silêncio, ocultando os casos conhecidos de abusos sexuais, limitando-se muitas vezes a trocar os padres de paróquia ou diocese, mas não impedindo a continuação dos abusos ou o contacto do agressor com menores.

"Do ponto de vista hierárquico e de poder, em geral, a Igreja fazia ocultação. Portanto ou nem nada era transmitido aos superiores hirarquicos superiores, nomeadamente aos bispos. As coisas eram, entre aspas, resolvidas pelo próprio pároco junto das famílias, porque as famílias sentiam vergonha tal como as vítimas, assim como medo. Mas mesmo quando os relatos chegavam ao conhecimento das pessoas hierarquicamente mais importantes, o que fez com que os abusos durassem muito tempo foi uma atitude clerical onde predominava a defesa da instituição Igreja, muito mais do que das pessoas como vítimas", indicou o presidente da comissão "Dar voz ao silêncio".

Assim, o relatório, segundo Pedro Strecht, mostra que os abusos na Igreja não eram só "sistémicos", mas chegaram a ser "endémicos" nalguns locais. Estes abusos eram cometidos de forma trangeracional, com maior incidência sobre rapazes e mais de 27% dos abusos decarreram durante mais de um ano.

"Houve mesmo décadas e locais em que os abusos foram verdadeiramente endémicos, nomeadamente quando olhamos para os anos 60, 70 ou 80, locais fechados como os seminários ou locais de acolhimento de crianças e adolescentes em risco, e que os abusos decorreram de uma forma sistemática e trangeracional como verdadeiras manchas negras nalguns pontos do país", declarou.

Com o Papa Francisco a encontrar-se esta semana durante a Jornada Mundial da Juventude com um grupo de vítimas da Igreja portuguesa, após uma desculpa formal por parte da Conferência Episcopal Portuguesa, fica agora em aberto a questão da prevenção e das reparações possíveis face às vítimas que durante vários anos não se puderam exprimir sobre o que lhes aconteceu. Para muitos deles não há reparação possível.

"A maioria das pessoas diz que não há reparação possível e o que as pessoas querem dizer é que nada as fará esquecer daquilo que passaram e foram vítimas. Depois é claro que era muito importante a Igreja publicamente pedir desculpa, assumir os erros do passado e fazer a reparação possível das vítimas que tem de ser a vários níveis", contou Pedro Strecht.

Desde Fevereiro, os prazos de prescrição dos crimes de abusos sexuais contra crianças foram alargados em Portugal para 25 anos após a vítima atingir os 18 anos, um dos pedidos desta comissão.

Este órgão enviou também uma lista à Igreja de cem nomes de padres mencionados pelas vítimas durante as investigações e, entre eles, sete padres da diocese do Porto, cujos processos foram entretanto arquivados pela Procuradoria-Geral Regional do Porto por falta de indícios “para a verificação do crime ou de quem foram os seus agentes”.

Já o Patriarcado de Lisboa recebeu uma lista de 24 nomes de suspeitos de abusos sexuais na Igreja, entre eles, cinco que ainda estão no activo.

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