Acesso ao principal conteúdo
Convidado

Fake news, a "outra guerra" na Ucrânia

Publicado a:

Fake news, propaganda, imagens de outros conflitos misturadas com o actual, a necessidade constante de novas notícias. Russos e ucranianos disputam a “guerra da comunicação”. Miguel Crespo, especialista em literacia mediática e combate à desinformação, fala num confronto de "séculos diferentes", no qual “as fake news” veiculadas "são maioritariamente sobre a Ucrânia”, uma vez que o Ocidente “se mobilizou a favor da Ucrânia e isso tem consequências no pluralismo da informação que recebemos”.

Russos e ucranianos disputam a “guerra da comunicação”
Russos e ucranianos disputam a “guerra da comunicação” © Shutterstock - Shyntartanya
Publicidade

Há mais de um mês que as tropas russas invadiram a Ucrânia. No terreno é Moscovo que apresenta maior capacidade bélica, mas na guerra das palavras tem sido Kyiv a tirar maior proveito da situação. 

A guerra na Ucrânia também se disputa nos meios de comunicação social, nas redes sociais e na internet e cedo o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky percebeu o poder da comunicação neste conflito. 

Fake news (notícias falsas), propaganda, imagens de outros conflitos misturadas com o actual, a necessidade constante de novas notícias. Russos e ucranianos também disputam a “guerra da comunicação”. 

Miguel Crespo, investigador do CIES-ISCTE (Centro de Investigação e Estudos de Sociologia do Instituto Universitário de Lisboa), especialista em literacia mediática e combate à desinformação, fala num confronto de "séculos diferentes", no qual “as potenciais fake news” veiculadas "são maioritariamente sobre a Ucrânia”, uma vez que o Ocidente “se mobilizou a favor da Ucrânia e isso tem consequências no pluralismo da informação que recebemos”.

Temos algo que é normal num cenário de guerra, ou seja, os países, os governantes e até as populações tomarem uma posição e defenderem um dos lados perante o outro. Aquilo que estamos a ver desde que começou esta guerra, é que a população europeia se mobilizou a favor da Ucrânia e isso tem, obviamente, algumas consequências. Por um lado, no pluralismo da informação que recebemos, sabendo que numa situação de guerra a informação é sempre muito controlada por todas as partes envolvidas, neste caso pela Rússia e pela Ucrânia, mas que acaba também por ter os seus reflexos quando estamos a falar da opinião pública e dos governos ocidentais que se puseram claramente do lado da Ucrânia. Portanto, quando falamos da produção e da reprodução dessa informação, nomeadamente, aquilo que os cidadãos fazem quando publicam, partilham e comentam nas redes sociais é maioritariamente a favor da Ucrânia, exactamente por haver essa unanimidade. Isso faz também com que as potenciais fake news, que existam neste contexto de guerra e sobre guerra, sejam também maioritariamente sobre a Ucrânia.

Não quer dizer que a Ucrânia esteja a produzir fake news ou mais fake news do que a Rússia. Elas provavelmente virão de ambos os lados.

Mas a informação proveniente da Ucrânia tem mais tempo de antena? 

Tem mais tempo de antena e há uma unanimidade nos meios de comunicação tradicionais, nas televisões, nos jornais, nos sites informativos jornalísticos. Mas há também uma questão que tem a ver com: como é que se reproduzem as fake news? Tem muito a ver com termos mais tendência a acreditar naquilo que vai de acordo com aquilo que pensamos, do que com aquilo que põe em causa aquilo que pensamos. Portanto, se a generalidade dos cidadãos europeus está do lado da Ucrânia mais facilmente acredita em informações favoráveis à Ucrânia e, também, mais facilmente as reproduz nas redes sociais. 

Neste contexto de fake news e de propaganda, há aqui um papel muito importante que é o papel das redes sociais.

Sim, obviamente. As redes sociais são um gigantesco megafone daquilo que qualquer um de nós, qualquer cidadão de um país democrático, pensa. Se nós temos uma posição clara, como acontece no caso desta guerra, aquilo que temos é: eu, enquanto cidadão, se receber uma informação numa das minhas redes sociais, seja nas redes sociais públicas como o Twitter, Facebook ou Instagram, seja nas privadas, no WhatsApp ou no Telegram, aquilo que vai acontecer é se for favorável ao Ucrânia eu tenho mais tendência a acreditar, tenho mais tendência a partilhar, para contribuir para difundir aquilo que é o meu ponto de vista.

Mas não tem tendência a verificar a veracidade dessa informação?

Não, isso não acontece nesta situação, tal como não acontece na maior parte das situações, ou seja, por definição nós temos tendência a acreditar na informação que nos chega. Isso é um problema e uma questão que tem sido muito estudada quando se investiga a desinformação. Não apenas as fake news em termos concretos, mas os mecanismos da desinformação e porque é que as pessoas promovem desinformação. Tem a ver com o facto de acreditarmos nas informações, com o facto de termos menos espírito crítico do que deveríamos nas redes sociais. 

Isto, por exemplo, verifica-se nas pessoas menos novas que aprenderam a lidar com as sociais e que não cresceram ainda com as redes sociais. Ou seja, cresceram num mundo em que a informação que nos chega tradicionalmente é filtrada por profissionais. No caso do jornalismo, pelos jornalistas e pelos meios de comunicação e, portanto, já traz uma determinada credibilidade. Quando as pessoas crescem assumindo que a informação que lhes chega é credível, é difícil quando chegam às redes sociais que ponham a informação em dúvida por sistema. 

Aquilo que se diz sempre é que a primeira forma de conter a propagação de desinformação é estimular o espírito crítico dos cidadãos para que olhem para a informação com algum cuidado e que em caso de dúvida verifiquem de uma forma relativamente simples e acessível a qualquer pessoa. 

Este “excesso” de informação, em que há uma informação veiculada pelos meios de comunicação social e toda uma série de informações veiculadas pelo cidadão comum que tem nas redes sociais a sua grande vitrine, faz com que imagens de outros conflitos sejam colocadas a circular como se fossem deste. Falo, por exemplo, de imagens da Síria ou de 2014.

Aquilo que aconteceu nos primeiros dias [do conflito] é algo típico, que é aparecerem imagens, vídeos e informações de outros contextos. Neste caso, imagens da guerra na Síria, dos combates de 2014 na Ucrânia na zona do Donbass, de Maidan, da Crimeia foram repescadas e passadas como novas. Essa é uma das formas simples de fazer desinformação. É pegarem em informação factual, real de um contexto e de um determinado momento e colocá-lo num outro contexto e noutro momento. Isso aconteceu nos primeiros dias pela falta de imagens da actualidade. 

Isso já desapareceu um pouco, porque entretanto já há muito conteúdo actual do conflito que pode ser partilhado. Mas isso não impede que ele continue a ser partilhado fora do contexto. Aqui os meios de comunicação também têm alguma responsabilidade, porque, por exemplo, os canais de televisão de notícias 24h por dia precisam de imagens e vídeos para alimentar a emissão e, portanto, tudo aquilo que aparece nas redes sociais, muitas vezes, passa nos meios tradicionais sem a necessária verificação. 

Esse é o problema, muitas vezes, do ‘Breaking News’, do directo constante. Faz com que esse escrutínio não exista ou exista menos. 

Obviamente que existe menos. Temos uma emissão 24 horas por dia para manter e não há material informativo novo suficiente, portanto aquilo que vemos são as melhores imagens repetidas até à exaustão. Esta informação repete-se em todos os sites informativos, em todas as rádios informativas. Ou seja, repetimos muito a mesma informação porque não há assim tanta informação nova e a informação nova que chega, muitas vezes, ou não é verificada pela pressa de a passar ou não é suficientemente verificada ou não é mesmo verificável. Aqui, os meios de comunicação precisavam, correndo o risco de serem ultrapassados pelos concorrentes, de dedicar mais tempo à informação e também de serem mais claros sobre aquilo que estão a passar num determinado momento. Por exemplo, estão a falar do cerco a Mariupol e estão a passar imagens que não são necessariamente deste momento. Se calhar tinha de ficar claro e de ser marcado, claramente, que essas imagens não são deste momento. Por vezes, para quem consome essa informação passa a ideia de que estamos a ver quase um permanente directo da guerra, quando isso não é verdade. Aquilo que vemos realmente da guerra é muito pouco e muito controlado pelas várias partes em conflito, como acontece em qualquer guerra. 

Nesta guerra, o Ocidente assumiu uma das partes e cortou a informação veiculada na Europa por parte dos canais russos. Isso não faz com que a verdade desta guerra também seja posta em causa e seja uma das vítimas da guerra? 

Sim, diria mais os factos do que a verdade, porque a verdade é uma construção sobre os factos. 

A decisão tomada, de que eu discordo totalmente, de bloquear na Europa Ocidental o acesso a canais de informação russos é um precedente gravíssimo. Porquê? Porque um dos pontos fundamentais das sociedades democráticas ocidentais é exactamente a liberdade de expressão. 

No fundo, a União Europeia está a fazer tudo aquilo que sempre criticou em outros regimes menos democráticos ou ditatoriais, que é o controlo da informação, bloquear a voz àqueles com os quais não concordamos, etc.

A minha preocupação é que no futuro esta lógica, completamente discricionária e sem nenhum tipo de sustentação, possa ser aplicada sempre que alguém não goste de uma determinada voz que seja contrária ao poder. 

Ainda por cima tem dois efeitos perversos: todos aqueles que sejam contra a voz dominante têm um argumento para falar de censura, controlo, manipulação e, portanto, isto dá uma bandeira aos negacionistas. A segunda grande questão é que veio chamar a atenção para algo que não era necessariamente um problema

O Presidente ucraniano Volodymyr Zelensky cedo parece ter percebido o poder de estar sempre presente nas redes sociais. É ele que tem ganho a guerra da propaganda?

A guerra da comunicação, mais do que a guerra da propaganda. Aquilo que vemos nesta guerra e no campo específico da comunicação é um confronto quase de séculos diferentes. Ou seja, nós temos do lado russo postas em prática todas as técnicas de informação e contra-informação que estão nos manuais desde o pós Segunda Guerra Mundial, que nos dizem que uma guerra se ganha controlando os meios de comunicação, a informação que é difundida e o próprio léxico que é utilizado.

Do lado ucraniano aquilo que temos é uma guerra do século XXI, ou seja, uma guerra que se ganha com uma linguagem audiovisual muito simples, apropriada para as redes sociais, típica do Instagram, pequenos vídeos feitos com o telemóvel de uma forma simples a dizer ‘eu não fugi’, ‘eu estou aqui, podem ver’, uma guerra que tem uma linguagem muito próxima do cidadão e não uma linguagem formal ou política. Uma guerra em que os protagonistas interpelam pessoas como aconteceu com o Elon Musk.

É também um confronto daquilo que é a comunicação no XXI, do lado da Ucrânia utilizando as redes sociais como ferramenta de mobilização e de passagem de mensagem para o mundo todo, versus uma comunicação russa que basicamente está virada para o controle de informação e para o para o seu público interno. A nível externo faz apenas aquilo que é tradicional e manda os seus ministros dizer aquilo que é relevante para a política externa tradicional russa, dando o seu ponto de vista e as suas justificações, não fazendo muito mais do que isso.

NewsletterReceba a newsletter diária RFI: noticiários, reportagens, entrevistas, análises, perfis, emissões, programas.

Acompanhe toda a actualidade internacional fazendo download da aplicação RFI

Ver os demais episódios
Página não encontrada

O conteúdo ao qual pretende aceder não existe ou já não está disponível.