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Filme “Tirailleurs” pode ajudar à “desconstrução de mitos”

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Em França, estreou, esta quarta-feira, o filme "Tirailleurs", do realizador Mathieu Vadepied, que conta a história dos fuzileiros da África Ocidental e Central que participaram na Primeira Guerra Mundial. Um filme de reconciliação entre a memória francesa e africana ou de despertar de feridas nunca fechadas? O investigador Régio Conrado espera que o filme contribua para a “reconstrução da dignidade africana” e para a “desconstrução de mitos” ligados à história das duas guerras mundiais.

Filme "Tirailleurs". Dacar, Senegal. 20 de Dezembro de 2022.
Filme "Tirailleurs". Dacar, Senegal. 20 de Dezembro de 2022. AFP - SEYLLOU
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Teriam sido mais de 200 mil os chamados “tirailleurs sénégalais” [“fuzileiros senegaleses”] na Primeira Guerra Mundial, o conflito retratado no filme que estreia hoje em França. O contingente foi criado no final do século XIX no Senegal - daí o nome - e abarcava soldados da África ocidental e central que participaram também na Segunda Guerra Mundial (cerca de 150 mil), na guerra da Indochina (cerca de 60 mil) e na guerra da Argélia.

Régio Conrado, investigador moçambicano associado ao Instituto de Estudos Políticos da Universidade de Bordéus, começa por destacar que o filme permite “uma revalorização da participação destes africanos do oeste e da África central durante a Primeira Guerra Mundial”, mas também uma “desconstrução dos mitos à volta das duas guerras mundiais em que que os africanos participaram e deram uma grande contribuição para a vitória dos aliados, em particular da França”.

Os franceses, durante muitos anos, desconsideraram a participação destes negros. Nós vimos a forma como foram recebidos aquando da entrada das tropas francesas e americanas em Paris [no desfile de vitória] em que os negros foram praticamente excluídos. Quer dizer que a França tentou renegar uma parte importante da sua história. Sem a participação destes negros, negros africanos, a sua vitória ou o seu desempenho militar teria sido muito fraco”, lembrou o também professor na Universidade Eduardo Mondlane, em Maputo.  

Além disso, o filme faz mais do que interrogar “aquilo que são as diferentes memórias e as diferentes narrativas históricas”.

O filme vem introduzir-se na trajectória da reconstrução da dignidade africana porque, com a ideia que os africanos participaram activamente na Primeira Guerra Mundial e na Segunda Guerra Mundial, obviamente que dá uma dignidade aos africanos, dizendo que nós participámos para a protecção da liberdade.

Régio Conrado explica que “durante a guerra, os africanos eram usados como carne para canhão” e, como se vê no filme, “a morte de africanos na frente de combate não criava tantos sobressaltos comparativamente ao que podia acontecer aos brancos franceses”. Ou seja, o filme abre a possibilidade de “rediscutir uma parte da memória francesa, que não quer ser discutida, que é o problema do racismo estrutural que estava presente tanto da parte do Estado francês, assim como dos próprios oficiais superiores das Forças Armadas francesas”.

“Tirailleurs” tem como protagonista o conhecido actor francês Omar Sy e é dos primeiros filmes a falar abertamente dos “tirailleurs”. Em 2006, “Indigènes” de Rachid Bouchareb, contava a participação na Segunda Guerra Mundial de soldados das antigas colónias francesas, mas apenas oriundos do Magrebe. Porquê este silêncio? "Porque a França não queria reconhecer o papel determinante que esses soldados africanos tiveram no seio da guerraPorque a França foi derrotada e só veio a estar no campo dos vencedores não tanto porque conseguiu participar de forma estruturante para derrubar o exército alemão, mas, em parte, por causa da utilização massiva dos africanos. Temos os ‘tirailleurs  sénégalais’ mas também temos os que vinham da Argélia, da Tunísia, de Marrocos e que participaram activamente para que a França tivesse alguma capacidade de projecção militar", responde Régio Conrado.

Este filme abre, assim, a possibilidade de reconciliação entre as memórias francesa e africana, por um lado, e, por outro, o despertar de feridas nunca fechadas: "Há duas possibilidades. A primeira é uma luta da reconstrução e desconstrução de uma narrativa que consistia em não reconhecer os ‘tirailleurs sénégalais’ que foram determinantes neste processo. O segundo aspecto é que vai abrir feridas porque estas pessoas que deram a sua vida a favor da França não recebiam as pensões correctas e eram - ou são, para alguns ainda vivos - desprezados. Tudo isto vai questionar a relação profunda que a França tinha com as suas colónias”, acrescenta o investigador, lembrando que esses soldados “foram obrigados a participar numa guerra que não era deles".

No dia em que o filme chega às salas, o governo francês informou que estes antigos combatentes vão poder regressar aos seus países e continuarem a receber as pensões de reforma. Até agora, eles eram obrigados a viver metade do ano em França para poder aceder a essa ajuda financeira. Uma “grande vitória”, considera Régio Conrado, ainda que admita que “vem tarde”. Em França, estima-se que só estejam vivos cerca de 40 antigos ‘tirailleurs’ e têm mais de 90 anos.

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