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Angola: a pesada herança da guerra civil

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É um memorial que não atrai multidões, mas que simboliza uma das maiores viragens da história de Angola. Duas mãos juntas, abertas, viradas para o céu, onde pousa uma pomba de asas abertas. 

Luena. 04 de Abril de 2022.
Luena. 04 de Abril de 2022. © Francisco Paulo/RFI
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Um trabalho original de Clément Bonnerot para a France 24, com a participação de Dombaxi Sebastião, Evan Claver e Juliette Dubois.

Estamos em Luena, capital da província de Moxico. Foi aqui que, a 4 de Abril de 2002, a UNITA (oposição) e o MPLA (poder) puseram fim a 27 anos de guerra civil com a assinatura de um acordo de paz.

Dorca Kavui era tenente das Forças Armadas de Libertação de Angola (FALA), a ala armada da Unita e lembra-se bem do dia em que soube da morte de Jonas Savimbi. 

"Naquela altura, não tínhamos televisão. Só ouvimos as pessoas daqui, do Moxico, a começar a regozijar-se, estavam a fazer barulho, estavam a gritar, e perguntei o que se estava a passar. Disseram-me: ‘o Savimbi morreu’. (...) Eu sabia que a guerra ia acabar assim, porque ele próprio disse: vamos entrar num ponto de viragem, muitas pessoas vão morrer debaixo das balas, outras vão morrer à fome e outras serão capturadas... Por isso, quando vi que este momento tinha chegado, lembrei-me do que ele tinha dito."

Após a guerra, tal como dezenas de milhares de combatentes por todo o país, Dorca foi integrada no exército nacional, depois desmobilizada e aposentada.

Agora, a ex-tenente da FALA, ala armada da UNITA, vive nesta modesta casa com uma das suas filhas e quatro netos, onde conta com dias pacíficos.

Naquela altura, era muito difícil: havia crianças que sofriam, crianças que morriam... Fui uma mulher activa durante a guerra, pesquei para alimentar os meus filhos, para que não morressem. Essa vida que levamos foi muito difícil, mas agora acabou-se. Hoje, vou para o campo, trabalho um pouco, trago algo para viver para os meus filhos. A vida de hoje tornou-se um pouco normal, porque estamos em paz."

Uma lei, aprovada em 2002, garante direitos sociais e económicos a todos os antigos soldados, com uma pensão básica de 23.000 kwanzas, ou seja 50 euros.

Mas 20 anos depois, o Estado ainda não terminou de contar os seus veteranos.

Em Luena, antigos membros do MPLA e da UNITA raramente se encontram, todavia unem as suas vozes para exigirem, em conjunto, os mesmos direitos.

Muitas mulheres, em particular, que se mobilizaram durante a guerra nunca viram o seu passado de combatente reconhecido.

Inês Sónia Jackson, antiga Chefe da Juventude da UNITA, denuncia a falta de apoio: "O meu marido abandonou-me porque não trabalhava, sou desempregada. Mas estou aqui com os meus filhos, tenho cinco filhos e não tenho apoio de ninguém. (...) Hoje vivo a trabalhar nos campos. Se não o fizesse, talvez estivesse à procura de comida no lixo."

Henrique Branco, conhecido por  "Helicóptero", lutava pelo MPLA, partido no poder desde 1975. Primeiro contra os portugueses, depois contra a UNITA. Depois de 34 anos ao serviço do seu país, hoje este ex-comandante da FAPLA, ala armada do MPLA diz-se abandonado.

"Quando estivemos com Agostinho Neto, na guerrilha, ele dizia: quando Angola for independente, vocês não vão pagar a renda das casas, não vão pagar a água (...) Mas até hoje, ninguém cumpriu estas promessas. Os antigos combatentes são tratados como lixo, ‘é tapete para pisar’. Já não se lembram que hoje, se têm o que têm, se podem ser ministros ou não sei o quê, é graças aos antigos combatentes. Mas já não se lembram disso."

20 anos depois, a guerra permanece profundamente enraizada na memória dos angolanos.

A 500 quilómetros de Luena, o Huambo foi o reduto da UNITA e de Jonas Savimbi. É uma das cidades que mais sofreu durante os combates.

Testemunho desse tempo é a Casa Branca, a casa do antigo líder, destruída por bombas do MPLA após as contestadas eleições de 1992.

Memória Ekulica é sociólogo e escritor: "O Huambo foi quase completamente destruído. Muitas casas foram destruídas, como esta (...). Foi o primeiro andar, mas tudo desmoronou."

Até agora, não foi feito nenhum esforço para reconstruir a casa de Jonas Savimbi. A figura daquele que foi apelidado de "galo negro" continua a ser controversa em Angola. O corpo de Jonas Savimbi só foi enterrado em 2019, depois de 17 anos de negociações entre o Governo e a sua família.

Hoje, a UNITA vê nesta casa um símbolo de guerra. Mas para este sociólogo, estas ruínas são uma ferida aberta para o país.

"Estamos em paz há 20 anos. Não há motivos para isto acontecer. Ao não reconstruírem esta casa, estão a fomentar o nosso ódio em relação ao outro. Penso que é isso que deve ser superado. (...) Acho que há outras formas de manter esta casa como símbolo de guerra... tirar fotografias, fazer filmes e colocar tudo num museu”.

A poucas centenas de metros da Casa Branca, o Huambo oferece uma paisagem contrastante. Por um lado, o centro da cidade que foi quase completamente reconstruído, com as casas renovadas, calçada pavimentada e jardins elegantes. Por outro, nos bairros periféricos, vários edifícios ainda testemunham a brutalidade dos combates.

Um pouco mais longe, o parque industrial. Antes da guerra, albergava uma dúzia de fábricas. Todas foram destruídas e nunca mais retomaram a actividade, tal como esta antiga fábrica de telhados.

Memória Ekulica, sociólogo e escritor, sublinha que Angola deveria ter aproveitado o pós-guerra para políticas de reconstrução: "Deveria ter sido o momento para lançar políticas públicas ou privatizações. A reconstrução é um todo, tudo deve ser em conjunto: agricultura, pecuária, industrialização (...) Quando a reconstrução significa ter casas para as pessoas viverem, para mim não é reconstrução. Portanto, numa palavra, o Huambo não está reconstruído."

Se o Huambo pena para se reconstruir, os seus habitantes tentam viver com as cicatrizes da guerra. Celestino Elias é um dos 80.000 angolanos que perderam um membro devido uma mina antipessoal. Tinha dois anos.

Hoje, é campeão do mundo de futebol amputado, medalhas e troféus que orgulhosamente guarda na sua casa.

"Este é o troféu 2019 do campeonato africano em Benguela... E esta é a medalha de 2018, quando fui coroado o melhor jogador do mundo."

Nascido numa família pobre, Celestino Elias António não beneficiou de qualquer acompanhamento médico durante a infância. Descobriu o futebol aos oito anos, quando o pai o inscreveu no clube da aldeia, apesar da sua incapacidade.

"Quando via os outros jogadores, também queria jogar, mas eles não aceitavam (...) Depois juntei-me a um clube no Huambo, comecei a treinar lá com outras pessoas com deficiência, e adaptei-me."

Hoje, Celestino Elias António é um defesa da Selecção Nacional Paralímpica. Treina cinco vezes por semana no Huambo. Por todo o país, há dezenas de equipas desportivas para amputados.

Hélder Gomes, treinador, fala do desporto como vector de integração social: "É importante promover o desporto entre pessoas com deficiência, porque o desporto é, sem dúvida, a forma mais fácil de inserção e integração social (...) Se conseguirmos integrar estas pessoas na sociedade, se realmente elas se sentirem confortáveis, então sim, teremos beneficiado dos 20 anos de paz que vivemos no nosso país."

Uma integração que permanece, no entanto, muito limitada. Em Angola, a esmagadora maioria das pessoas com deficiência vive sem recursos e sem assistência do Estado, denuncia Josué Sabino Ekuikui, jogador.

"Gostaria que o Governo fizesse mais para ajudar as pessoas com deficiência (...) Acredito que, como pessoas com deficiência, temos muito a dar ao país. Eu, por exemplo, sou técnico médio de educação, estou a fazer o segundo ano do ensino primário... Mas até agora, não há oportunidades de emprego."

20 anos após o fim da guerra civil, Angola continua a ter muitas dificuldades em virar a página, mesmo se na década de 2000, o país registou um boom económico, graças ao aumento dos preços do petróleo, que representam 70% das receitas do Estado.

A capital, Luanda, é testemunha disto. Com arranha-céus e a frente ribeirinha renovada. Luanda projecta a imagem de uma Angola próspera e moderna. Mas por detrás desta bela imagem, metade da população ainda vive com menos de dois dólares por dia.

Mesmo assim, para o MPLA, vencedor da guerra civil, e no poder por quase meio século... os resultados dos últimos 20 anos são positivos, nas palavras de Rui Falcão, porta-voz do MPLA.

"Um país vai-se fazendo (...) Um país como o nosso que ainda não tem a estabilidade necessária e onde os efeitos da guerra ainda se sentem, o engraçado é que quem mais reclama é quem destruiu. Mas nós, que temos a obrigação de reconstruir e melhorar, estamos plenamente conscientes de que já fizemos bastante, mesmo que ainda haja muitos problemas por resolver."

Eleito há 5 anos, o Presidente João Lourenço fez do combate à corrupção uma prioridade. Prometeu virar a página sobre a era do seu antecessor, José Eduardo Dos Santos, que governou de 1979 a 2017. Porém, apesar da multiplicação de processos, o país continua entre os mais corruptos e desiguais do planeta.

Hitler Samussuku é um dos mais conhecidos activistas políticos em Angola. Escolheu o hip hop para exigir mudanças no país.

"Sempre que vier a noite, desejarás o dia

E quando vier o dia, desejarás a noite…

Um aviso para a polícia: não entrem no processo

Ou entrem e que seja da nossa parte."

Nos seus textos, não hesita em atacar directamente o Presidente da República e encoraja os angolanos a saírem à rua: "Vivemos numa sociedade onde a participação política é baixa e as pessoas têm muito medo de falar porque têm medo de represálias e repressão governamental. Encontramos no movimento do hip-hop uma porta, uma janela de oportunidade para fazer passar a nossa mensagem."

Hitler é filho de Dorca, a veterana que conhecemos em Luena. Se ela abandonou a política traumatizada por 27 anos de guerra, ele considera que a paz não pode ser limitada a um mero silêncio de armas.

Do seu bairro, Hitler Samussuku, activista da sociedade civil exige uma vida melhor para os angolanos.

"Estamos no município de Cacuaco, zona norte de Luanda... É um bairro com índices muito elevados de pobreza, criminalidade, prostituição e analfabetismo (...). Este é o portão de uma casa e o esgoto passa por aqui fora e todos pensam que é normal."

O activismo já o levou à sua prisão várias vezes.  Em 2015, ao lado de outros 16 activistas, por liderarem um grupo de reflexão em torno do conceito de resistência não-violenta e, novamente, em 2019, acusado de insultar o presidente.

"Para mim, viver em paz seria viver numa sociedade com justiça, não digo numa sociedade justa, mas pelo menos com justiça, com a separação dos poderes legislativos, executivos e judiciais (...). Tenho um compromisso. Tal como a minha mãe estava comprometida em lutar pela paz, eu tenho o compromisso de lutar pela saída do poder do MPLA, para termos alternância em Angola e contribuir para o desenvolvimento do país."

Para Hitler e os seus camaradas, 20 anos depois do fim da guerra... a paz ainda precisa de ser construída.

"Água, luz, saúde, educação! Água, luz, saúde, educação!"

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