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Taiwan: “Ninguém está interessado numa intervenção militar”

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A China começou, esta quinta-feira, manobras militares nas imediações de Taiwan, em resposta à visita da presidente da Câmara dos Representantes americana, Nancy Pelosi. Jorge Tavares da Silva, analista de assuntos chineses da Universidade de Aveiro, explica que a reacção de Pequim era expectável e afasta a possibilidade de invasão chinesa a Taiwan, a não ser que o território declare a independência. A crise económica global também é um travão à guerra.

Ecrã gigante em Pequim a mostrar exercícios militares perto de Taiwan. 4 de Agosto de 2022.
Ecrã gigante em Pequim a mostrar exercícios militares perto de Taiwan. 4 de Agosto de 2022. AFP - NOEL CELIS
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16:29

Entrevista a Jorge Tavares da Silva sobre Taiwan

RFI: A China começou manobras militares com fogo real nas imediações de Taiwan que são uma resposta directa à visita da da presidente da Câmara dos Representantes norte-americana, Nancy Pelosi, a Taiwan. Como interpreta esta resposta?

Jorge Tavares da Silva, Analista de assuntos chineses da Universidade de Aveiro: Estas reacções por parte da China eram expectáveis. Não é nada de novo. Nós sabemos que sempre que temos acontecimentos políticos que incomodam o poder em Pequim, relacionados com Taiwan, Pequim reage sempre de forma negativa. Basta termos umas eleições em Taiwan que são adversas, como aliás a actual líder Tsai Ing-Wen é uma líder adversa aos interesses de Pequim, e sempre que há acontecimentos, visitas, sobretudo neste caso que ainda é mais incomodativo, há reacção militar. Exibição militar, demonstração de força, envio de navios para a região, para as águas circundantes, mandam sempre porta-aviões, mandam fragatas, há voos de aviões no espaço aéreo restrito de Taiwan. Esse é o tipo de reacções esperáveis, que não são novas e que também estão ligadas a uma liderança muito forte de Xi Jinping.

O líder chinês, Xi Jinping, avisou o seu homólogo norte-americano, Joe Biden, na conversa que tiveram por telefone na semana passada, que “quem brinca com o fogo queima-se” em relação a Taiwan. Esta ameaça não ficou aquém da resposta que a China está a ter hoje?

Sim, mas quem está a brincar com o fogo é a China. Quem está a demonstrar força, quem está a lançar mísseis, quem está a fazer toda esta demonstração militar é a China, não são os Estados Unidos.

Aliás, temos que separar Estados Unidos de uma visita que - eu sei que tem evidentemente importância pelo cargo que ocupa a senhora Pelosi e não deixa de estar associado aos Estados Unidos - mas não deixa de ser também uma acção relativamente individual de alguém que não é muito bem vista pela China por todo o seu percurso pessoal, por todas as afrontas ao longo do tempo que a senhora Pelosi fez em relação à China. É alguém que não é bem vista. Isso não ajuda, mas não deixa de ser uma acção individual.

Nancy Pelosi é, ainda assim, a terceira figura política dos Estados Unidos... Neste braço-de-ferro, diz que finalmente é a China quem está a brincar com o fogo por estar a fazer a demonstração militar, mas os Estados Unidos e a China podem entrar em guerra por causa de Taiwan? A China poderá invadir Taiwan ou vamos ficar sempre nas exibições militares e na retórica bélica?

Ninguém está interessado numa intervenção militar. A China tenderá sempre, com a velha paciência chinesa, em tentar resolver a questão de Taiwan pela via pacífica. Isso faz parte da matriz chinesa e assim o fizeram ao longo dos anos. Só que a liderança chinesa, já por diversas vezes - não só Xi Jinping mas as várias lideranças anteriores, Jiang Zemin, por exemplo, também já o tinha dito - que a questão de Taiwan não pode ficar para sempre neste impasse e um dia admitiu que a questão de Taiwan pudesse - e eles começaram a admitir mais vezes isso - vir a ser resolvida de maneira militar.

Mas só se a ilha declarar a independência, não?

Sim, aí é flagrante, aí não há dúvidas. Aliás, estão mais de mil mísseis direccionados para a ilha de Taiwan – e estamos a falar da ilha de Taiwan porque é a principal, o território de Taiwan tem a ilha principal e outras ilhas mais pequenas e muitas delas até muito próximas da costa chinesa.

Aí sim, teríamos uma guerra, não há dúvidas absolutamente nenhumas, e atenção que a senhora Tsai tem tendências independentistas. Em caso de afirmação de independência por parte de Taiwan, de maneira unilateral, aí não há dúvidas, haveria um conflito armado, a China faria uma intervenção armada imediatamente. Basta ver o arsenal de mísseis que está preparado para um contexto desses. Não é esse o contexto que está agora. O que temos agora é um princípio de uma só China que os próprios Estados Unidos vieram reafirmar.

Durante a visita em que se reuniu com a líder Tsai Ing-Wen, Nancy Pelosi repetiu aquilo que Joe Biden tinha dito que a política norte-americana respeita o “princípio de uma só China”. Isto é suficiente para que o episódio Pelosi não passe disso?

É muito bom para os ouvidos de Pequim porque o senhor Trump colocou uma vez em causa o princípio de uma só China e a senhora Tsai também não é muito seguro que defenda o princípio de uma só China. Ela, de vez em quando, não sendo muito clara, não tem muita vontade de defender este princípio de uma só China e, sobretudo, tem uma vontade de defender uma identidade taiwanesa. Isto é um desafio a Pequim que também não ajuda nada neste contexto. Joe Biden, apesar de tudo, veio pôr um bocadinho de água na fervura.

Mas Joe Biden disse, há tempos, que estava disposto a defender militarmente o território…

Sim, mas são duas coisas. Primeiro, temos o princípio de uma só China que é bom de ouvir para Pequim, ou seja, este princípio de uma só China não é alterado. Eu acho que Joe Biden veio pôr um bocadinho de água na fervura já a pensar nesta nova crise em Taiwan. Mas, simultaneamente, veio advertir – e aí acho que é o efeito Ucrânia – veio advertir a China de que se tentar resolver a questão de Taiwan pela via militar, os Estados Unidos poderiam intervir militarmente. Aí sim, é uma questão que me parece importante precisamente para que a China não tenha o ímpeto imediato de resolver a questão pela via da força.

Precisamente, na altura em que a Rússia invadiu a Ucrânia, houve muitas vozes que disseram que esta invasão poderia dar ideias a Pequim de invadir Taiwan…

Eu, no início, confesso que fiquei um pouco com essa ideia de haver essa relação…

Tanto é que a Rússia também se manifestou contra a visita de Nancy Pelosi a Taiwan.

Claro, é o conforto que o senhor Putin encontra agora numa crise entre os Estados Unidos e a China que é-lhe muito útil para poder criticar os Estados Unidos –e a própria NATO, mas aqui essencialmente os Estados Unidos. É-lhe muito útil, muito confortável ter agora aqui um problema para poder defender o seu ponto de vista também.

Mas o que é também relevante do ponto de vista da Ucrânia em relação a Taiwan é que a China, no início do conflito, estava com toda a força a apoiar a Rússia. Inclusivamente, do ponto de vista interno, é muito interessante que Putin aparece nos primeiros dias de guerra quase como um herói nos meios de comunicação sociais chineses – aqueles que são possíveis, dirigidos evidentemente. Ele apareceu como um herói na opinião pública interna e a China condenou a NATO, os Estados Unidos de uma maneira muito clara, posicionando-se muito próximo da Rússia. Os dois líderes até disseram, logo no início quando se encontraram nos Jogos Olímpicos de Inverno de Pequim, que a parceria entre a China e a Rússia era sem limites. Temos que nos lembrar que a China não se compromete muito do ponto de vista internacional e aqui comprometeu-se, era quase uma aliança.

Ora, o conflito começa e as coisas começam a não correr muito bem, pela reacção internacional, pelas sanções que começam a ser aplicadas. A China começou, por um lado, a tirar lições para a sua própria situação e começou tacticamente a recuar. Ainda que estrategicamente, continue posicionada politicamente próxima de Moscovo, tacticamente a China remeteu-se um bocadinho ao seu espaço. Mantendo a sua ambiguidade, remeteu-se ao seu silêncio estratégico para não prejudicar os seus interesses.

Agora, não lhe toquem é na sua joia da coroa que é efectivamente Taiwan porque aí faz parte do ADN político da liderança de Xi Jinping que é ter a unidade nacional e não ser humilhada pelas potências internacionais, estrangeiras. Isto é algo de sagrado.

No início da semana, o Secretário-Geral da ONU, António Guterres, disse que a Humanidade está “a um erro de cálculo de aniquilação nuclear” porque "as tensões geopolíticas estão atingindo novos patamares”. Este é um alerta verosímil ou apenas um alerta para tentar refrear os ânimos globais?

Eu acho que é um bom alerta no sentido que o mundo nos últimos anos está numa grande transformação. É uma ordem nova que eu, às vezes, até lhe chamo uma ordem emergente, uma ordem vinda daquilo que nós chamamos um Sul global, um Sul político: países como a Rússia e como a China que querem transformar uma ordem internacional dominada pelos Estados Unidos. Isto é uma fractura que está a acontecer claramente agora. Está a acontecer na Europa e está a querer acontecer na Ásia.

É preciso também perceber que os Estados Unidos, como grande actor internacional do ponto de vista dessa ordem internacional tradicional, deixaram a Ásia um bocadinho a descoberto porque se foram envolver nas questões do Médio Oriente, no Afeganistão e em todos esses cenários. Deixaram a China a fazer um pouco aquilo que queria e a ocupar ilhas do mar do sul da China, a estabelecer ali perímetros de forma unilateral, afirmando-se militarmente em toda aquela região.

Agora, os Estados Unidos estão a querer recuperar – porque estamos aqui numa competição forte – aquele papel que tiveram na Ásia. Aquilo que o Presidente Obama dizia do pivô da Ásia é aquilo que Joe Biden está a tentar recuperar. Ora, a China não aceita isto, não aceita que os Estados Unidos tenham um papel activo na Ásia. No fundo, quer a Ásia para os asiáticos, só que a China não é bem a Ásia para os asiáticos, é a Ásia para a China.

É este tipo de poder, este tipo de confrontação, este tipo de competição que temos na Ásia, mas que também temos na Europa com a Rússia afrontando um bocadinho a ordem europeia no seu espaço mais circundante. Portanto, são dois grandes espaços de competição que estão em risco, quer dizer, já nem é risco, é guerra porque estamos com uma guerra na Europa e podemos vir a ter outra na Ásia porque é um espaço de imensa competição.

Eu, de facto, olhando novamente para as palavras do Secretário-Geral das Nações Unidas, eu acho que ele tem razão. Nós estamos num momento de transição, num momento de mudança e as mudanças são sempre perigosas do ponto de vista internacional. Eu acho que é bem importante ouvir essas palavras porque ele tem bastante razão.

Está a falar na vontade dos Estados Unidos recuperarem influência, mas numa altura em que os Estados Unidos enfrentam um risco de recessão económica, limitar ainda mais as relações com a China não é um tiro no pé?

É. Acho que o discurso de Joe Biden com o Xi Jinping já foi um pouco a olhar para isso. Discute-se muito nos Estados Unidos se não deverão ser levantadas as tarifas aduaneiras que há desde a era de Trump. Toda a tensão e “guerra comercial” entre os Estados Unidos e a China estão a ser discutidos precisamente porque os Estados Unidos estão à porta de uma recessão económica. Isso, no meu ponto de vista, notou-se já um bocadinho na forma como Joe Biden lidou com Xi Jinping, olhando também para esta questão interna que não será nada positiva para a administração Biden.

Se calhar é por aí que vamos ver o atenuar desta questão, abrindo do ponto de vista económico. Há um fortíssimo lobby das empresas americanas para aumentar e intensificar as relações económicas com a China. É preciso também não esquecer que a China está fechada. A China com a covid-zero também se tornou fechada, o que não ajuda muito. Essa é outra razão para a China não querer um conflito armado com Taiwan neste momento porque também está a passar por dificuldades económicas fruto da pandemia. Apesar de tudo, eu acho que o diálogo e a cooperação económica agora seriam muito bem-vindos para atenuar.

Esta tal tensão entre a China e os Estados Unidos beneficia naturalmente a posição de Putin, portanto, até por aí seria uma derrota [para Putin] se houvesse um diálogo mais forte entre a China e os Estados Unidos.

Abordou, no início da conversa, o perfil de Nancy Pelosi. Ela é uma das principais vozes críticas contra a China e, por isso, “persona non grata” em Pequim por vários motivos. Queria pedir-lhe para nos recordar os principais episódios que o mostram, desde a condenação a Tiananmen, à recepção de activistas pró-democracia de Hong Kong no Capitólio, às referências à situação dos uigures…

O episódio mais marcante do percurso de Nancy Pelosi em relação à China, quando ela era ainda uma congressista muito nova, foi a crise de Tiananmen, em 1989, e aquelas vítimas todas. Ela foi uma fervorosa lutadora para que a China fosse condenada, para que fossem aplicadas sanções. Dois anos depois, numa comitiva do Congresso, com outros dois congressistas, vai à Praça Tiananmen, abre uma faixa no meio da praça onde diz “Por aqueles que morreram, pela democracia na China”. Evidentemente, apareceu logo a polícia por todos os lados, tiraram a faixa, afastaram os congressistas, prenderam alguns jornalistas que, entretanto, registaram o momento. Este é o principal incidente entre Nancy Pelosi e a China mas, depois disso, teve sempre intervenções muito críticas em relação, por exemplo, à questão dos direitos humanos.

Por exemplo, é muito curioso porque ela é a representante da Califórnia. Ora, a Califórnia tem imensas empresas da área tecnológica – Silicon Valley e por aí fora - que têm no mercado chinês um excelente mercado para desenvolver actividade económica. Mesmo assim, ela insurgiu-se contra a transferência de tecnologia dessas empresas americanas para a China.

Também criticou, por exemplo, o estatuto de Nação mais favorecida, que é um estatuto comercial que dá condições muito favoráveis do ponto de vista comercial à China.

Depois, mais tarde, criticou a questão do Tibete, tem criticado a questão dos uigures da região do Xinjiang e também é uma voz activa em relação à democracia em Hong Kong estar a ser aniquilada.

Nancy Pelosi foi sempre uma voz activa que incomodou Pequim ao longo dos anos e é evidentemente uma figura que Pequim não olha com muito bons olhos. Não ajuda muito o facto de ter este histórico todo de afrontamento ao poder chinês, daí que a China tenha mais um factor para reagir da maneira que está a reagir.

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