A galeria Le Salon H, em Paris, tem patente, até 26 de Março, uma exposição da moçambicana Eurídice Zaituna Kala. A artista apresenta fotografias, esculturas, vídeo e instalações sonoras inspiradas no naufrágio de um navio de escravos moçambicanos no século XVIII.
Entrevista a Eurídice Zaituna Kala
Uma viagem ao passado com sons e imagens do presente. A artista moçambicana Eurídice Zaituna Kala expõe na galeria Le Salon H, em Paris, “Sea (E) scapes – DNA: Don’t (n)ever ask”, uma mostra que reúne fotografias, esculturas, vídeo e instalações sonoras para devolver à História uma história esquecida. Em causa, o naufrágio do São José Paquete-d’África, em 1794, um navio que levava 400 escravos moçambicanos para São Luís do Maranhão, no Brasil.
“Esta exposição trata, de uma maneira estética, de um trabalho de pesquisa sobre o navio São José Paquete-d’África que partiu da Ilha de Moçambique, em 1794, com escravos moçambicanos e naufragou na costa da Cidade do Cabo, na África do Sul. Duzentos escravos foram dados como desaparecidos, mortos e 200 escravos foram recuperados, levados para o Cabo ou continuaram a viagem até ao Maranhão, no Brasil. Esta exposição trata da história desse navio, mas também trata da história da escravatura a partir do Oceano Índico, de Moçambique”, explicou à RFI Eurídice Zaituna Kala.
Para contar essa história, há uma espacialização de fotografias Polaroid, esculturas sonoras, feitas com vidro e ferro, vasos transparentes com desenhos do povo maconde e um vídeo com imagens que mostram as transições dos diferentes espaços por onde a artista passou durante as pesquisas. A investigação e o início da recolha de arquivos - dos oficiais da Torre do Tombo, por exemplo, aos que ela criou em imagens – começou em 2015.
Quando foi descoberto o navio, os objectos encontrados foram para a Smithsonian Institution, nos Estados Unidos. “Para mim, foi estranho como é que esses aspectos históricos não foram directamente para os museus etnográficos de Moçambique, porque é que tinham de ir para os Estados Unidos? Eu queria também abrir, nestes sete anos de pesquisa, uma abertura para uma história essencial que é a descoberta da África pelos portugueses e Moçambique como história central da entrada no continente africano”, explica.
Além dos horrores da escravatura, a exposição questiona a mecânica da memória, explorando e criando arquivos para escrever narrativas complementares aos relatos oficiais. “Os arquivos foram todas essas imagens que eu coleccionei durante os sete anos de pesquisa. É uma colecção de imagens privadas mas que, para mim, começam a criar rastos de uma história de um navio de que Moçambique não tem um registo oficial. E eu posso dar ao povo moçambicano uma perspectiva de origem moçambicana, de uma certa forma”, descreve.
A tragédia do navio foi esquecida pelos próprios moçambicanos e a artista quis reinvestir essa história e contá-la sob um prisma moçambicano e pessoal e não simplesmente através dos arquivos portugueses. O seu trabalho de investigação começou em Lisboa, levou-a à Ilha de Moçambique e depois à Cidade do Cabo.
Mais do que contar a história dos escravos do São José Paquete-d’África, Eurídice Zaituna Kala quis “incarnar esse navio e mesmo as pessoas que estavam lá dentro”. Por isso, a exposição é preenchida com ruídos metálicos e de mar, indícios sonoros para imaginar a viagem de pessoas transformadas em escravos.
A arte tem de ser política: “É importante que artistas, pensadores, escritores e escritoras, pensem em criar espaços políticos entre as peças que apresentam e como essas peças podem ter um eco nas histórias de um país.”
Eurídice Zaituna Kala vive em Paris, mas Moçambique continua a ser “um espaço de inspiração imenso”. A artista nasceu em Maputo, em Fevereiro de 1987 e formou-se como fotógrafa na Market Photo Workshop em Joanesburgo, na África do Sul. O seu trabalho artístico centra-se nas metamorfoses culturais e históricas, nas manipulações e adaptações, do século XV até ao início do século XX. Em Paris, Euridice teve exposições individuais no Jardin des Tuilleries, na secção hors-les-murs da FIAC (Feira Internacional de Arte Contemporânea de Paris), em 2021, e na Villa Vassilieff, em 2020. Também participou em exposições colectivas na Cidade do Cabo, Maputo, Dacar, Casablanca, Lisboa, Berlim, entre outras cidades.
A exposição “Sea (E) scapes – DNA: Don’t (n)ever ask” está patente na galeria Le Salon H, em Paris, até 26 de Março.
De 21 de Março a 21 de Maio, Euridice Zaituna Kala vai integrar o festival de arte contemporânea Fata Morgana no Jeu de Paume, também na capital francesa.
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