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São Tomé e Príncipe: O processo de esclarecimento está "viciado na origem"

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Rafael Branco, ex-primeiro-ministro de São Tomé e Príncipe, sublinha que o processo de esclarecimento dos acontecimentos está "viciado na origem". O ex-presidente do MLSTP-PSD critica ainda a posição do seu partido face à gravidade do sucedido.

Rafael Branco, ex-primeiro-ministro de São Tomé e Príncipe.
Rafael Branco, ex-primeiro-ministro de São Tomé e Príncipe. © Cristiana Soares
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A 25 de Novembro quatro suspeitos de terem atacado o quartel militar de São Tomé e Príncipe foram torturados e mortos. Imagens e vídeos publicados nas redes sociais mostram o envolvimento dos militares nos actos. 

Até o momento a justiça são-tomense constituiu 17 arguidos no processo que investiga a suposta tentativa de golpe de Estado. Todavia, no processo aberto por violação de direitos humanos, traduzido na tortura e morte de quatro suspeitos, ainda não foram feitas detençoes, interrogatorios ou prisões preventivas. Questionado sobre este vazio no processo de violação de direitos humanos, o Ministro da Defesa de São Tomé e Príncipe, Jorge Amado, não comentou a situação, sublinhando que o processo se encontra “em segredo de justiça".

Para Rafael Branco, ex-primeiro-ministro de São Tomé e Príncipe entre 2008 e 2010, os militares não estão acima do poder judicial, todavia "estão protegidos”.

A análise que faço é que eles [militares] estão protegidos. Porque, de outra maneira, num Estado de direito democrático, os militares obedecem ao poder civil. Quem orienta a política de defesa e segurança é o poder civil. 

Se perante factos comprovados que há um envolvimento dos militares nas execuções era normal, expectável, que todos envolvidos, todos suspeitos de envolvimento, todos que directa ou indirectamente participaram, todos os que assistiram fossem objecto de um tratamento, primeiramente, disciplinar e, depois, um processo normal de justiça. 

O próprio ex-Chefe de Estado Maior [Olinto Paquete] já declarou que foi enganado, foi traído, portanto foi traído por quem? Ele foi traído pelas pessoas que estavam abaixo ou que partilhavam o comando com ele.

Portanto, em qualquer país quando há um acidente de viação que é grave, muitas vezes, não têm responsabilidade directa, mas enquanto responsáveis máximos eles demitem-se, pedem a demissão ou são suspensos.

Aquilo a que assistimos é que nada disto aconteceu e se não acontece é porque há protecção.

Mais, há decisões de um outro órgão de soberania, que são os tribunais, que decide num sentido em relação aos detidos, que deveriam ir para a cadeia normal e estão num quartel. 

Acha que isto acontece porque os militares estão acima? Não é porque eles estão acima [do poder], é porque estão a ser claramente protegidos. E isso levanta muitas outras questões em relação a tudo o que se passou no dia 25 [de Novembro].

Mas também levanta questões em relação a tudo o que se vier a passar no seguimento do esclarecimento cabal dos acontecimentos?

Certamente. Como cidadão são-tomense não tenho expectativas boas em relação a este processo. Ele está viciado na origem. Quanto mais tempo passa sobre medidas que são normais em qualquer país para identificar, afastar o culpado, responsabilizá-los, mais difícil se torna o esclarecimento desse facto.

Estamos a acentuar um sentido de impunidade que pode comprometer todo o nosso futuro e pode abrir portas a actos semelhantes.

Daí que era importante que, como sociedade, fôssemos mais activos, mais consequentes e mais coerentes no tratamento disto. A questão da impunidade que se está a desenhar preocupa-me bastante.

Essa impunidade pode abrir as portas, precisamente, a um estado anárquico?

"Em algumas sociedades, a anarquia pode até ser um instrumento de reforço de poder. 

Quando se criam situações em que as ameaças às pessoas e às instituições são claras, justifica-se com uma grande propensão para utilizar meios cada vez mais musculados e autoritários para controlar a situação. São casos estudados em estados como o nosso: frágeis e vulneráveis.

O principal agente que ameaça a segurança dos indivíduos é o Estado e os seus órgãos. E na nossa sociedade quem tem poder de fazer mal é o Estado. 

Eu esperava reacções mais enérgicas da comunidade internacional, no sentido de dizer que isso precisa de ser esclarecido, precisa ser totalmente esclarecido. 

Essa zona cinzenta em que estamos não é benéfica. Sou daqueles que acha que a comunidade internacional tem uma responsabilidade de proteger, respeitando a soberania do país, mas há instrumentos pacíficos de prevenção que já deviam ter sido activados."

O facto de no âmbito do processo de violação de direitos humanos não haver interrogados nem detidos e, inclusive, como o representante regional do Alto-Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos na África Central disse, esta terça-feira em entrevista à RFI, essas pessoas que são facilmente identificáveis nos vídeos ainda continuarem em pleno exercício de funções, faz crer que efectivamente…

Não escolha a palavra, esses serviços estão a ser protegidos. Nalguns casos há promoções. Pessoas que estiveram directa ou indirectamente envolvidas nisso foram promovidas ou mantidas nos seus postos. 

Se elas continuam nas posições de chefia, se os próprios detidos estão no quartel, não têm acesso a uma defesa que permita que eles falem de maneira livre porque há sempre um militar, como é que acha que isto pode ter um esclarecimento? 

Isto são instrumentos de protecção de quem perpetrou esses actos. Está-se a proteger quem perpetrou esses actos."

Foi líder do MLSTP-PSD, foi primeiro-ministro, foi também candidato no último congresso à liderança do MLSTP-PSD, actual partido na oposição. Eleição interna essa que perdeu para o actual líder do partido Jorge Bom Jesus.

O seu partido não deveria ter uma posição mais vigorosa em relação a estes acontecimentos?

Sim, e o facto de me ter candidatado, depois de me ter afastado [da vida política] diz muito sobre o que eu penso sobre essa liderança. O MLSTP não tem uma liderança efectiva e não está à altura desse acontecimento. 

Há uma frase de que eu gosto: "muitas vezes olharmos para a floresta só a pensar na lenha para a nossa fogueira''. Há muitos jogos de interesse particulares, numa situação em que o interesse geral nacional é que devia estar acima. 

Qual é o interesse nacional que está aqui? É defender que isso seja completamente esclarecido e que os responsáveis por esses actos sejam responsabilizados em termos do enquadramento jurídico nacional.

Francamente acho que a oposição não está a fazer tudo, começa pela própria análise que não é suficientemente profunda e a partir daí todas as outras acções subsequentes são de ocasião, não estão articuladas numa estratégia de defesa do interesse nacional.

Jorge dos Bom Jesus devia estar no país? 

Devia estar no país e estando fora devia estar muito mais activo. Estamos, enquanto oposição, muito aquém das nossas responsabilidades.

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