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Fotógrafo Mário Macilau leva “memórias” de Moçambique a Paris

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O moçambicano Mário Macilau é um contador de histórias através da fotografia. Por detrás das imagens, palpita um contexto político assim como um retrato social de um país ou países onde os rostos são presente e passado e onde os lugares são identidade e herança. O trabalho mais recente está no espaço La Terrasse, em Nanterre, na região de Paris, e chama-se “Círculo de Memória”. São imagens que sobrepõem retratos com paisagens em ruínas. Nesta conversa, Mário Macilau fala-nos deste projecto, da sua história e da sua luta para viver da fotografia.

Mário Macilau, fotógrafo moçambicano. La Terrasse, Nanterre. 5 de Fevereiro de 2021.
Mário Macilau, fotógrafo moçambicano. La Terrasse, Nanterre. 5 de Fevereiro de 2021. © Carina Branco/RFI
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Das ruas de Maputo, à lixeira de Hulene, dos bairros de lata na Nigéria aos mineiros no Bangladesh, Mário Macilau quer “dar a voz aos que não têm voz”, criar um legado de fotografia e questionar o tempo. O seu trabalho mais recente está no espaço La Terrasse, em Nanterre, na região de Paris: “Círculo de Memória” sobrepõe retratos de moçambicanos com paisagens em ruínas que evocam a herança colonial.

 

 

RFI: “De que fala esta nova série que apresenta em Paris?”

Mário Macilau: “'Círculo de memória' é um projecto de longo percurso e que retrata muitas questões ligadas ao tempo e à memória e à identidade dentro do processo de descolonização também. Trabalhei focando nos edifícios deixados em Moçambique pelo sistema português depois da independência e tendo como ponto de partida um legado que depois se tornou em ruínas, perdeu a sua funcionalidade. Esses edifícios localizam-se ao lado das comunidades que testemunharam o tal tempo: a colonização, a guerra civil. Então, tendo esses edifícios ao lado dessas pessoas, olho para esse aspecto de como a memória se comporta.

RFI: “As imagens têm sobreposições entre as pessoas retratadas e as paisagens de ruínas. Porquê esta escolha?”

Mário Macilau: “O projecto nasceu há muito tempo e eu sempre estive à procura de uma forma de representar essa realidade. Agora, olhando para esse processo de dupla exposição em que tenho as personagens que testemunharam o tempo colonial e todos os acontecimentos históricos de Moçambique - e hoje olhando para esses edifícios - há sempre uma questão ligada ao tempo, ligada ao passado, ao presente e ao caminho para o futuro. Tentei interligar isso.”

RFI: “Vêem-se mulheres com crianças ao colo. Como selecciona as pessoas e quem são estas pessoas que apresentou como ‘personagens abstractas’?

Mário Macilau: “São pessoas que, directa ou indirectamente, estão afectadas pelo passado de Moçambique. Elas ainda vivem nesses lugares, elas ainda sentem as consequências como se fosse algo que aconteceu ontem. O projecto não busca focar apenas nesse lado de colonização e da operação. É um projecto que também quer questionar, é um projecto que também olha para o tal legado, para essas ruínas. É um projecto que olha para o tempo, é um projecto que busca a melhor representação daquilo que é a identidade local. Sendo assim, eu não quis fazer uma representação directa das caras e das personagens que fazem parte, mas criar uma interligação entre a História e o presente, em que as pessoas se pudessem identificar e também questionar, tanto em Moçambique, tanto em Portugal, tanto na Europa.”

RFI: “Precisamente, em geral, no seu trabalho os retratos são muito nítidos. Nesta série é um diferente, a pessoa quase se apaga na paisagem... Porquê esta fusão entre a pessoa e o espaço?”

Mário Macilau: “O projecto engloba muitos elementos que se podem resumir a um simples elemento que é a questão de memória e olhando como destaque os edifícios e essas ruínas que foram deixadas como legado, eu quis relacionar as pessoas que sofrem a mesma memória, as pessoas que vivem com essas ruínas. Mas também quis retratar isso de uma forma a representar a própria memória. Então, não vi a necessidade de destacar as personagens porque senão seriam as personagens destacadas no projecto em vez da memória e das próprias ruínas. É um processo da memória, um processo dos edifícios, um processo das ruínas, um processo do meio ambiente. Aqui tens muito a questão da ecologia, as árvores, o espaço isolado, a beleza das cores...”

RFI: “Lá fora tem a fotografia de um antigo centro de escravos e cá dentro – além das fotografias – tem um vídeo com formigas a trabalharem. O que é que isto representa?”

Mário Macilau: “O tema deste projecto representa muitos elementos e elementos fáceis de pensar e questionar. Primeiro, é o tal movimento e a forma como o tempo muda as coisas e, de alguma forma, como fotógrafo encontrei o processo de pensar, de questionar, de analisar e de observar. Então, existe um processo aqui que é o processo desse movimento, que é o processo de trabalho, que é o processo de uma obrigação, que é o processo de um espaço que não oferece condições para executar todas essas actividades. As formigas representam esse passado e, depois da independência, são as mesmas formigas que percorrem as paredes dos edifícios, das ruínas...”

RFI: “Relativamente à sua carreira, iniciou o seu trabalho artístico em 2003 nas ruas de Maputo, depois de ter passado a infância também nas ruas como vendedor ambulante para ajudar a família. Antes de transpor a rua para a fotografia, começou a trabalhar com que idade?”

Mário Macilau: Comecei a trabalhar com oito anos. Era criança e os meus pais não tinham condições para me mandarem para a escola. Comecei a fazer trabalhos nos mercados informais de Maputo, ajudava as pessoas a carregar as compras, lavava os carros, fazia muitos trabalhos. Fui crescendo e fui aprendendo, nessa altura já sabia alguma coisa sobre fotografia e também queria ser fotógrafo. A grande mudança foi mesmo em 2003 quando entrei no mercado artístico e comecei a perceber que a fotografia era arte. Foi então que descobri que as pessoas faziam exposições através das fotografias, mas antes eu não sabia disso. Antes, simplesmente, só queria ser fotógrafo porque a fotografia chamava a minha atenção.”

RFI: “Como é que aprendeu a fotografia?”

Mário Macilau: “Eu aprendi a fotografia com a curiosidade porque vi o movimento dos fotógrafos comerciais que surgiram depois da guerra civil, em 1994. Todas as pessoas se sentiam na obrigação e na ansiedade de celebrar. Então, todas as pessoas queriam aparecer nas fotografias. Foi nessa altura que começou a surgir muitos movimentos e também já havia muitas câmaras em Moçambique deixadas pelos missionários, pelos estrangeiros que estavam lá. No meu bairro, onde eu cresci, começaram a surgir esses fotógrafos que estavam à procura de um emprego qualquer e eles faziam fotos das famílias e cobravam alguma coisa.  Aquilo chamou a minha atenção, mas eu não queria ser aquele fotógrafo.

RFI: “E qual é o tipo de fotógrafo em que se tornou? A sua fotografia é documental e faz pensar na fotografia humanista francesa do pós-guerra, o chamado ‘realismo poético’ do Henri Cartier-Bresson, do Robert Doisneau, do Willy Ronis...”

Mário Macilau: “O tipo de fotografia que eu faço eu chamo de fotografia documental a longo prazo. É uma fotografia que retrata uma realidade local. Eu uso a fotografia para mostrar a cultura moçambicana, para mostrar aquilo que é a vida lá, para mostrar aquilo que é o passado, para mostrar aquilo que é o presente e, acima de tudo, eu uso a fotografia como uma forma de de dar a voz às pessoas que não têm voz, de dar a voz às pessoas que têm voz e não são ouvidas. Eu uso a fotografia também como um elemento ou um objecto para influenciar nas mudanças positivas em relação ao mundo em que vivemos.”

RFI: “A sua fotografia é um modo de intervenção social?”

Mário Macilau: “Exactamente.”

RFI: “Ao mesmo tempo não é um modo ‘voyeurista” de explorar as fragilidades dessas pessoas que fotografa e viver disso?”

Mário Macilau: “Não. Só para ter uma ideia, eu para fazer um projecto fotográfico gasto muito dinheiro e gasto mais do que o que ganho. É uma luta e tenho também uma ideia diferente daquilo que é o meu trabalho. Em 2015, fiz um livro de fotografia e paguei as despesas através da fotografia. O livro custou mais ou menos 30.000 euros. Quando comecei a fazer o livro, era simplesmente um sonho, da mesma forma que eu comecei a fotografar. Primeiro, deram-me um orçamento de 3.000 euros e, depois, quando me meti naquilo, o valor foi aumentando, aumentando... A minha ideia com a fotografia é também criar um legado em Moçambique, é criar elementos para a nova geração. Eu fiz o livro não para promover o meu trabalho mas para ajudar no processo educativo, fiz o livro que é mais barato, as pessoas podem ler, as bibliotecas vão tê-lo. Além disso, em Moçambique, sou professor de fotografia por conta pessoal, tenho a minha própria escola, ajudo muitos jovens também quando tenho condições para tal.

RFI: “Fotografou crianças nas ruas de Maputo e na lixeira de Hulene,  pessoas em bairros de lata na Nigéria, mineiros no Bangladesh... É um trabalho de imersão junto destas populações?”

Mário Macilau: “Sim, mas também é muito importante as pessoas perceberem que os projectos não nascem de um dia para o outro, pelo menos para mim. Eu não estou forçado a fazer projectos porque tenho que expor. Os projectos surgem da minha forma de pensar, daquilo que eu vejo no mundo, daquilo que são os meus valores. Então, os projectos surgem através de passeios, surgem através de eventos, através de encontros... Eu posso estar num sítio e, de repente, algo chama mais a atenção. O que mais me chamou a atenção neste projecto [Círculo de Memória”] - porque eu viajo muito em Moçambique – foi ver edifícios a sair de zonas onde há dez anos não havia nenhum acesso. Quando me aproximei vi que eram edifícios e que eram edifícios bonitos. A primeira pergunta foi: Como é que estes edifícios foram construídos e há dez anos não se tinha acesso a nada? Pesquisei e nasceu o projecto.”

 

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