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Vitória da esquerda no Chile: “Houve uma chamada à defesa da democracia”

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No Chile, o deputado de esquerda Gabriel Boric apoiado pela Frente Ampla e pelo Partido Comunista, venceu a segunda volta das eleições presidenciais deste domingo com 56% dos votos face ao seu adversário, o advogado de extrema-direita José Antonio Kast, que recolheu 44% dos votos.  

O líder de esquerda Gabriel Boric foi eleito Presidente do Chile com 56% dos votos neste domingo 19 de Dezembro de 2021.
O líder de esquerda Gabriel Boric foi eleito Presidente do Chile com 56% dos votos neste domingo 19 de Dezembro de 2021. AFP - MARTIN BERNETTI
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Quando tomar posse no próximo mês de Março, Boric vai tornar-se aos 35 anos o presidente mais jovem que o Chile alguma vez teve. A sua chegada ao poder deveria igualmente marcar uma ruptura depois de anos de alternância entre o centro-direita e o centro-esquerda na sequência do fim dos quase vinte anos de ditadura do general Augusto Pinochet em 1990.

Com efeito, o novo presidente eleito pretende instaurar um 'Estado providência', ou seja, voltar atrás na privatização dos sectores sociais tais como a saúde, a educação e o sistema de aposentações, um sistema herdado da era Pinochet. Para tal, o líder de esquerda pretende nomeadamente contar com o contributo das camadas mais ricas da população.

Noutro aspecto, Boric chega igualmente numa altura em que vários quadrantes da sociedade chilena têm estado nos últimos meses a elaborar um projecto de nova Constituição no intuito de acabar de vez com o que subsistiu da ditadura. Esta nova Constituição deveria em breve ser submetida ao voto popular.

Em entrevista à RFI, Boaventura Sousa Santos, sociólogo português ligado ao Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e consultor da Convenção Constitucional do Chile analisou o resultado das presidenciais chilenas e os desafios que o novo presidente eleito tem pela frente.

RFI: Em que contexto Boric venceu as eleições?

Boaventura Sousa Santos: Na segunda volta, houve realmente uma chamada à defesa de democracia. Já não era propriamente a defesa da esquerda, mas o que ocorreu no Chile nas últimas semanas foi a defesa da democracia, sobretudo porque está a ter lugar uma Convenção Constitucional de que sou consultor e com quem tenho trabalhado e essa Convenção Constitucional certamente seria anulada pelo Kast, uma vez que o candidato de extrema-direita tinha dito que estava totalmente contra a ideia da revisão constitucional. Portanto, a confrontação foi praticamente a democracia face a uma ditadura e isso fez com que algumas forças de direita se juntassem ao Kast, mas também que todas as forças de esquerda e de centro-esquerda e até algumas de direita se juntassem ao Boric.

RFI: Nestas eleições, julga que a população aderiu ao projecto de Boric ou que prevaleceu a necessidade de fazer barragem à extrema-direita?

Boaventura Sousa Santos: Eu acho que tem as duas componentes. Há uma parte do eleitorado do Boric que votou simplesmente para evitar uma deriva de extrema-direita, sobretudo porque muito dessa direita e os eleitores mais conservadores têm o exemplo do Brasil e sabem muito bem o que é que  o dano que pode causar à sociedade um governo de extrema-direita como tem actualmente o Brasil. Kast inclusivamente tinha mostrado o seu apoio ao Bolsonaro. Portanto, havia ali uma aliança de extrema-direita muito forte. E as pessoas olhando para o exemplo do Brasil — basta ver o comportamento na pandemia mesmo assim no Chile muito melhor que o do Brasil — atemorizaram-se. Outra parte do eleitorado é aquele que está a ir à frente e que quer reformas sociais. Não é o socialismo e muito menos o comunismo, não é isso que o Boric quer, ele quer apenas uma social-democracia de tipo europeu. Quer mais direitos sociais, quer eventualmente fazer com que o sistema de pensões -que é um sistema absurdo privatizado no Chile- possa se tornar um sistema público, a saúde pública e a educação pública. É o país da América Latina que mais privatizou a saúde e mais privatizou a educação. Portanto, é basicamente um governo muito moderado de centro-esquerda devido à composição das forças que tem por detrás e sobretudo a defesa da Constituição que vai ser uma Constituição também moderada. Tem esses dois eleitorados a favor dele.

RFI: Boric fez promessas, promessas de um 'Estado providência', ou pelo menos dirigir-se para esta meta, nomeadamente no que tange às pensões de reforma, também em termos de saúde e educação, assim como fazer com que os mais ricos também contribuam fiscalmente para este esforço. Até que ponto é que o novo presidente, que vai entrar em funções em Março, vai ter margem de manobra para cumprir as suas promessas?

Boaventura Sousa Santos: Não vai ter muita margem de manobra porque vai partir de uma base muito má, a partir de uma crise económica muito forte agravada pela pandemia. Mas se é uma grande desvantagem, também é uma grande vantagem. Como a situação é tão aflitiva para a maioria dos chilenos, qualquer melhoria será bem-vinda. Penso que é um jovem muito talentoso, um economista com muito conhecimento da sociedade. Tem essa vantagem. Tudo o que ele fizer, é difícil fazer mal. O grande problema que está aqui não é um problema chileno. É um problema dos Estados Unidos. Esta é mais uma derrota da estratégia dos Estados Unidos na América Latina. Já tinham sido derrotados na Argentina, vão certamente ser derrotados no Brasil nas próximas eleições e naturalmente o seu candidato era o Kast porque era o candidato que defende os interesses das multinacionais norte-americanas. Portanto, os Estados Unidos cuja administração tem a mesma política do Trump na América Latina, uma política de controlo total, não gostam. Como não gostaram da derrota que tiveram na Bolívia onde o grupo do Evo Morales voltou ao poder. Isto mostra que a sua estratégia é uma estratégia que está a falhar em todo o continente e se falhar no Brasil, ainda mais. As possibilidades do Boric aumentarão se, por exemplo, no Brasil, Lula da Silva ganhar as próximas eleições e, portanto, vamos ver a reacção. A reacção dos mercados financeiros, obviamente, vai ser hostil logo no primeiro momento em relação ao Boric. Ele tem que tomar alguma cautela nesse domínio porque o capital financeiro é totalmente dominado pelos Estados Unidos. Vamos ver como vai reagir o poder hegemónico no continente que agora está muito virado sobretudo para a 'Guerra Fria' com a China e em que a China tem já hoje uma implantação muito grande em países como a Argentina e o Brasil. Essa reacção pode ser legal e pode ser ilegal, como sabemos. As correntes de extrema-direita no continente são alimentadas por norte-americanos, não necessariamente pelo governo, mas por fundações, grupos do Steve Bannon (antigo conselheiro do ex-presidente americano Donald Trump e ideólogo de extrema-direita), evangélicos, conservadores, tudo isto é gente que vem dos Estados Unidos para desestabilizar e para evitar qualquer vitória democrática mais à esquerda do continente. Este é o contexto que nós temos neste momento nas Américas e é extremamente preocupante. 

RFI: A nível das instituições, no senado, a esquerda e a direita estão em pé de igualdade, mas no parlamento há muita divisão. Até que ponto é que Boric terá a possibilidade de fazer passar os seus projectos? 

Boaventura Sousa Santos: Não é a mesma situação que a do Salvador Allende (presidente derrubado por Pinochet no dia 11 de Setembro de 1973). Salvador Allende tinha uma maioria grande no parlamento. Eu penso que a grande variante aqui é a própria Convenção Constitucional porque se ela tiver êxito, ela vai estabelecer a nova lei fundamental do país e essa lei fundamental vai obrigar a alterações na própria legislação ordinária. Por conseguinte, pode haver uma crise constitucional, pode obrigar a novas eleições, portanto, é muito incerta a situação neste momento. Agora eu penso que ele tem muito talento para criar pontes. Isto aliás é uma boa tradição dos partidos comunistas na América Latina. Há uma parte da direita chilena que sabe que tem de fazer cedências para não repetir uma 'situação Pinochet' que não se vai repetir, porque a História não se repete, mas de todo o modo vão viabilizar algumas das suas propostas e já deram sinais disto. Vai tudo depender exactamente do êxito da própria Convenção Constitucional que pode ser um grande factor de renovação e o outro factor desconhecido é a reacção dos Estados Unidos, os mercados financeiros, os agentes dos Estados Unidos — o FMI- como aconteceu agora na Argentina. Há uma situação de incerteza. Ele sabe muito bem que o ponto de partida em 2022, tal como o Lula da Silva saberá que o ponto de partida é muito mau, tem que ir com muita calma e procurar agregar ao máximo forças à sua volta. Eu penso que com o lastro do protesto social que houve no Chile anteriormente e que está agora cristalizado na Convenção Constitucional, há mais possibilidades e a situação é muito diferente daquela que era a do Salvador Allende.

RFI: Relativamente à Convenção Constitucional, em que pé está este processo? Qual é o prazo para entrarmos numa nova era?

Boaventura Sousa Santos: Até meados do ano de 2022. Aliás, foi uma grande pressão da direita que levou a que se encurtasse o prazo de 120 dias com 3 meses de prorrogação. Por meados do ano e depois (o texto) vai ser submetido a um referendo. A Convenção Constitucional tem predominantemente forças de esquerda e também forças indígenas, aliás a Convençãpo é dirigida pela Doutora Elisa Loncón que é uma grande líder e uma professora de linguística que é Mapuche, e portanto a Convenção tem estado a trabalhar no sentido de dar uma outra cobertura, por exemplo, às políticas sociais. Será obviamente uma Constituição mais intercultural, mais plurinacional, mais feminista e mais social-democrata. Isso pode vir a alterar as coisas. Penso que tem condições para o fazer. Mas como digo, as Constituições são folhas de papel. Terá que se ver depois no terreno quais são as forças políticas que apoiam esta transformação. Os sinais positivos é que apoiaram agora Boric e não apoiaram Kast. Isto é um bom sinal, mas nada se sabe.

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